Nesta sexta-feira (19), o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento que vai decidir se é constitucional ou não proibir a pulverização aérea de agrotóxicos. O plenário aprecia uma ação ajuizada por ruralistas para derrubar a única lei estadual que inibe este uso no Brasil, a Lei 16.820/19, do Ceará.
Apesar de se tratar do caso cearense, a decisão terá repercussão em todo o Brasil. Afetará, por exemplo, o avanço de Projetos de Lei (PL) similares tramitando em outros 18 estados.
A previsão é que a Suprema Corte conclua até 26 de maio o julgamento que começou em 2021 e ficou, ao longo destes dois anos, parado. Até o momento, votaram apenas a relatora, a ministra Carmem Lúcia, e o ministro Edson Fachin. Não é inconstitucional que “Estados editem normas mais protetivas à saúde e ao meio ambiente quanto à utilização de agrotóxicos”, entendeu a relatora, acompanhada pelo colega.
Quando chegou na sua vez, o ministro Gilmar Mendes pediu vistas, suspendendo a julgamento, que agora é retomado. Considerando que a cadeira do magistrado recém aposentado Ricardo Lewandowski ainda não foi ocupada, faltam oito votos.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6137/2019 foi feita pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), entidade que atua em defesa dos interesses do agronegócio junto aos três poderes de Brasília.
Na ação, argumentam que a proibição de pulverização de veneno é inconstitucional por violar a livre iniciativa e os objetivos da política agrícola. Não é o que pensam 16 Defensorias Públicas estaduais, o Instituto Nacional do Câncer, a Fiocruz, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), entre outras entidades que emitiram notas técnicas favoráveis à lei. A disseminação aérea de agrotóxicos é proibida na União Europeia desde 2009.
Os três rounds
De autoria do deputado estadual Renato Roseno (PSOL) com os então deputados Elmano de Freitas (PT) - hoje governador do Ceará - e Joaquim Noronha (PRP), a lei que o agronegócio tenta derrubar foi resultado da pressão de movimentos populares e ambientalistas a partir de estudos feitos na Chapada do Apodi.
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Os impactos negativos da exposição à fumigação de agrotóxicos nesta região foram revelados por uma pesquisa de 15 anos feita pelo Grupo de Pesquisa Trabalho, Saúde e Ambiente (Tramas) da Universidade Federal do Ceará. Os pesquisadores detectaram, na população local, 30 ingredientes ativos dos diversos venenos que são despejados no ar a partir das áreas de perímetro irrigado do agronegócio.
“Essas comunidades” descreve Renato Roseno, “passaram a desenvolver neoplasias, câncer, puberdade precoce e problemas neurológicos muito graves”.
Antônio José vive no Assentamento Nova Conquista, na cidade de Amontoada (CE) e, por ser do setor de produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, viaja bastante pelo estado. “Os assentamentos que estão próximos dos corredores de cultura irrigada do agronegócio sofrem muito com a pulverização”, relata.
“São as regiões da Chapada do Apodi e do outro lado, o Baixo e o Médio Acaraú. Entre essas duas barreiras estão as maiores bacias hidrográficas do Ceará”, se preocupa Antônio.
“Temos áreas em que já aconteceu a contaminação de pessoas assentadas por conta do agronegócio que está ao lado”, expõe o integrante do MST. “Em alguns assentamentos do Baixo e Médio Acaraú a gente tem feito experiências de cercar as áreas com o plantio de árvores para servir de barreira contra a contaminação”, conta.
Roseno apresentou o PL em 2015, no mesmo mês em que tomou posse, pela primeira vez, como deputado estadual. “Foi uma luta. Muitas audiências públicas, uma pressão desmedida do agronegócio, que tentou por diversas formas impedir a tramitação”. Depois de quatro anos de embate, a aprovação do PL aconteceu no apagar das luzes, na última sessão da legislatura de 2018.
O segundo round foi em torno da sanção do governador que, na época, era Camilo Santana, atual ministro da Educação. “O agronegócio pressionou para o governador vetar. Fizemos uma grande articulação, com assinaturas de 22 associações da América Latina, do México até o Chile”, narra o autor do projeto. Em 9 de janeiro de 2019 a lei foi sancionada.
Perdendo as disputas na arena político-institucional, setores do agro passaram para a esfera judiciária. Depois de três processos perdidos no âmbito da justiça estadual, a CNA entrou com a ação de inconstitucionalidade no STF. Nesta sexta (19), portanto, começa o terceiro e último round da disputa em torno da proibição da fumigação aérea de veneno.
A luta de José Maria
Este capítulo para limitar os impactos sanitários e ambientais do agronegócio é mais um entre tantos que o antecederam. Neste caso, a luta para proibir o que os movimentos populares definem como “chuva de veneno” é a continuidade do ativismo de um camponês cearense chamado José Maria. Incorporando, como apelido com pinta de sobrenome, o nome de sua comunidade, ficou conhecido como Zé Maria do Tomé.
Agricultor e ambientalista, Zé Maria viveu o processo de adoção, por parte de vários estados do Nordeste, da fruticultura irrigada para exportação a partir da virada dos anos 1990 para os 2000. O novo padrão foi implementado junto com um pacote tecnológico de mecanização nas lavouras, fertilizantes petroquímicos e uso intensivo de agrotóxicos.
“Isso foi patrocinado pelos sucessivos governos estaduais, mas também pelo governo federal”, narra Renato Roseno. No Ceará, avalia, este processo toma a forma de uma concentração fundiária que os movimentos populares chamam de “contrarreforma agrária”. “Pequenas e médias propriedades, por intervenção estatal, passam a se transformar em perímetros irrigados dedicados em especial a empresas de grande porte, de capital transnacional. O antigo camponês passa a ser um proletário rural”, diz.
Zé Maria, líder comunitário, foi uma das principais vozes na Chapada do Apodi contra este processo e a luta que encampou culminou, em 2009, com a aprovação de uma lei municipal que, na cidade de Limoeiro do Norte (CE), proibiu a pulverização aérea de veneno. “Em razão disso, obviamente, ele atrai grande ira do agronegócio”, lembra Roseno.
Numa emboscada em abril de 2010, Zé Maria foi assassinado com 19 tiros. Um mês após sua morte, a lei municipal foi revogada. O Ministério Público denunciou o então proprietário e o gerente da empresa Frutacor como mandantes do homicídio e o pistoleiro Westilly Raulino Maria como executor. O último foi morto em uma operação policial e os dois empresários foram despronunciados pelo Tribunal de Justiça do Ceará. Treze anos depois, ninguém foi responsabilizado.
A lei cuja constitucionalidade será julgada pelo STF a partir desta sexta (19) – em um contexto em que 652 tipos de agrotóxicos têm uso liberado no Brasil – se chama “Zé Maria do Tomé”.
Edição: Rodrigo Durão Coelho