Geraldo Vandré, compositor, cantor e autor da trilha sonora do filme A Hora e Vez de Augusto Matraga recebeu homenagem da Apaci (Associação Paulista de Cineastas) na noite da última terça-feira, 23 de maio. O tributo ao artista contou com público recorde do Projeto Apacine, realizado semanalmente no Cine Bijou Satyros, na Praça Roosevelt paulistana.
O compositor paraibano, autor dos sucessos Disparada e Pra não dizer Que Não Falei das Flores — ou "Caminhando", definida por Millor Fernandes como "a Marselhesa brasileira" — foi aplaudido calorosamente pelo público. Na plateia, dezenas de cineastas paulistas e a deputada, paraibana como ele, Luiza Erundina (PSOL-SP), que derramou lágrimas. Vandré recebeu da Apaci uma gravura do artista plástico Antonio Peticov e foi homenageado com clip que rememorou os grandes momentos de sua carreira, em especial a trilha sonora de Matraga, filme de Roberto Santos, representante do Brasil no Festival de Cannes e grande vencedor do Festival de Brasília, em 1965.
No debate que se seguiu à exibição do filme, Vandré foi lembrado como mentor, mecenas e colaborador de um dos discos mais importantes da história da música instrumental brasileira — Quarteto Novo, gravado pela Odeon em 1967 —, por sua magistral trilha para a hoje clássica adaptação do conto de João Guimarães Rosa e pelas 43 músicas que compôs, sozinho ou com parceiros, na década de 1960. Sua carreira como astro da MPB e da geração dos grandes festivais foi curta, pois ele foi obrigado a exilar-se no Chile, no pós AI-5, quando "Caminhando" foi interditada pela censura e ele passou a ser caçado como "perigoso subversivo".
Vandré não participou do debate com o público, que lotou o Cine Bijou, mas contou ao ser homenageado que a confiança e parceria com Roberto Santos, responsável pelo roteiro e pela direção de Matraga foi muito intensa. Tanto que o cineasta usou músicas pré-compostas (por ele) para com elas impregnar certas sequências do filme.
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Marília Santos, da produção do hoje clássico incontestável do cinema brasileiro, e viúva de Roberto Santos, contou que o marido decidiu que Vandré seria o trilheiro da adaptação do conto roseano, quando ouviu Fica Mal com Deus, um de seus grandes sucessos musicais. Já o ator e músico Luiz Carlos Bahia, que trabalhou com Roberto Santos em outros filmes, lembrou que algumas das composições, aquelas que na trilha somam sons de viola e rascantes vocalises de Vandré, foram criados na moviola. Ou seja, no momento de montagem do filme (por Sylvio Reynold).
O debate de Matraga, na Sessão Apacine, contou com a presença de Marília Santos, do professor da USP e ex-secretário de Cultura Carlos Augusto Calil, do pesquisador Inimá Simões, biógrafo de Roberto Santos (A Hora e Vez de Roberto Santos, Editora Estação Liberdade), e do futuro diretor de fotografia Roberto Santos Filho, o Tuta, que tinha quatro anos quando o pai filmou Matraga na zona rural de Diamantina, em Minas Gerais.
Debates programados
Semanalmente, a Apaci vem promovendo sua Sessão Apacine, destinada à promoção do cinema paulista. Tudo começou com exibição e debate de O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, ano passado, na data comemorativa dos 60 anos de sua conquista da Palma de Ouro em Cannes (a única ganha pelo Brasil na categoria principal). O filme foi representado no Cine Bijou pelo produtor Aníbal Massaini, da Cinearte.
O cineasta Joel Pizzini, que coordena a Sessão Apacine, conta que a cada edição, o evento vem ampliando a mobilização da categoria cinematográfica paulistana e o público. A parceria com a SPCine (empresa municipal de fomento ao cinema produzido em São Paulo) e o Cine Bijou-Satyros vem ganhando tamanho relevo – assegura o diretor de Caramujo Flor – que "já temos vários filmes e debates programados para os próximos meses".
Nessa terça-feira, 30 de maio, será exibido e debatido o filme Iracema, Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Na primeira semana de junho, será a vez de Jean-Claude Bernardet, professor da USP, escritor, roteirista, ator e cineasta, debater seus documentários São Paulo, Sinfonia e Cacofonia e Sobre Anos 60. Depois virão filme de Rogério Moura com participação da atriz Zezé Motta, Joyce Prado (com o documentário Chico Rei Entre Nós) dentro do segmento "Diretoras Mulheres em Foco", e Francisco Ramalho Jr, produtor (de vários filmes de Hector Babenco) e diretor (À Flor da Pele, Besame Mucho, Canta Maria) e Hermano Penna e seu Sargento Getúlio, baseado no livro homônimo de Joao Ubaldo Ribeiro.
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O presidente da Apaci, o cineasta afro-brasileiro Daniel Santiago, vem dando o devido destaque ao "cinema black" paulistano. E na noite de Matraga, a plateia presenciou a exibição de imagem do jogador do Real Madri, Vini Jr., motivo de campanha mundial contra o racismo, pois ele vem sendo agredido, jogo a jogo, por torcedores dos times rivais, que o chamam de "macaco".
Joel Pizzini, diretor de vários longas-metragens (um deles, ainda inédito – o épico documental Rio da Dúvida), enumera alguns dos muitos programas já apresentados pela Sessão Apacine: exibimos e debatemos Bocage, o Triunfo do Amor, em memória de Djalma Limongi, Doramundo, de João Batista de Andrade, O Grande Momento, de Roberto Santos, filmes de realizadoras afro-brasileiras (Negras Estrelas), o documentário Fela Kuti, de Joel Zito Araújo, De Passagem, de Ricardo Elias, em homenagem aos 60 anos de atividade de sua produtora, Assunção Hernandez, a Caravana Farkas, com Sérgio Muniz, Ori, de Raquel Gerber (com presença das debatedoras Cristina Amaral e Adriana Couto, esta da TV Cultura), e tivemos um convidado internacional, o angolano Fradique, que apresentou o longa-metragem Ar Condicionado.
Carreira interrompida no cinema
A atividade de Geraldo Vandré como trilheiro vai além da arrebatadora trilha composta para o clássico A Hora e Vez de Augusto Matraga. Ele tem passagens por créditos de outras produções audiovisuais. Tudo começou em 1962, quando, junto com Carlos Lyra, assinou a trilha sonora de Couro de Gato, episódio de Joaquim Pedro de Andrade no filme Cinco Vezes Favela, produção do CPC-UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes). Dois anos depois, ele comporia, sozinho, a trilha de Matraga.
Em 1968, Vandré se envolveria com o longa-metragem Quelé do Pajeú, de Anselmo Duarte. Além de atuar no filme, assinaria sua trilha sonora. Mas 1968 foi um ano muito complicado na vida do compositor nordestino. Ele não aparece no filme (pelo menos na montagem final, que estreou em 1969). Quem acabou assinando a trilha de Quelé foram o Trio Marayá e Theo de Barros, com canções de Hilton Acioly (todos ligados à carreira de Vandré). Com o exílio no Chile e andanças por diversos países europeus e hispano-americanos, a carreira de autor de trilhas sonoras do paraibano sofreu solução de continuidade.
No Brasil, suas composições (em especial Prá Não Dizer Que Não Falei dos Flores ou Caminhando), às vezes cantadas por ele mesmo, costumam aparecer em filmes. Mas sua imagem aparece pouco. Até porque ele, que regressou ao Brasil em 1973, deixou de fazer shows e concedeu raras entrevistas.
Nos anos 2000, o interesse por Geraldo Vandré ganhou relativa visibilidade. Primeiro em um documentário - O Que Sou Nunca Escondi, de Helena Wolfenson, Alexandre Napoli e Willian Biagioli, realizado como trabalho universitário (2006). Vandré não deu depoimento aos três jovens, mas sua história foi contada por pessoas que conviveram muito de perto com ele, em diversas fases de sua vida. E por imagens fixas produzidas pelo fotógrafo Bob Wolfenson, pai de Helena.
Quatro anos depois, em 2010, o jornalista Geneton Moraes Neto conseguiu entrevistar Vandré para o Dossiê GloboNews. Programa tenso, inquisitorial, mas de imenso valor, pelo atrevimento (ou "sensacionalismo", no entender de muitos) do entrevistador e por sua raridade. O programa está disponível no streaming da GloboPlay.
Mecenas
O melhor estava por vir. Em 2011, Charles Gavin, na direção e apresentação, e Tárik de Souza (pesquisa e roteiro), realizaram uma pequena jóia – o Som do Vinil, patrimônio do Canal Brasil, sobre o elepê Quarteto Novo (Odeon, 1967). Vandré, mais uma vez, não dá depoimento ao programa. Mas está presente em cada um dos 28 minutos do documentário. Afinal, ele foi um dos incentivadores do disco. E sua voz aparece em meio aos inventivos sons gerados pelos músicos Theo de Barros, Hermeto Paschoal, Heraldo do Monte e Airto Moreira.
O rigoroso roteiro de Tárik de Souza, a condução elegante do titã Charles Gavin e os refinados depoimentos dos músicos mostra que o paraibano Vandré foi o mentor, mecenas (sim, patrocinador com dinheiro do próprio bolso) e colaborador (com belos "vocalise" e muitas composições reinventadas) das pesquisas sonoras empreendidas pelo Quarteto Novo, criado para acompanhá-lo em shows e gravações. O Som do Vinil só chegou a resultado tão surpreendente no programa dedicado ao Araçá Azul, de Caetano Veloso.
Depois de assistir ao Som do Vinil – Quarteto Novo somos levados a concluir que Geraldo Vandré está para as investigações musicais dos quatro músicos na mesma medida em que o paraibano-pernambucano Ariano Suassuna (1927 - 2014) esteve para o Quinteto Armorial.
O compositor-cantor nascido em João Pessoa, na Paraíba, sempre se alimentou da cultura popular, dos aboios, repentes e toadas sertânicas. Tomado de sentimento telúrico, queria mostrar que o Brasil dispunha de ricas matrizes para produzir sons de primeira linha. Não necessitava de empréstimos externos (antes da globalização, esta questão – o nacionalismo na arte – tinha poder mobilizador). Por isto estimulou e bancou as pesquisas de alguns dos maiores instrumentistas brasileiros – os craques Hermeto Paschoal (86 anos), Airto Moreira (81 anos), Heraldo do Monte (88 anos) e Theo de Barros (1943-2023).
O grupo, motivadíssimo, mergulhou então nas fontes originais do cancioneiro nordestino. E dele tirou os belos sons e arranjos que acompanham a principais faixas do disco: O Ovo (Vandré & Hermeto), Fica Mal com Deus e Canta Maria (ambas de Vandré), Canto Geral (Vandré & Hermeto), Síntese (Heraldo), Misturada (Airto & Vandré), Vim de Sant'Anna (Theo de Barros) e Algodão (Gonzaga & Zé Dantas).
O Quarteto Novo, que também acompanhou a vitoriosa Ponteio, de Edu Lobo, num festival da canção, encerrou suas atividades em 1969. Não havia mais clima. Vandré, perseguido por causa de Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, estava exilado. Mas o grupo deixou o fruto de suas ousadas pesquisas registrado no imprescindível Quarteto Novo (Odeon, 1967, relançado em 1973 e, mais recentemente, em CD) e no Canto Geral (Geraldo Vandré, 1968).
O trabalho audiovisual mais recente em que Vandré "aparece" (com suas canções ou em fotos fixas) é a série Noites de Festival, que Ricardo Calil e Renato Terra realizaram em cinco capítulos. Calil relembra a "presença" da obra de Vandré na série: "ele está presente com Disparada, cantada por Jair Rodrigues no Festival de 1966, e depois, em outro episódio, relembramos o que aconteceu no Festival de 1968, o que antagonizou Sabiá, a vencedora, e Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores. Quem quiser assistir à série, que estreou no Canal Brasil, a encontrará no streaming (GloboPlay).
O trabalho de Vandré em A Hora e Vez de Augusto Matraga encantou até o ultra-exigente Guimarães Rosa (1908 -1967). O grande ficcionista mineiro ficara muito insatisfeito com a adaptação de Grande Sertão: Veredas, pelos irmãos Santos Pereira (Geraldo e Renato), em 1964. O filme, concebido para ser um épico, resultou – segundo o crítico Sérgio Augusto – "num hípico", com cavalos desembestados para todos os lados. Já da adaptação do longo conto (uma novela?) A Hora e Vez de Augusto Matraga, com um Leonardo Vilar iluminado na pele do fazendeiro-penitente, deixou Rosa muito feliz. Gostou tanto do filme quanto da trilha criada por Vandré. Em 1968, um ano depois da morte do escritor, sua viúva, Dona Aracy, daria guarida ao compositor em sua casa, no Rio, e ajudaria a montar o plano de fuga que levaria o paraibano ao exílio.
Quem assistir ao filme A Hora e Vez de Augusto Matraga e Som do Vinil - Quarteto Novo (este no Canal Brasil-GloboPlay) terá material para profundo mergulho nas complexas sonoridades produzidas por Vandré e seus parceiros e músicos. E poderá constatar que ele é mais, muito mais, que um compositor de música de protesto. Com o sucesso avassalador de Disparada e Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, as muitas composições líricas do artista nordestino acabaram eclipsadas. E ele estigmatizado como "compositor de música engajada".
Pesquisa apresentada no XXII Simpósio Nacional de História por Francisca de Assis Oliveira quantifica em apenas 43 canções a fase MPB de Vandré, aquela da vibrante década de 1960. Hoje, ele tem se dedicado a composições para piano e realizou dois concertos com a Sinfônica da Paraíba, seis anos atrás.
* Maria do Rosário Caetano é jornalista e membro da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Autora de livros como Cinema Latino-Americano - Entrevistas e Filmes (Editora Estação Liberdade) e Festival de Brasília 40 Anos (2007), venceu o Prêmio OK de Jornalismo pelas reportagens: "Geraldo Vandré - Para Não Dizer Que Não Falei" e "Plantão de Arapongas".
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Nicolau Soares