Há quem diga que o famoso gesto antirracista do punho cerrado em riste, símbolo do partido Panteras Negras, teria sido inspirado nas comemorações dos gols do Rei Pelé, que pulava com o punho também cerrado, como que dando socos no ar.
Embora não confirmada, a teoria tem muita plauseabilidade. É conhecido de todos e muitas vezes confirmado por ele, que o fato de Pelé ter se tornado uma lenda do esporte não lhe deu imunidade ao racismo, inclusive no meio futebolístico.
O gesto de comemoração com socos no ar teria sido criado em 1959, num contexto destes, num jogo contra a Juventus em que a torcida adversária desferia ofensas racistas contra ele e tentava desestabilizar a locomotiva do Santos, capitaneada por Pelé. O Rei, que não tinha a eloquência antirracista de um Muhammad Ali nem a ira santa de um Vinicius Jr., respondeu com um dos golaços mais antológicos da sua carreira, um em que ele dá uma sequência de lençóis nos adversários e entra com bola e tudo gol adentro. Havia sido o quarto gol na vitória santista de 4 X 0. E então, num daqueles gestos de admirável indignação, ele foi pra cima da torcida da Juventus e comemorou dando socos no ar, como quem saísse no braço com os torcedores. O gesto se tornaria sua marca.
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Em 1966 Pelé foi jogar um torneio nos EUA. Tinha 26 anos, já era bicampeão mundial pelo Santos, havia ganho duas copas do mundo e era o maior jogador do planeta. Ídolo de uma geração de jovens negros norte-americanos e admirado por lideranças antirracistas por seus feitos no esporte, Pelé exibiu em solo ianque o gesto de comemoração dos seus inescapáveis gols, dando socos com o punho cerrado para o alto.
Dois meses depois deste jogo nascia nos EUA o partido Panteras Negras, com seu símbolo do punho cerrado em riste, que veio a se tornar não só um gesto antirracista do partido estadunidense, mas também uma forma de manifestação de solidariedade a todas as vítimas de racismo mundo afora.
É claro, se sabe que o punho cerrado já havia sido usado como símbolo de união de esquerdas na Europa nos anos 1930, e por brigadas antifascistas durante a guerra civil espanhola. Mas, fato ou não, a suposta inspiração dos panteras no Rei é uma boa teoria, e até bem provável.
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Pelé, como se sabe, apesar de admitir ter sofrido racismo inúmeras vezes nunca politizou a questão, não era seu estilo. O máximo que fez foi ter tornado um homem negro o atleta mais importante do século e o maior jogador de todos os tempos, o que, convenhamos, já é um grande feito pela luta antirracista.
Mas isso não foi o bastante para imunizar as gerações seguintes do racismo, nem a ele próprio, dentro e fora do mundo do esporte. O racismo não só nunca deixou de existir, como suas estruturas se movem novamente de forma muito insidiosa, sobretudo no velho mundo. O ressurgimento recente da extrema direita fascista, neonazista, com suas pautas eugenistas, racistas, homofóbicas e xenófobas, tem destampado novamente este bueiro, fazendo racistas perderem a vergonha e voltarem à carga contra todos aqueles que eles acham que estão fora de seus lugares, seja porque alcançaram posições não subalternas, seja porque imigraram para os seus países brancos e puros.
“Soil and Blood” era o lema nazista que sintetizava esta repulsa a tudo o que não era o próprio espelho, que não tinha uma origem territorial comum e que não compartilhava laços de sangue com a suposta raça ariana, fazendo com que o regime se voltasse não só contra judeus, mas também contra africanos, bálticos e eslavos.
Eu estou morando em Lisboa atualmente, uma cidade cosmopolita, de inúmeras línguas, cores, estilos e culturas. Mas mesmo isso não a afasta da sanha racista e xenofóbica que grassa por aqui, que se pode ver não apenas no varejo como no atacado. A cena urbana é um reflexo do neocolonialismo europeu, que subjugou países africanos e asiáticos até praticamente os extertores do século XX, a maioria dos quais só alcançaram a independência na década de 1970, como as ex-colônias portuguesas de Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
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De lá para cá muitos homens e mulheres destes países africanos emigraram para Portugal, vindo trabalhar na limpeza, construção civil, portaria de prédios, cozinha de restaurantes, serviços de mesa, enfim, todas aquelas posições subalternas que compõem a cena do inoxidável racismo estrutural de sempre.
O mesmo acontece com Espanha, Bélgica, Inglaterra e outros países europeus, que junto com Portugal repartiram a África durante a mafiosa Conferência de Berlim de 1885, e lá permaneceram com seus coturnos sobre as cabeças negras quase até o final do século XX, sustentando-se ideologicamente em teses darwinistas, supremacistas e elitistas, baseadas em uma alegada superioridade racial e cultural europeia.
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A Europa não teve uma escravidão clássica contra o povo negro como no Brasil; o neocolonialismo cumpriu este papel de subjugação e exploração sem que os africanos fossem arrancados de seus países; por certo para não mancharem o “Soil and Blood” dos brancos europeus. Por isso, mesmo aqui um imigrante do Canadá não é tratado da mesma forma que um angolano ou um indiano, e um refugiado de guerra ucraniano não recebe o mesmo tratamento de um refugiado sírio. O racismo atual na Europa é servido no prato da xenofobia, é verdade, mas cheira mesmo é ao velho neocolonialismo com notas de eugenia e supremacismo branco.
E assim a extrema direita europeia atual consegue mobilizar estas estruturas mentais colonialistas sem fazer manifestações declaradamente racistas, mas incidindo contra os imigrantes, que são, na sua maioria, negros, asiáticos ou latinos, e provêm de ex-colônias.
É impressionante ver como a imigração se tornou o grande problema e a grande bandeira para a extrema direita europeia. Ao imigrante é imputada a culpa pelo crescimento do desemprego, a crise na previdência, o aumento da violência urbana, a crise imobiliária e, como advogam grupos ecofascistas, até problemas ambientais, como a poluição do ar e dos rios, a degradação da paisagem e, pasmem, o aquecimento global. O imigrante se tornou o inimigo comum que todo o movimento nazifascista precisa para manter a unidade e a capacidade de agir. E hoje, estes movimentos são uma realidade assustadora no Norte global.
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No fundo, o racismo é cevado diariamente de forma dissimulada, empacotada, mas vez por outra o pacote cai e o seu conteúdo fica exposto. E quando isso acontece na arena global de um dos principais campeonatos de futebol do mundo, como no recente caso envolvendo o Vinícius Jr., as repercussões são gigantescas.
Mas, a repercussão do caso de racismo contra o Vini Jr. não se deve apenas à dramaticidade do que ele viveu nem a todo o peso histórico que o fato carrega. Decorre também da coragem pessoal do jogador, e da posição política que ele assumiu de resistir ao racismo: a decisão de enfrentar os poderosos “donos” da liga espanhola, de não deixar pra lá, não aceitar a narrativa de que foi um caso isolado, de opor-se ao status quo que reina no mundo da bola. E decorreu também da contundência da sua reação e da enorme capacidade de articulação que ele tem demonstrado para responder a todos aqueles que querem colocar panos quentes na situação.
Vini tem sido um gigante, um Pantera Negra na incidência e na disposição para a luta, e um Muhammad Ali na eloquência. Mesmo contra as manchetes insidiosas dos jornais espanhóis sobre o caso, ele tem denunciado nas redes sociais o racismo sistemático que tem sofrido, mostrando que não é “um caso isolado”, e tem enfrentado o presidente fascista da liga espanhola, que tem insistido no “deixa pra lá”.
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Mas, de um lado a luta contra o racismo não vai produzir resultados duradouros sem que sejam enfrentados dois problemas políticos de fundo: primeiro, a mentalidade eurocêntrica que gerou as teorias eugenistas, darwinistas sociais e neocolonialistas que por muito tempo sustentaram o domínio do Norte sobre o Sul; e segundo, o discurso que responsabiliza os imigrantes dos países colonizados pelo declínio social e econômico dos colonizadores. É esta associação perversa e muito europeia que tem feito recrudescer o neofascismo e o neonazismo nos últimos tempos por aqui, e tem turbinado as preferências eleitorais da extrema direita em quase todos os países europeus. Então, é preciso enfrentar politicamente este crescimento.
De outro lado, porém, se nem a magia futebolística e a realeza de um Pelé foi capaz de aplacar o racismo sobre si, se nem o amplo protagonismo negro que existe no mundo do futebol foi capaz de afastar o racismo dos estádios, não haverá de ser com conversas ou esperando uma evolução cultural que isso mudará. Haverá de ser com resistência e luta mesmo, como orgulhosamente tem feito o Vini Jr.; e institucionalmente, haverá de ser feito com sansões, com o peso da Lei, como se espera que façam a Liga do campeonato espanhol, a Justiça e o governo da Espanha.
* Professor titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko