Ato de resistência

Exigindo justiça de gênero de um governo patriarcal: a história das lutadoras da Índia

Lutadoras da Índia quebraram o silêncio sobre a impunidade e má conduta sexual enfrentada pelas esportistas do país

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Lutadoras se dirigem à multidão na marcha à luz de velas em Delhi. - Surangya

“Eles quebraram o silêncio! Esse é o passo mais difícil e corajoso!”

“No dia em que essas mulheres saírem vitoriosas, milhares mais tomarão coragem para quebrar o silêncio!”

“O governo do BJP (Partido do Povo Indiano) dá o slogan de que salvará e protegerá nossas filhas. Hoje mudamos o slogan. Nosso novo slogan é: 'Salve nossas filhas dos capangas do BJP!'"

Colocando suas vidas em espera e suas carreiras em jogo, algumas das principais lutadoras da Índia estão em protesto há mais de um mês no coração da capital da Índia, Nova Delhi, no Jantar Mantar. Todos os dias, centenas de cidadãos de várias organizações - mulheres, estudantes, agricultores e outros - se juntam a elas em solidariedade.

Em um ato de resistência sem precedentes, essas atletas reconhecidas internacionalmente, incluindo vencedoras de medalhas nos Jogos Olímpicos e da Commonwealth, se manifestaram contra a cultura de impunidade nas federações esportivas indianas. Eles acusaram o presidente da Wrestling Federation of India (WFI) Brij Bhushan Sharan Singh e outros oficiais de má conduta sexual. Brij Bhushan está enfrentando acusações de assédio sexual e molestamento de sete mulheres lutadoras, incluindo uma menor de idade. Ele também é membro do parlamento do partido de extrema-direita, atualmente no poder, Bharatiya Janata (BJP ou Partido do Povo Indiano).


Membras da Associação das Mulheres Democratas de Toda a Índia (All India Democratic Women’s Association - AIDWA) acendem velas no India Gate em 23 de maio. / Surangya

Milhares em todo o país estão apoiando as lutadoras em sua batalha por justiça. Em 23 de maio, marchas à luz de velas foram realizadas em diferentes cidades. Em Nova Delhi, as lutadoras lideraram cerca de 2.000 pessoas em uma marcha até o icônico monumento India Gate e acenderam velas lá. A elas se juntaram várias organizações, incluindo a Associação das Mulheres Democratas de Toda a Índia, a Federação dos Estudantes da Índia, a Bharatiya Kisan Union (Sindicato dos Agricultores Indianos) entre outras.

No entanto, apesar da gravidade das alegações, as crescentes demandas por ações legais de todos os cantos do país estão sendo tratadas com descaso, uma vez que o governo do BJP continua em silêncio.

O movimento até agora

“Nossa luta por justiça já dura um mês, mas parece que estamos no Jantar Mantar há um ano. Não porque temos dormido em uma calçada no calor, sido picadas por mosquitos, porque temos tido cães vadios como companhia quando anoitece ou por não termos acesso a um banheiro limpo à noite. Nossa luta por justiça parece ter durado uma eternidade porque as rodas da justiça têm se movido muito lentamente”, escreveu Vinesh Phogat, uma das lutadoras que lideram a ação de protesto, em uma coluna de opinião no The Indian Express.

Phogat, junto com Bajrang Punia e Sakshi Malik, começou a protestar no Jantar Mantar em janeiro deste ano. Na época, a Associação Olímpica Indiana tomou nota das alegações e formou um comitê de supervisão para investigar o assunto. No entanto, três meses depois, o comitê se recusou a divulgar suas conclusões, fazendo com que as lutadoras retomassem o protesto em 23 de abril.

Sete lutadoras, incluindo uma menor de idade, apresentaram queixas de má conduta sexual contra Brij Bhushan à polícia de Delhi. Mas a polícia não registrou essas queixas. Foi somente depois que as vítimas abordaram a Suprema Corte e o tribunal superior instruiu a polícia de Delhi a agir que outras medidas foram tomadas.

Brij Bhushan agora está enfrentando acusações sob a Lei de Proteção de Crianças contra Ofensas Sexuais (POCSO) de 2012 e sob disposições relativas a ultrajar a modéstia das mulheres. Sob essas graves acusações, Brij Bhushan deveria ter sido preso e apresentado a um magistrado imediatamente. No entanto, ele continua andando livre e até faz ameaças abertas contra as lutadoras, chegando a dizer que não deixará essas mulheres competirem nas Olimpíadas.

“O único medo que temos é que possamos ter que parar de lutar [profissionalmente]. Acreditamos que temos mais cinco anos no esporte, mas quem sabe o que o futuro nos reserva depois desses protestos. Também sabemos que nossas vidas podem estar em risco, porque enfrentamos não apenas Brij Bhushan, mas também outras forças poderosas, mas não tenho medo da morte”, escreveu Phogat.

A situação das esportistas indianas

“Nos últimos tempos, houve agressões a mulheres esportistas em diferentes níveis. A extensão dos ataques é tamanha que nem mesmo as lutadoras olímpicas vencedoras de medalhas foram poupadas. Isso significa que não há medidas de segurança em vigência nas federações e associações de esportes na Índia”, disse Jagmati Sangwan ao Peoples Dispatch durante a marcha à luz de velas em Delhi. Sangwan é vice-presidenta da Associação de Mulheres Democratas de Toda a Índia e ex-jogadora internacional de vôlei.

Sangwan explicou ainda: “O que está sendo divulgado na Índia por meio dessas atletas olímpicas que levantaram suas vozes é apenas a ponta do iceberg. Nos níveis mais baixos, há muitos casos de agressão e exploração sexual. Como os jogadores temem o custo de falar e levantar a voz, eles são forçados a ficar calados”.

Sangwan, Vinesh Phogat e Sakshi Malik são do estado de Haryana. O estado tem uma cultura próspera de incentivar as mulheres a entrarem em esportes e a jogarem em nível nacional e internacional.

“Quando essas meninas ganham medalhas em Olimpíadas e competições internacionais, muito mais meninas de áreas rurais e famílias pobres esperam por uma carreira no esporte. Mas se não houver medidas de segurança e as mulheres atletas acabarem sofrendo, as próximas gerações de meninas perderão a esperança de realizar seus sonhos”, disse Sangwan.

O que vem a seguir para o movimento?

Em 28 de maio, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi vai inaugurar o novo prédio do parlamento. O movimento das lutadoras decidiu realizar seu próprio parlamento feminino fora deste novo prédio no mesmo dia e exigir que o governo pare de proteger os agressores sexuais.

“Onde quer que as mulheres tenham levantado suas vozes contra a agressão sexual e a violência, elas não têm obtido justiça. O governo e suas agências estão protegendo os criminosos. Aconteceu em Haryana onde o ministro dos esportes Sandeep Singh assediou uma atleta muito conhecida. Nos mantivemos protestando constantemente por três meses. Ele foi forçado a deixar o cargo de ministro do Esporte, mas continua no gabinete do estado protegido pelo governo do BJP de Haryana”, disse Sangwan.

Mais da metade das federações esportivas nacionais não possui painéis de assédio sexual ou qualquer mecanismo para que as esportistas registrem suas queixas. O movimento levou a Suprema Corte da Índia a instruir todos os ministérios e secretarias a constituir tais órgãos de forma urgente, inclusive em todas as federações esportivas. Se isso for seguido de maneira legal, permitirá a verificação da violência sexual contra mulheres esportistas e abrirá o caminho para uma política esportiva amigável às mulheres e sensível ao gênero a ser implementada no país.

* Tradução de Lucas Peresin.