A presença do presidente venezuelano Nicolás Maduro, amparada por um apoio eloquente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tornou-se um grande destaque na Cúpula da América do Sul, realizada no dia 30 de maio em Brasília. Os representantes máximos dos 12 países do continente estiveram reunidos por algumas horas em um Palácio do Itamaraty tomado por profissionais da imprensa, diplomatas e assessores.
De acordo com analistas, a duração do encontro foi insuficiente para chegar a decisões mais concretas, conforme já era esperado, mas o bastante para fazer alguns movimentos a favor da integração, e outros das divergências. Afinal, a polarização política cresceu durante os sete anos sem reuniões entre os líderes da região, ao passo que muitos dos problemas comuns a todas as nações também se tornaram mais evidentes.
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Apesar dos ruídos, alguns dos objetivos traçados pela diplomacia brasileira antes do encontro foram alcançados e registrados em uma declaração comum, chamada de "Consenso de Brasília". Sabendo das dificuldades de reorganizar a antiga União das Nações Sul-Americanas (Unasul), se iniciou um diálogo de longo prazo para a criação de um novo fórum de integração para o continente.
Porém, os protestos anti-Maduro, puxados pelos presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric, se tornaram um prato cheio para quem preferiu focar nas turbulências do processo. Algo que já havia acontecido anteriormente em fóruns internacionais dos quais Lula participou durante o primeiro semestre de governo, de acordo com a internacionalista Maiara Folly, diretora executiva da Plataforma Cipó.
"A gente viu isso, por exemplo, na Cúpula do G7, onde o Brasil teve um momento super importante para a diplomacia brasileira. Houve encontros bilaterais com as maiores economias do mundo, tanto dos países desenvolvidos como em desenvolvimento, e focou-se basicamente numa reunião que não aconteceu com o presidente da Ucrânia. As falas do presidente Lula foram ótimas, foram três, quase não receberam atenção. Acho que algo parecido está acontecendo com esse encontro dos chefes de Estado", avalia.
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Com a proximidade de eleições na Argentina e no Equador, o quadro de alternância de poder e de matizes ideológicos pavimenta um caminho tortuoso para a efetivação de planos mais ambiciosos, como a consolidação de uma moeda comum ou um fórum de segurança da região. "Se o diálogo político sul-americano pretender avançar, será pelo reconhecimento dessa pluralidade", afirma Alcides Costa Vaz, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).
Crise iniciada na véspera
Com o retorno de Nicolás Maduro ao Brasil pela primeira vez desde 2015, as críticas ao presidente brasileiro já começaram na véspera da cúpula (29), após o encontro bilateral do Brasil com a Venezuela. Recebido com a pompa devida a um chefe de Estado no Palácio do Planalto, o venezuelano estava à vontade no encontro com seu homólogo e durante a coletiva de imprensa.
Na ocasião, Lula fez críticas aos países europeus que reconheceram o autoproclamado presidente Juan Guaidó, seguindo orientação dos Estados Unidos. Também relativizou as alegadas violações de direitos humanos no país vizinho dirigindo-se a Maduro: "Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, da anti-democracia, do autoritarismo. Então, acho que cabe à Venezuela mostrar a sua narrativa para que possa efetivamente fazer as pessoas mudarem de opinião", disse.
Para Maiara, o presidente brasileiro causou ruídos que poderiam ser evitados, pois a animosidade da Venezuela com os pares que chegariam no dia seguinte já era conhecida. "Pelo que entendi, nas conversas privadas, houve um debate sobre a necessidade de a Venezuela ter eleições limpas em 2024, que sejam observadas internacionalmente e que sejam aceitas pelos partidos de oposição. Infelizmente, não foi isso que foi dito na entrevista", relembra.
Vaz também concorda que a sinalização de Lula não ajudou a gerar um ambiente favorável durante a cúpula, ajudando a desviar a atenção sobre o significado político da reaproximação. "Felizmente, isso não comprometeu o compromisso. Aquilo que consta na declaração expressa uma vontade política e uma construção de agenda", comenta.
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Mesmo sem apoio de boa parte dos demais presidentes sul-americanos, o Brasil pavimentou o retorno ao diálogo com um país importante da região, aproveitando seu prestígio para chamar atenção às sanções aplicadas à Venezuela. Inclusive Boric, ao criticar o governo venezuelano, reconheceu que os impactos dos bloqueios norte-americanos são desproporcionais e impactam a camada mais vulnerável da população local.
"Foi um equívoco do governo anterior romper relações com um país que compartilha 2 mil km de fronteira com o Brasil. A gente tem uma série de questões pragmáticas para lidar com a Venezuela, comerciais, financeiras, que envolvem dívidas, questões de crime organizado, de fluxo de pessoas. Nós tivemos um período de grande migração ao Brasil por via terrestre e não tínhamos nenhum tipo de relação. Então, retomar o contato com a Venezuela, tanto do ponto de vista bilateral, quanto da integração regional, eu vejo como positiva", afirma Maiara Folly.
Construção de pontes multilaterais
Apesar do documento resultante do encontro conter apenas nove parágrafos, o que Maiara considera uma declaração "vaga e curta", ela ressalta a identificação de áreas gerais que podem ser melhor exploradas, como meio ambiente, saúde, crime organizado e infraestrutura. "O que houve de concreto mesmo foi o sinal de que voltarão a se reunir em algum momento e que haverá essa construção de mapa de caminho."
Em seu discurso de abertura enquanto anfitrião do evento, Lula sinalizou a intenção de estabelecer um prazo de 120 dias para que esse mapa de caminho fosse desenvolvido, o que não foi incluído no texto final. Ela também menciona a desconfiança gerada com a possibilidade de um retorno da Unasul, mesmo que sob outro nome e formato, o que acredita ser contra a vontade de algumas partes.
"Isso não deve servir de desestímulo. Acho que há uma concordância que é importante, de alguns níveis de coordenação. Considerando o momento político em que vivemos – as eleições na Argentina que podem mudar um pouco o cenário, por exemplo – esses canais talvez sejam menos institucionalizados e mais técnicos", afirma Maiara, em referência à possibilidade do diálogo ser mantido entre os chanceleres de cada país.
Para o professor Vaz, a restauração de um diálogo, por si só, já é positiva, assim como uma sinalização de agendas para o futuro, mesmo que sem grandes ambições. "O que foi colocado no documento é factível, embora ainda careça de maior clareza com relação às formas de implementação", afirma. "O primeiro momento é mais de reaproximação e cautela. As clivagens ideológicas persistem, estão aí, devem ser reconhecidas, e foram elas que sacrificaram esse processo a troco de nada", enfatiza.
Além de Boric, que é de centro-esquerda, Alberto Fernández, que encampa a esquerda argentina atualmente, o colombiano Gustavo Petro, o boliviano Luis Arce, Maduro e o próprio Lula reforçam o campo canhoto na América do Sul. Já mais à direita, atualmente estão Lacalle Pou, o equatoriano Guillermo Lasso e o paraguaio Mario Benítez, que em breve será substituído por Santiago Peña, outro conservador.
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Conforme lembra Vaz, um contexto totalmente diferente do encontrado nas primeiras cúpulas sul-americanas, que remontam ao início do século. Por isso, defende que a própria diplomacia brasileira se reinvente, inove em estratégias e discursos, evitando se ater a fórmulas bem sucedidas do passado.
"A retomada do diálogo em mais alto nível é imprescindível diante de todos os desafios domésticos como sul-americanos no contexto hemisférico e do ponto de vista global. Os problemas que nós compartilhamos, como crime organizado transnacional, realidades de fronteira, laços econômicos e comerciais das quais dependem empresas, empregos, o fluxo dos investimentos, nossa infraestrutura. Tudo convive em condição de interdependência, então cada país é suscetível às decisões dos seus vizinhos", finaliza.
Edição: Nicolau Soares