Ataques de drones atingiram a capital russa no começo da semana. Enquanto o Kremlin acusa o governo ucraniano pelas ofensivas em áreas residenciais, Kiev mostra capacidade de avançar cada vez mais dentro das fronteiras da Rússia.
A cidade russa de Shebekino, da região de Belgorod, que faz fronteira com a Ucrânia, sofreu intensos ataques das forças ucranianas na última quinta-feira (1º). De acordo com o governador da região, Vyacheslav Gladkov, duas pessoas morreram e 16 ficaram feridas. Três prédios administrativos, um conjunto habitacional e dez empresas e instalações comerciais foram danificados. Não há eletricidade nem abastecimento de água na cidade.
As autoridades locais começaram inclusive a evacuar a população civil de Shebekino, que fica localizada a cinco quilômetros da fronteira com a região de Kharkov, na Ucrânia. Pedidos de evacuação de assentamentos fronteiriços em Belgorod já ocorreram antes, mas pela primeira vez a decisão de evacuar residentes diz respeito a um centro regional com uma população de 40.000 pessoas.
A escalada da guerra para dentro de Belgorod não é um fato pontual. A região tem sofrido com intensos combates há meses. As autoridades locais relatam que somente durante o mês de maio, houve 130 bombardeios incluindo artilharia, drones e operações dos sistemas de defesa antimísseis. Para efeito de comparação, até setembro de 2022, o número de relatos de bombardeios por mês não havia ultrapassado nove episódios. Desde então, este número foi aumentando gradualmente.
Na prática, essa escalada carrega um importante peso simbólico, pois significa que um território russo está de fato dentro da guerra, quebrando a narrativa que o Kremlin construiu para a opinião pública da Rússia sobre a intervenção na Ucrânia: em tese, tratava-se de uma operação militar especial no país vizinho sem custos para a população civil russa.
Esse simbolismo ficou mais escancarado quando incursões de aeronaves não tripuladas atingiram a capital russa. Na última terça-feira (30), Moscou foi alvo de uma série de ataques de drones que atingiram bairros residenciais. De acordo com o Ministério da Defesa, oito drones atingiram a cidade e seus arredores horas depois de Kiev ter sofrido ataques aéreos por parte da Rússia. A pasta afirmou que a defesa conseguiu repelir com eficácia a ofensiva. Não houve vítimas.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, afirma que os ataques em Moscou fazem parte da estratégia ucraniana de aumentar o “custo” da guerra para o Kremlin.
De acordo com ele, essa estratégia é baseada não em intervir na Rússia, mas mostrar que tem condições de atingir a Rússia dentro do seu território e “manter uma pressão permanente, aumentar-lhe o custo da guerra e mostrar que qualquer ação da Rússia terá resposta do lado ucraniano”.
“A Ucrânia mostra que pode responder qualquer passo agressivo, qualquer bombardeio, e, com essa resposta, o custo será maior. Então a Ucrânia irá se esforçar para realizar um golpe mais doloroso à Rússia para que a Rússia entenda que esse custo está aumentando”, argumenta.
Ignatov observa que as demonstrações da Ucrânia de que pode atingir a Rússia em seu território “não têm muito sentido militar” no contexto da guerra. No entanto, esses ataques “representam mais uma intimidação e a demonstração de fraqueza e ineficiência dos sistemas de defesa da Rússia”. No entanto, ele pondera que todos os fatos indicam que os sistemas de defesa conseguiram repelir os ataques a Moscou ou desviá-los de possíveis alvos mais estratégicos.
“Não dá pra dizer que [os ataques] foram bem sucedidos do ponto de vista militar, mas do ponto de vista psicológico e simbólico é um passo muito importante, porque as pessoas em Moscou estão pensando: ‘e o que vem pela frente?’. Nós vemos nos últimos dois meses que o grau de escalada está sempre aumentando”, destaca.
Oficialmente, a Ucrânia nega o envolvimento pelas ações na capital russa, mas o assessor do presidente da Ucrânia, Mykhailo Podolyak, disse: "estamos felizes em observar" e previu mais ataques em território russo.
O presidente russo, Vladimir Putin, por sua vez, classificou a ofensiva como um “ato de terrorismo” e acusou o governo de Kiev de atacar áreas residenciais. Ele alegou que, ao contrário das Forças Armadas da Ucrânia, o exército russo só realiza ataques de precisão contra instalações de infraestrutura militar, como o quartel-general de inteligência militar da Ucrânia, que teria sido atingido, nas suas palavras, “dois ou três dias antes”.
No entanto, a capital ucraniana apenas durante o mês de maio foi alvo de 17 ataques russos realizados com drones, inclusive na véspera dos ataques em Moscou. O cenário de pânico é comum nas ruas de Kiev, com a população buscando refúgio em locais seguros durante os bombardeios russos. Como resultado de um ataque aéreo na noite da última quinta-feira (1º), foram relatadas três mortes de civis e outros nove feridos. Fragmentos de projéteis de bombardeio russo danificaram uma clínica e um prédio residencial.
Grupos paramilitares russos do lado ucraniano
A penetração da guerra para dentro do território russo também acontece com a ajuda grupos paramilitares russos que lutam do lado ucraniano. Autoridades ucranianas afirmam que organizações como “Legião da Liberdade da Rússia” e do “Corpo de Voluntários Russos” (RDK, na sigla em inglês) são compostos por cidadãos russos voluntários que lutam pela defesa da integridade da Ucrânia. No Kremlin, eles são classificados como “sabotadores”.
Estes grupos, apesar de não muito numerosos, ganharam notoriedade através da tática de incursões militares pontuais na região de Belgorod. O ex-deputado russo Ilya Ponomarev, que vive na Ucrânia desde 2016 e hoje é ligado a esses grupos, disse ao Brasil de Fato que o objetivo final destas entidades no contexto da guerra é a “derrubada de Putin e a libertação da Rússia”.
Na última sexta-feira (2), tanto a Legião da Liberdade da Rússia quanto o Corpo de Voluntários Russos lutando ao lado da Ucrânia, anunciaram um novo ataque à região de Belgorod. De acordo com Ponomarev, a operação na região de Belgorod está em continuidade. “A Legião da Liberdade da Rússia” e o RDK estão manobrando pela região, “‘esticando’ as forças inimigas e atacando em lugares inesperados”, comenta.
EUA não apoiam ataques em território russo
O aprofundamento dos conflitos militares para dentro das fronteiras russas, no entanto, pode criar dilemas para a diplomacia do presidente Volodymyr Zelensky na sua interação com o Ocidente. A condição para a ajuda militar e financeira sem precedentes que a Ucrânia recebe dos aliados ocidentais é que os armamentos sejam usados para a retomada de regiões ucranianas controladas pela Rússia, e não contra o território russo.
Logo após a ofensiva de drones em Moscou, o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, John Kirby, reafirmou a política da Casa Branca de não apoiar ataques do exército ucraniano em território russo.
De acordo com ele, o lado ucraniano garantiu aos EUA que não usaria armas recebidas do Ocidente para tais ataques.
"Pretendemos continuar a fornecer a eles o que precisam para se defender e proteger seu território, solo ucraniano, mas não apoiamos ataques à Rússia", disse Kirby.
O analista Oleg Ignatov aponta que, desde o início do conflito “estava claro” que os EUA têm receio de um conflito direto com a Rússia. “Eles não querem que o seu fornecimento de armas seja um pretexto para uma drástica reação do lado da Rússia, como um cenário nuclear, por exemplo”.
Por outro lado, ele observa que os EUA não têm pleno controle sobre a Ucrânia. “A Ucrânia tem sua própria liderança, é um Estado soberano, e eles não escutam sempre os americanos, não se aconselham com os americanos sobre tudo, e não contam tudo aos americanos, e os próprios americanos já declararam repetidamente que muitas vezes não têm conhecimento pleno dos planos ucranianos”, analisa.
Mesmo sem o reconhecimento direto ou aval explícito da Ucrânia sobre as ações militares em regiões russas, a escalada do conflito durante todo o mês de maio mostra que a guerra em territórios da Federação Russa já é uma nova realidade deste confronto.
“Há muito tempo que a guerra está entrando para dentro do território da Rússia, e a Ucrânia está gradualmente indo nessa direção, porque ela espera que isso faça com que a opinião pública na Rússia comece a mudar, que a opinião pública veja que o Estado russo conduz a guerra ineficazmente, que não está ganhando a guerra, e que o Estado russo não tem uma estratégia que lhe dê êxito, que precisa negociar sobre como sair dessa guerra. Esse é o sentido das ações ucranianas”, completa Oleg Ignatov.
Edição: Thales Schmidt