No dia 6 de junho de 2013, uma quinta-feira, saiu às ruas de São Paulo o primeiro ato contra o aumento da passagem no transporte público na capital paulista, que saltava de R$ 3 para R$ 3,20, organizada pelo Movimento Passe Livre (MPL). Eram cerca de 5 mil manifestantes atrás de uma faixa do movimento que prenunciava: “Se a tarifa não baixar, a cidade vai parar”.
Àquela altura, o movimento já havia organizado ações em terminais de ônibus, estações de metrô e comunidades desassistidas pelo transporte público nas quatro regiões do município. Em janeiro de 2013, após uma série de manifestações em Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo, o prefeito havia revogado o aumento da passagem, que havia subido de R$ 3 para R$ 3,30.
No mês de abril daquele ano, em Porto Alegre, a Justiça cancelou o aumento da passagem, que custava R$ 2,85 e subiu para R$ 3,05. A decisão veio após duas semanas de manifestações no município.
Antes. para evitar aumento da inflação, a presidenta Dilma Rousseff (PT) havia pedido ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, filiado ao PSDB na época, e ao prefeito da capital paulista, Fernando Haddad (PT), que adiassem o aumento na tarifa do transporte público, previsto para janeiro de 2013.
Ambos aceitaram o pedido da presidenta e adiaram o aumento de R$ 0,20, que foi oficializado apenas no dia 1° de junho. Na noite do 6 de junho, houve protestos no Rio de Janeiro (RJ), em Goiânia (GO) e em Natal (RN). Todos os atos terminaram com violência policial.
Em São Paulo, a Tropa de Choque da Polícia Militar (PM) barbarizou os manifestantes e dispersou o grupo quando este estava na avenida 23 de maio, na zona sul da capital paulista. Um manifestante foi preso.
No dia seguinte, 7 de junho, o MPL voltou às ruas de São Paulo. Passava de 19h30 quando a Polícia Militar, mais uma vez, lançou bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha contra cerca de cinco mil manifestantes que se concentravam na avenida Paulista, na altura do Museu de Artes de São Paulo (MASP). Apesar do ataque, o grupo seguiu até o Largo da Batata, onde encerrou a manifestação.
No dia 11 de junho ocorreu o terceiro ato do MPL, já com 12 mil manifestantes. Em 13 de junho, a quarta manifestação da série, as autoridades paulistas já falavam em 60 mil pessoas nas ruas. Nesta data, a Polícia Militar promoveu um massacre, ferindo centenas de manifestantes e prendendo 200 pessoas.
Em 14 de junho, a mídia já falava da “Revolta do Vinagre” e nas redes sociais se distribuía manuais de defesa contra a violência policial. Haddad e Alckmin seguiam irredutíveis sobre o aumento da condução, apesar da pressão da opinião pública. Em evento em Paris, ambos cantaram “Trem das Onze”, acompanhados de uma banda, enquanto as manifestações cresciam na cidade.
O aumento da passagem foi cancelado em 19 de junho, em uma constrangedora entrevista coletiva no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual, onde Haddad e Alckmin anunciaram publicamente a revogação.
Dez anos depois, junho de 2013 garantiu uma sala no panteão da História brasileira. Há uma fartura disponível de análises sobre seus variados impactos na política nacional. Protagonista daquele epopeico mês, o MPL voltou às ruas sempre que houve aumento da passagem e ainda segue ativo, mas sem provocar tanta repercussão.
Lucas Monteiro, que integrava o MPL em 2013 – saiu do movimento em 2015 -, celebra que, após dez anos “cada vez mais cidades aplicam a tarifa zero, que deixou de ser uma pauta de esquerda e se tornou mais ampla”.
Há um arrependimento que acompanha Monteiro. “A janela histórica que perdemos é que existia ali uma possibilidade de transformação social, de organização de trabalhadores que estavam na rua lutando. Isso me incomoda.”
Hoje professor do Ensino Médio, Monteiro lembra da relação com Fernando Haddad. “Me surpreendeu, porque achávamos que ele seria muito mais hábil do que foi. O que ele e o PT fizeram, como um todo, foi tentar desmobilizar as manifestações, o José Eduardo Cardozo (ministro da Justiça) chegou a oferecer a Força Nacional para o governador Geraldo Alckmin para reprimir as manifestações. O Haddad nos chamou de vândalos.”
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Lucas, qual a lembrança mais rica que você tem sobre aquele junho de 2013?
Lucas Monteiro: Nós vimos a população tomar conta da cidade, vimos a população enfrentar, sem apoio algum a princípio, as duas maiores máquinas partidárias do Brasil na época, o PT e o PSDB, e a população ganhou.
Naquele ano, atipicamente, as manifestações não ocorreram em janeiro e fevereiro, mas em junho. O que você recorda das negociações com o poder público?
Tinha uma dupla situação ali. A passagem aumentou em junho, mas sabíamos desde janeiro que aumentaria. Em janeiro, o Haddad ia soltar o aumento, mas a Dilma pede para ele segurar. Existia uma preocupação de não desgastar a imagem internacional do Brasil, porque o país ia sediar a Copa das Confederações e a Copa do Mundo.
Quando o Haddad e o Alckmin anunciam o aumento, eles viajam para Paris, para defender a candidatura da cidade de São Paulo como possível sede para um evento internacional. Estávamos cientes desses bastidores e achávamos que isso, em alguma medida, poderia cooperar para que houvesse adesão aos atos.
Nossa primeira opção era não focar no prefeito, apenas na redução de tarifa, porque achávamos que haveria um desgaste atacar um político ou outro, porque perderíamos a base eleitoral desse político. Para fazer as manifestações neste momento, dependíamos de mobilizar boa parte do eleitorado do PT, porque tínhamos trabalhos em regiões como o M’Boi Mirim que eram próximos de trabalhos de base do PT. Embora eles sejam ressentidos do que fizemos em 2013, nosso esforço foi não focar na figura do prefeito.
Mas Lucas, havia uma crítica de que o MPL focava os atos no Haddad.
Isso é objetivamente uma mentira. No primeiro ato, não fomos até a Prefeitura, vamos para a 23 de maio, estávamos de costas para a Prefeitura. No segundo ato, concentramos no Largo da Batata e vamos para a Marginal. O terceiro ato é na avenida Paulista.
O quarto ato sai do Teatro Municipal e sobe a avenida da Consolação. No quinto ato, vamos para o Palácio dos Bandeirantes. A única vez que vamos na Prefeitura é o sexto ato, quando tentam forçar a porta da Prefeitura.
Em 2011 nosso foco foi muito grande no (Gilberto) Kassab, perseguimos ele pela cidade. Na luta de 2013, não focamos no prefeito, houve um esforço de não fazer isso, porque se pressionássemos o Haddad, ele nos chamaria para uma mesa de negociação e não sairíamos ganhando, porque nossa única pauta era a redução de passagem.
Então, nossa estratégia era usar a cidade e promover uma movimentação, para que a população refletisse sobre isso. Acontece que o prefeito lidou muito mal com isso, ele não conseguiu lidar com o fato de não querermos negociar e propor uma solução, mas tínhamos uma pauta única, que era redução de passagem.
Na lógica do PT, enquanto partido da ordem, não tinha sentido isso, porque não tínhamos conciliação que não fosse a redução da passagem. Sabíamos qual era a lógica petista de contenção de movimentos sociais, mas não queríamos nos sentir contidos, queríamos propor uma discussão da ocupação da cidade.
Te surpreendeu a postura do Fernando Haddad naquele junho?
Me surpreendeu, porque achávamos que ele seria muito mais hábil do que foi. O que ele e o PT fizeram, como um todo, foi tentar desmobilizar as manifestações, o José Eduardo Cardozo (ministro da Justiça) chegou a oferecer a Força Nacional para o governador Geraldo Alckmin para reprimir as manifestações, o Haddad nos chamou de vândalos.
Olha só, enquanto ocorria as manifestações contra o aumento das passagens, o Haddad vai para Paris e canta “Trem das Onze” junto com o Alckmin em um evento, é um grau de descolamento das demandas populares muito grande, de não perceber o quão essencial era o transporte na vida da população. Mesmo quando eles anunciam a redução, ele não declara, deixa o Alckmin fazer a declaração, é uma inabilidade para lidar com as demandas populares muito grande.
Hoje, olhando em perspectiva, o que você acha que facilitou aquela adesão popular aos atos do MPL, que jamais tinha visto aderência tamanha?
Em São Paulo, em 2013, o que unificou foi o transporte público. Em outras regiões do país tiveram outras pautas, mas em São Paulo era sobre o transporte público. Não é à toa que em mais de 100 cidades a passagem foi reduzida.
Quando falamos de transporte público, estamos falando também de aumento salarial, porque as pessoas deixam de gastar dinheiro com passagem e passam a gastar com outras coisas, é um aumento salarial transversal, o que é uma grande vantagem para a vida dos trabalhadores. É claro que isso marca a experiência urbana, as pessoas reconheceram no MPL um movimento que estava na luta há muitos anos, claro que os atos eram menores, mas as pessoas já tinham ouvido falar do movimento, lido sobre, então construímos uma referência para as pessoas na luta por transporte público.
Além disso, não podemos ignorar que existia um contexto global de luta na cidade. Nos EUA, tinha o Ocuppy Wall Street, na Turquia, com praças ocupadas, e no Egito, onde havia uma juventude urbana organizada, embora não fosse uma luta urbana, havia um clima global de mobilizações intensas.
Evidentemente, isso influenciou os atos aqui, as pessoas perceberam que tinham a possibilidade de se manifestarem. Mas isso estoura porque a pauta era o transporte, que é uma forma de exclusão da cidade.
Como você acha que a esquerda organizada, movimentos e partidos, dialogaram com as manifestações?
Desde o início, as organizações partidárias participaram das manifestações, os setores da juventude do PT estavam lá, por exemplo. A questão é, uma parte desse grupo tentou mais se afirmar enquanto identidade de esquerda naquele espaço, do que com a pauta política.
Eles levaram as bandeiras partidárias, e para mim não tinha nenhum problema com as bandeiras partidárias, mas essa afirmação de identidade, no momento em que uma parte dessa esquerda era responsável pela repressão, não me parece ter sido a melhor estratégia.
Faltou ali uma leitura apurada de como potencializar aquela pauta. Mas olhe, não fossem essas organizações, as manifestações teriam sido muito menores, elas participaram, organizaram greve e mobilizaram gente para os atos. No momento em que passa a ter um público que a esquerda não está acostumada a lidar, ela não soube como incorporar esse público e dialogar com ele, o MPL também teve essa dificuldade.
Sobre esse público, quando o Alckmin anuncia a redução da passagem, ao lado do Haddad, no dia 19 de junho, há uma apelo da esquerda para que o MPL cancele o ato marcado para o dia seguinte, 20 de junho. Mas o movimento decide manter, para comemorar a vitória. Neste ato, as manifestações ganham uma proporção enorme e outras pautas, que não o transporte público, ficam evidentes. Foi um erro? Você se arrepende?
Era impossível cancelar um ato com 24 horas de antecedência, quando você é uma organização que não controla quem estará no ato. Eu não acho que tínhamos que cancelar o ato.
O que eu me arrependo é de não termos dado continuidade nos atos (depois do dia 20). O que devíamos ter feito era chamar atos pela tarifa zero, porque daria um sentido de continuidade pra gente e para aquelas pessoas, continuaríamos atuando numa pauta radical e muito transformadora.
Isso conseguiria fazer com quem conseguíssemos nos reorganizar enquanto movimento, o que não aconteceu. As pessoas queriam continuar militando conosco, mas não conseguimos incorporar essas pessoas.
Essa foi uma crítica ao movimento na época. Por quê vocês não conseguiam reunir mais militantes? Muita gente queria se aproximar do MPL, mas não conseguia.
Uma parte era uma limitação estrutural, porque o MPL não tinha uma base física. Outra coisa é que não temos terra, não temos unidade de propriedade para distribuir para as pessoas, como o MST ou o MTST, é mais difícil reunir as pessoas para falar de transporte.
Quando teve uma demanda grande de pessoas procurando o MPL, não soubemos nos organizar para fazer esse movimento crescer, não soubemos nos reinventar para ser uma organização horizontal com centenas de pessoas, não soubemos.
À Folha de São Paulo, o deputado federal Kim Kataguiri (UB-SP) disse que o MBL não existira sem as manifestações de 2013...
Pô, claro que não existiria, eles roubaram até o nome da gente. Isso é ridículo. A gente gritava “vem pra rua, vem” e os caras fundam uma ONG chamada “Vem Pra Rua”.
De alguma forma, as manifestações de 2013 ajudaram a direita a se encontrar e se organizar na rua?
Essa direita só se encontra na rua depois que somos derrotados. Em 2014, eles eram absolutamente irrelevantes. Em 2014, o que aconteceu é que o PT passou o ano perseguindo movimento que lutava contra a Copa do Mundo e se afirmando como o partido da ordem.
Os petistas dizem que 2013 foi responsável pelo golpe, mas em 2014 a Dilma foi reeleita, foram outras questões que fizeram isso com a Dilma, não a gente. Em democracias capitalistas saudáveis, por assim dizer, quando há grandes mobilizações de rua, cria-se novas estruturas para reincorporar essas demandas dentro do capitalismo, era isso que esperava-se que o PT fizesse, enquanto partido da ordem.
Mas o PT não fez isso, o PT terminou negando essas manifestações. A direita tradicional também nega essas manifestações. Nesse sentido, essa energia social que estava nas ruas fica solta e quem conseguiu organizar essa força é a extrema direita.
Mas essa tese, de que o junho de 2013 deu condições para uma série de reveses da esquerda, como o golpe de 2016, a ascensão de Bolsonaro e a afirmação da Lava-Jato, não tem nenhum sentido para você? Você a repele?
Quando começam as manifestações, o PT se reafirma como partido da ordem, não como partida das mobilizações populares. Em 2014, há uma traição do próprio programa eleitoral do PT, eles alienaram parte da base que votou neles e do eleitorado de esquerda. Nesse sentido, quem consegue se organizar ali, naquele vácuo, é a extrema direita.
Você sente, de alguma forma, que em 2013 se perdeu uma oportunidade histórica de mudar a realidade do transporte público no país?
A pauta não perdemos, ela continua existindo e cada vez mais cidades aplicam a tarifa zero, que deixou de ser uma pauta de esquerda e é mais ampla. A janela histórica que perdemos é que existia ali uma possibilidade de transformação social, de organização de trabalhadores que estavam na rua lutando.
Isso me incomoda. Mas não acabou. Em 2015, os secundaristas ocuparam escolas. Agora, os entregadores de aplicativo estão nas ruas. Tem uma perda de janela histórica, pois nossa janela era maior que isso, mas a luta por transporte continua no repertório da classe trabalhadora.
Edição: Rodrigo Durão Coelho