No oeste do Pará, a maioria das cidades se conecta pelos rios, que são a garantia de subsistência para grande parte da população. Mas as águas que ligam os municípios também podem esconder um inimigo invisível: o mercúrio. A contaminação pelo metal é silenciosa e está ligada a diversos fatores, entre eles a atividade garimpeira na bacia do Tapajós.
Organizações de pesquisa, saúde e de meio ambiente publicaram, no final do mês de maio, a análise dos níveis de mercúrio em peixes consumidos pela população da Amazônia Brasileira, com amostras coletadas em seis estados e 17 municípios, incluindo cinco cidades paraenses, entre março de 2021 e setembro de 2022.
Em entrevista ao correspondente santareno da Rádio Cultura FM de Belém, jornalista Miguel Oliveira, o professor Gustavo Hallwas, um dos autores do estudo, da Universidade Federal de Lavras, explica: "No Pará, do total de peixes amostrados, cerca de 16% deles estavam acima do limite recomendado de quantidade de mercúrio por grama de peixe”. Segundo ele, entre os municípios com os piores índices no estado está São Félix do Xingu, com 29%, uma área com forte desmatamento. “Muito provavelmente esse mercúrio vem do desmatamento que redisponibiliza o mercúrio natural do solo para os cursos d’água”. Já Itaituba, onde 21% dos peixes estavam acima dos limites recomendados, é uma região historicamente garimpeira. O professor explica que nesse município a origem muito possivelmente é de garimpos, muitos dos quais, ilegais. Santarém foi o município paraense onde as amostras apresentaram o menor índice de contaminação, mas nem por isso ficou isento (7,14%).
Enquanto alguns estudos avaliam os peixes, outros monitoram seres humanos. A professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Oeste do Pará, Heloísa Nascimento, coordena pesquisas realizadas pelo Laboratório de Epidemiologia Molecular (LEpiMol), que funciona na universidade e há 10 anos coleta dados sobre exposição mercurial em comunidades ribeirinhas do Baixo Tapajós e na área central santarena.
Em 2022, o monitoramento apontou que, de um grupo de 462 pessoas, 75% tinham no organismo níveis de mercúrio acima do limite considerado seguro pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que é de 10µg/L de Hg total no sangue.
“Isso quer dizer que eles apresentam concentrações suficientes para desencadear algum problema de saúde, mas não significa que todos estão doentes, visto que exposição é diferente de doença. No entanto, a preocupação é grande pois se trata de uma exposição crônica e muitas vezes os participantes apresentam concentrações muito acima do limite aceitável pela OMS, de modo que o risco de desenvolver algum problema de saúde é alto”, explica Heloisa.
A médica especialista em neuroimunologia e membro da Academia Brasileira de Neurologia, Larissa Ferreira, lembra que a OMS já declarou que a exposição mercurial é um problema grave de saúde pública. “Existem perfis diferentes de manifestações clínicas que podem ser agudas ou crônicas, mas em linhas gerais as variadas formas de exposição ao mercúrio existentes podem causar toxicidade pulmonar, oftalmológica, gastrointestinal, renal e principalmente neurológica, que são as que mais preocupam”, diz.
A atual etapa de pesquisa do LEpiMol dá um passo adiante e procura entender como a exposição mercurial tem afetado a saúde das populações a curto, médio e longo prazo. Com novas coletas biológicas feitas em 2022, até o momento já foi observado que a exposição ao metal não diminuiu e que há sintomas geralmente associados à intoxicação por mercúrio tais como tremores, alterações na fala e na audição, problemas gastrointestinais e também redução da memória.
“Não foi observado nenhum caso grave entre os participantes desta nova etapa da pesquisa. O que se tem de concreto é que a população desta região está exposta, que a exposição ao mercúrio é um problema de saúde pública na região do Tapajós”, diz Heloísa.
Outra constatação foi que mulheres em idade fértil apresentam níveis de mercúrio suficientemente alto para serem consideradas como grupo de risco em caso de gestação. A pesquisa está em andamento e deve ter seus resultados publicados em artigo no segundo semestre deste ano.
A médica neurologista Larissa Ferreira enfatiza que a preocupação se estende a mulheres que amamentam e crianças da primeira infância. “Enquanto os pacientes adultos com consumo excessivo de mercúrio orgânico podem ter efeitos neurocognitivos sutis, com déficit leve na motricidade fina, na memória verbal, na atenção, os efeitos em crianças e fetos expostas podem ser muito mais graves, por isso temos mais preocupação com esses grupos."
Protocolos e atendimento público
Em meio a pesquisas desenvolvidas por universidades e instituições de saúde e ambientais, um dilema enfrentado pelos órgãos de saúde e pacientes é quanto ao atendimento especializado para intoxicação mercurial: “não existe um protocolo nacional, nem estadual e nem municipal em relação a essa demanda”, disse Maria Lira, coordenadora da Vigilância Epidemiológica, órgão ligado à Secretaria Municipal de Saúde de Santarém (Semsa).
Sem protocolos para identificar os níveis de exposição ao mercúrio, o município não tem casos suspeitos notificados atualmente. A atuação da Semsa tem sido no sentido de levar orientações de prevenção aos moradores, principalmente das comunidades de rios, por meio dos agentes de saúde. O LEpiMol também colabora com a Semsa em ações de saúde e conscientização: “nossa preocupação principal é encontrar meios de prevenir os sintomas e assim promover a saúde destas populações”, conclui Heloísa.
A neurologista Larissa lembra que dois casos mundialmente conhecidos de epidemias de doenças neurológicas provocadas por consumo de alimentos contaminados por metilmercúrio são os de MInamata, no Japão, na década de 1940, e no Iraque em 1971. “Os sintomas dependem do tipo de mercúrio na natureza a que esse paciente está sendo exposto. Uma das maiores vias de exposição humana é o consumo de peixe contaminado por uma forma chamada de metilmercúrio, que se configura como uma das mais tóxicas e é facilmente absorvida pelo nosso sistema gastrointestinal e distribuída por todo o corpo.”
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Pescado na mesa
O consumo de pescado pela população amazônica está ligado a vários fatores culturais, econômicos e até mesmo geográficos. De acordo com constatações feitas pelo LEpiMol, nas áreas mais próximas dos rios esse consumo aumenta bastante. Heloísa Nascimento defende que os moradores dessas áreas tenham uma dieta mais variada, o que pode contribuir para que a absorção de substâncias tóxicas seja menor.
“Sabendo que o consumo de peixe é um hábito comum, e que as populações ribeirinhas não podem deixar de comer o peixe, recomendamos uma alternância entre o tipo de peixe consumido e a quantidade/frequência de consumo, numa tentativa de reduzir a dose diária absorvida durante a ingestão”, orienta.
Um dos maiores complexos de venda de peixes em Santarém fica na orla da cidade. Inaugurado em junho de 2010, a Feira do Pescado chega a comercializar na baixa temporada cerca de cinco toneladas por dia. A média triplica em outras épocas do ano.
Além do produto de origem local, é possível encontrar na feira pescado importado. “Tem peixe que vem do Amazonas e também do Mato Grosso, são os peixes criados em viveiro como o tambaqui. Fora isso, o pescado vendido e consumido em Santarém vem das nossas comunidades”, relata o administrador do espaço, Edvaldo Pinheiro.
A maior movimentação na Feira do Pescado acontece nas primeiras horas do dia. É comum encontrar diversas espécies e tamanhos, além do preço variado cobrado no quilo.
Desde dezembro do ano passado as equipes que trabalham na feira intensificaram o rastreamento dos produtos vendidos no espaço, para garantir a qualidade do peixe comercializado e dar mais segurança aos consumidores que vão em busca de peixe fresco na feira. “A gente precisa saber o que entra, o que sai, de onde vem e para onde vai. Isso foi um pedido feito até pela Ufopa para serem usados na universidade esses dados”, disse Edvaldo.
Seu Osvaldino Gama da Silva, de 52 anos, é pescador artesanal associado à Colônia de Pescadores Z-20 desde 2013, mas a arte da pesca foi um ofício aprendido ainda na infância. Morador da comunidade Pedra Branca, na região do Rio Tapajós em Santarém, hoje a renda dele é baseada nas saídas aos rios e lagos próximos, sempre com o suporte do cunhado ou da esposa. Segundo Osvaldino, o pescado capturado não é vendido nas feiras e mercados da cidade, mas consumido dentro da própria comunidade, uma forma de fomentar a renda e fazer circular na própria localidade peixes da região.
“Eu pesco mapará, dourada, filhote, jaraqui, depende muito da época. Vamos pescando o que cair na rede. Temos a preocupação de deixar esse peixe aqui mesmo na comunidade”, conta.
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O pescador já foi informado por entidades que atuam na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns (Resex) sobre as questões ligadas à exposição mercurial enfrentada na Bacia do Tapajós e destaca as ações de enfrentamento realizadas com os moradores. “Eu estava numa reunião semana passada na Aldeia Solimões, lá pesquisadores estavam fazendo testes para verificar se tinha mercúrio nos moradores. Aqui na comunidade ainda não fizeram isso, mas já fomos informados que vai chegar por aqui. Todos da minha família vão fazer, é importante a gente saber essas coisas.”
Apesar de na comunidade Pedra Branca não haver posto de saúde, seu Osvaldino diz que os atendimentos são feitos por equipes do barco Abaré, um hospital flutuante que leva serviços de saúde a comunidades mais distantes dos centros urbanos. Em caso de sintomas de qualquer doença, o atendimento na embarcação é garantido. “Eles dão esse suporte para a gente, seja de atendimento ou orientação”, enfatizou o pescador.
Na região do Rio Amazonas, as informações chegam principalmente pela televisão na casa do pescador Ivair Pereira Santos, morador da comunidade quilombola Saracura. Ele e a família têm grande preocupação quanto às questões ambientais ligadas à degradação de rios e florestas. “Não atinge só o Alto Tapajós, atinge também quem está desse outro lado Rio Amazonas, porque não é só lá que tem essas questões de garimpos ilegais. A gente tem muita preocupação nessa questão ambiental do mercúrio. Vivemos num Brasil com a lei do mais forte, os mais fracos são pescadores, os ribeirinhos, que são os que mais sofrem com tudo isso.”
Como na maioria das comunidades tradicionais, o pescado é fonte de subsistência e faz girar a economia local. Segundo Ivair, a captura de várias espécies é feita nas proximidades da própria comunidade de Saracura e também em localidades mais distantes no Rio Amazonas. Uma rotina que a família do pescador não pretende mudar. “Todos os dias a gente pesca, principalmente para comer e para vender também. Graças a Deus tem peixe, não muito, mas tem”, afirma.
*Reportagem para o Programa de Microbolsas Jornalismo Tapajós, uma parceria do Laboratório de Comunicação Amazônia e do Projeto Saúde e Alegria para estimular a produção jornalística de jovens profissionais da região
Edição: Glauco Faria