Cozinhar para enfrentar a crise econômica e se organizar politicamente para enfrentar o bloqueio. É assim que o Movimento de Mães Territoriais define seus objetivos na pequena cidade de Cumanacoa, interior da Venezuela, a 500 km da capital Caracas. Formado majoritariamente por mulheres, o movimento é responsável por dirigir o programa social Casas de Alimentação, que visa atender a população vulnerável da região oferecendo refeições diárias.
Fundadas em 2004 pelo ex-presidente Hugo Chávez, as casas surgiram como uma política pública para atender pessoas de baixa renda. Em 2016, no entanto, frente às dificuldades econômicas trazidas pela crise, o governo cogitou encerrar o programa, mas terminou o entregando ao Ministério das Comunas, o que significou, na prática, passar o comando aos movimentos populares.
Em Cumanacoa, a experiência fez com que as Casas de Alimentação ultrapassassem uma função assistencial de política pública e servisse também para organizar e formar politicamente as mulheres da região.
Nesta quarta-feira (7) é celebrado o Dia Mundial da Segurança Alimentar. A data é definida pela ONU e serve para alertar sobre os riscos de fome e da subnutrição em diversas partes do mundo. Nos últimos anos de crise econômica, a Venezuela perdeu posições no ranking mundial e hoje enfrenta diversos obstáculo sociais. Em 2014, o país chegou a ser considerado como modelo para o combate à fome, após conseguir fazer com que 98% da população consumisse pelo menos três refeições diárias. No entanto, os impactos da crise agravada pelas sanções dos EUA contra o país fizeram com que a Venezuela tivesse o nível mais alto de subalimentação da América do Sul em 2022, segundo a FAO.
Ao Brasil de Fato, Yolenny Velásquez, coordenadora do Movimento de Mães Territoriais, explica que as funções das mulheres responsáveis pelas 20 Casas de Alimentação que existem no município vão além da cozinha.
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"Somos responsáveis não somente por preparar os alimentos, mas também pelo organizativo, no âmbito comunal, nas lutas dos povos, na organização de base. Então, o movimento nasce dentro das casas e, hoje, somos um movimento de Mães e Pais Territoriais, porque também temos homens na equipe, totalmente feministas, dominados e controlados por essa tropa de mulheres", diz.
As mulheres se dividem em 12 comitês, que servem como núcleos organizativos em cada uma das comunidades do município. Elas explicam que suas atividades políticas passam, em primeiro lugar, por repensar o papel da mulher na vida cotidiana, seja dentro de casa ou nos bairros onde vivem.
"Por isso colocamos o nome 'territorial', porque estamos ligadas ao nosso território, aos nossos bairros, às nossas comunidades, conhecemos a todos e todos nos conhecem e sabem que podem contar conosco para enfrentar os problemas diários trazidos pela crise", explica Velásquez.
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Entre os comitês criados pelo movimento estão o de economia produtiva, defesa, formação e até mesmo de recreação, que se encarrega da preparação de eventos em datas festivas. Do total, 10 deles são coordenados por mulheres e apenas dois homens ocupam um posto no conselho de comitês.
A ligação do Movimento de Mães Territoriais e das Casas de Alimentação com outras organizações populares se dá através do Comitê de Comunas e Movimentos Sociais, dirigido por Elismar Bravo.
Responsável pela Casa de Alimentação do pequeno povoado de La Manga, Bravo explica que atualmente, através de um convênio com a prefeitura, elas conquistaram um salário para todas as mulheres que fazem parte do projeto. Além disso, ela elogia a condução feminina do movimento e destaca a importância da autonomia conquistada pelas lideranças sociais da região.
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"Tem sido excelente, porque antes nós éramos discriminadas, tínhamos que ser donas de casa. Agora não, a maioria das mulheres estão à frente de um CLAP [Comitê Local de Abastecimento e Produção], à frente de uma prefeitura, ou seja, sempre ocupando alguma função social e política", afirma.
Crise econômica e dependência
Desde sua origem, em 2004, a função básica das Casas de Alimentação é garantir refeições diárias aos setores mais vulneráveis de comunidades em toda a Venezuela. Os anos de crise econômica, no entanto, afetaram amplamente a capacidade estatal de investimentos e o programa esteve ameaçado de ser interrompido.
Por outro lado, a demanda por projetos como esse aumentou, tendo em vista o nível de pauperização pelo qual o país passou. Desde 2014, ano de início da recessão venezuelana, até 2020, estima-se que o país tenha perdido mais de 75% do PIB.
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A queda no preço do barril de petróleo afetou imensamente a capacidade de investimento estatal e as sanções impostas pelos EUA, que se agravaram a partir de 2019, fizeram com que o país entrasse em um grave quadro de hiperinflação que retirou poder de compra dos trabalhadores e colocou muitas pessoas em situação de vulnerabilidade social.
"A partir de 2016 foi muito duro, foram anos de crise, de bloqueio, de ataques do imperialismo e se não fosse esse projeto, estaríamos em piores condições", afirma Yolenny Velásquez.
Segundo os dados mais recentes da Fundação Programa de Alimentos Estratégicos (Fundaproal), ligada ao Ministério da Alimentação, atualmente existem 3.943 casas em funcionamento em todos os estados do país, atendendo mais de 700 mil beneficiários.
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Já as 20 Casas de Alimentação em Cumanacoa atendem aproximadamente 5,5 mil pessoas por dia. Atualmente, o projeto recebe uma quantidade de alimentos enviados pelo Ministério de Alimentação e se encarrega das demais tarefas de gestão, como a de planejar, cozinhar e servir as refeições. Em Cumanacoa, ainda há bastante dependência das entidades estatais em relação aos alimentos, mas as mulheres querem mudar isso.
"Cerca de 70% do que cozinhamos vêm do Estado e 30% é produção local", afirma Velásquez. A liderança do movimento, no entanto, afirma que um dos objetivos é desenvolver pátios produtivos em cada uma das Casas de Alimentação para que o projeto possa ser cada vez mais autônomo e apoiar os produtores locais.
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"Temos a esperança de poder executar um projeto de plantio em larga escala, para que com essas safras possamos ampliar a diversidade dos menus que oferecemos atualmente nas casas", explica.
"Estamos vencendo as sanções e as muitas dificuldades que apareceram ao longo dos anos. Somos um povo resistente. Nós combatemos essa situação de crise com muito amor e muita entrega, cozinhando todos os dias em prol das nossas comunidades, para mostrar aos nossos vizinhos que há um caminho, que ainda há esperança", afirma.
Edição: Thales Schmidt