A articulação enfatizou o enfrentamento ao poder corporativo na violação aos direitos humanos
As últimas semanas têm sido intensas na relação entre o governo e o Congresso Nacional. A direita se mostrou muito bem organizada na Câmara dos Deputados e disparou uma ofensiva contra o governo na aprovação de mudanças na estruturação dos ministérios, especialmente no esvaziamento das competências dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. O clima do Congresso esquentou a pressão sobre o governo federal, exigindo maior concessão de espaço político para a direita conservadora. A bancada progressista enfrentou inúmeros desafios para barrar retrocessos, sofrendo derrotas na votação.
O ataque também ocorreu contra os movimentos e organizações populares. Isso se deu por meio da aprovação de duas Comissões Parlamentares de Inquérito: a do MST e a das ONGs, por meio das quais a direita pretende desgastar a imagem da luta social. Não podemos deixar de mencionar ainda a aprovação do PL 490/2007, que trata da tese do marco temporal para demarcação dos territórios indígenas na Câmara Federal. O projeto promove uma verdadeira destruição dos direitos constitucionais dos povos indígenas aos seus territórios.
A direita e as elites brasileiras não querem perder suas margens de lucro e pretendem desgastar a imagem do governo, inviabilizando que as propostas de campanha de Lula sejam implementadas. Isso nos coloca em um movimento mais amplo de resistência ao neoliberalismo em nossa região. Desse modo, a derrota das forças conservadoras está intimamente articulada às lutas anti-imperialistas. Em um contexto de intensa disputa da hegemonia global, as potências imperialistas buscam reforçar o domínio sob a região latino-americana e caribenha, impedindo que uma nova onda progressista se fortaleça. Assim, a elite brasileira não pretende abrir mão de seus privilégios e distribuir o mínimo de direitos, por isso está alinhada com os interesses das empresas transnacionais e das potências colonialistas, é comprometida com um projeto político de continuidade da extração de valor da nossa região para os países do capitalismo central.
Obviamente que as lideranças políticas da região estão atentas às movimentações do cenário internacional. Por isso, Lula convocou, na última semana, o "retiro" de presidentes da região, em Brasília. No centro da discussão, estiveram propostas de cooperação e de integração da América do Sul. Em Carta Final, os chefes anunciaram promover uma cooperação voltada à superação das vulnerabilidades e manter um calendário de encontros. Na oportunidade, Pepe Mujica, liderança uruguaia, enviou uma carta a Lula sugerindo que os erros do passado não se repitam e que sejam construídos projetos de integração com os povos, conclamando que os líderes não apenas estejam unidos, mas caminhem juntos.
Jornadas Continentais: um lugar para repensar a integração regional
Nos anos 90, os povos organizados da América Latina resistiram ao Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), que determinava o aprofundamento da subordinação dos países da região ao imperialismo norte-americano. Essa articulação venceu a iniciativa de aprofundamento da dependência, deixando um legado de organização popular e de integração de mobilizações que alimentou as lutas populares.
Em 2015, inspirados nessa luta, se funda a "Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo" em Havana, em Cuba. A Jornada Continental é composta por diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, que têm construído lutas locais, regionais e globais como frentes ao avanço do neoliberalismo, dos ataques à democracia e da retirada dos direitos dos povos da América Latina e do Caribe.
Reunidos em Brasília na semana passada, movimentos e organizações fizeram um balanço das jornadas. Para Nalu Farias, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), o avanço da direita na desestabilização da democracia trouxe muitas reflexões e aprendizados à esquerda, num cenário mais difícil "porque estávamos num contexto mundial de agudização do contexto capital x vida, em que cada vez mais esta ganância, esta força extrativista, neocolonial, se impunha com mais força, com muita perseguição aos movimentos e lideranças", aprofundando, opinou ela, uma racionalidade conservadora.
Juma Xipaia, secretária de Articulação e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas, também esteve presente na reunião. Ao abordar sobre os ataques aos direitos indígenas, afirmou: "nós jamais vamos recuar, abaixar a cabeça. Jamais iremos negociar os nossos direitos, tampouco os territórios". A liderança convidou a refletir sobre a integração latino-americana e do Caribe na percepção de como "tudo está conectado", explicando que as barreiras, fronteiras e delimitações territoriais são uma criação que podemos transcender.
Na mesma esteira da ancestralidade, Juan Almendares, da Amigos da Terra Honduras, refletindo sobre o bloqueio político e econômico da Venezuela, Nicarágua, Cuba e Honduras, aponta um caminho de luta que envolve ciência, poesia, técnica e ética, sobretudo uma ética de consciência anticapitalista e anti-imperialista. Para ele, em nossa região, as respostas aos nossos problemas podem ser encontradas em nosso passado ancestral.
Um dos temas de ênfase da articulação foi o enfrentamento ao poder corporativo. As organizações integrantes da Jornada estão envolvidas na construção de marcos normativos vinculantes para responsabilização das empresas transnacionais pela violação aos direitos humanos, como o Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos junto ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), e o PL nº. 572/2022, que cria a lei marco brasileira sobre direitos humanos e empresas.
Aproveitando a presença em Brasília, a Jornada mobilizou os parlamentares brasileiros para aderir a este movimento global. No âmbito internacional, existe a Rede Interparlamentar Global (GIN, sigla em inglês), na qual se engajam parlamentares comprometidos com a perspectiva de responsabilização das corporações. Na semana passada, 10 parlamentares brasileiros ingressaram na rede. Sobre a rede, Reginete Bispo, deputada federal pelo Rio Grande do Sul (RS), mencionou: "o capitalismo transnacional tem como base a supremacia. O centro do ataque somos mulheres negras e povos originários. Vamos nos articular e construir a integração regional para defender os povos indígenas, quilombolas e as mulheres da periferia".
A Jornada Continental, em sua proposta política, entende que a integração e a cooperação regional devem ser pensadas a partir das necessidades dos povos para viver com dignidade, como o acesso à saúde, educação, trabalho e infraestrutura. Em suas declarações, defende a importância de investimentos públicos em projetos alternativos de desenvolvimento, de bases mais solidárias e cooperativas, que atendam à preservação das formas de produção da vida integradas a um respeito aos bens comuns, como as formas de viver dos povos indígenas.
Na Declaração final do encontro da Jornada, os movimentos destacam a importância da reunião da cúpula do poder da região em Brasília. Segundo a carta, vivemos um momento em que a retomada institucional de um projeto de integração regional, de organização da resistência à ofensiva conservadora, está no centro da agenda política. No entanto, o envolvimento das bases, dos povos, no processo será decisivo para os rumos, tal como as palavras de Pepe Mujica: "não há cúpulas sem montanhas nas quais se apoiar, e essas montanhas são os povos".
Por muito tempo, as montanhas foram o habitar das forças de resistência às ditaduras e aos autoritários, atuaram como espaços da gestação de projetos de libertação regional. Este movimento promoveu uma junção simbólica entre povos e montanhas. Assim, na esteira de Mujica, se queremos que nos próximos anos as Cúpulas atuais estejam no poder, que não tenhamos que enfrentar novos movimentos fascistas na região, precisamos trabalhar na construção sólida das montanhas, tendo uma base popular que sustentará as transformações urgentes e necessárias que precisamos.
Edição: Thalita Pires