POVOS ORIGINÁRIOS

'Não se pode permitir que o marco temporal seja aprovado', diz médico que atendeu Yanomami

Alexandre Bublitz avisa que está na hora dos brasileiros se perguntarem se querem exterminar os indígenas e a natureza

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O pediatra e emergencista Alexandre Bublitz atuou no atendimento aos Yanomami em Roraima como voluntário da Força Nacional do SUS - Arquivo pessoal

O pediatra e emergencista Alexandre Bublitz atuou no atendimento aos Yanomami em Roraima como voluntário da Força Nacional do SUS. Professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e médico da Prefeitura de Porto Alegre e do Hospital Presidente Vargas, ele antes se uniu à organização Médicos Sem Fronteiras para enfrentar uma emergência sanitária na África, onde medicava ouvindo o pipocar das metralhadoras.  

Nesta conversa com Brasil de Fato RS ele compara as duas experiências, mas fala especialmente sobre o que viu nos rincões remotos da Amazônia. Conta sobre o estado terrível em que encontrou as crianças Yanomami, vítimas da devastação do garimpo criminoso e das doenças que os brancos levam, sobre a medicina dos xamãs e a dura tarefa de recuperar a estrutura de atendimento na região. Acompanhe:


Povo Yanomami (foto de Adriana Hubert/ Cimi Regional Norte 1) / www.cimi.org.br (2020)

Brasil de Fato RS - Como foi tua experiência de 20 dias trabalhando em uma missão do SUS junto ao povo Yanomami. O que você viu lá?

Alexandre Bublitz - Sou pediatra, e já trabalhei em missões humanitárias dos Médicos Sem Fronteiras na Nigéria e fui convidado para a missão com a Força Nacional do SUS, que foi criada já tem mais ou menos dez anos para dar respostas a problemas de saúde maiores, certos desastres. Desde a época das missões no Haiti, onde começou. O que se tem vivido com a população Yanomami é uma nova crise humanitária.

Quando houve a mudança do governo é que se viu o que acontecia lá com crianças com quadro de desnutrição importante. A partir dali, o governo federal começou a tentar reorganizar o sistema de atenção aos Yanomami. Inicialmente, tentou-se fazer algumas melhorias através da Sesai, que é a Secretaria de Saúde Indígena, mas era necessário mais. Então foi montado um Centro de Operações Especiais que é o COE, com o caráter de missão humanitária naquela região que pega tanto o Amazonas como Roraima.

:: Ataque de garimpeiros mata Yanomami e fere outros dois em Roraima ::

O local onde fui fica na região de Surucucu, em Roraima, bem dentro da mata. Ali é onde se vê o maior problema com o garimpo. Um pouquinho antes de eu viajar, no início de maio, foi assassinado um agente de saúde indígena e outros dois indígenas foram também baleados. Esses pacientes foram atendidos naquele polo onde fui trabalhar. Já havia lá um posto de atendimento de saúde indígena.

O mercúrio entra no organismo da pessoa e não sai mais

Só essa região tinha sido sucateada no último governo com corte de gastos e redução de pessoal. Ficou muito tempo sem ter médico. E teve um grande aumento do garimpo. E o garimpo, para que todo mundo entenda bem, trabalha sobretudo nas regiões próximas aos rios. A terra, junto com os minerais, é colocada para peneirar. E a água tira a terra e sobra só o ouro ou os outros minérios.

Junto com isso é utilizado mercúrio. Para que utilizam o mercúrio? É utilizado para purificar os metais. Então, se tenho uma pepita, mas tem algumas outras pedrinhas junto, coloca-se o mercúrio, ele se liga a essas impurezas e fica o ouro puro. E esse mercúrio contamina as águas. Uma vez que entra no organismo da pessoa não sai mais. O que acaba contaminando também os peixes e matando a natureza.

Os Yanomami, naquela região, tem pouco contato com o mundo branco. Conhecem, mas ainda estão um pouco afastados. Tem muito da sua sobrevivência a partir de plantação em pequenas roças de mandioca, banana, milho. Mas muito também da pesca, da caça e da coleta de plantas. Se o rio está poluído, perdem um local para poder pescar. E isso acabou agravando a situação. Junto com a violência sofrida pelo garimpo, em que os próprios garimpeiros entravam em conflito com os indígenas, tirando eles das suas terras para poder explorar, acabou dando esses diversos problemas de saúde como desnutrição infantil, muitos casos de malária e muita mortalidade.

As costelinhas aparecendo profundas, os braços fininhos, o abdômen grande por causa dos vermes

BdFRS - E como está hoje a situação das crianças? As fotos que vieram no início do ano foram muito chocantes. E muitas pessoas até diziam "Ah, isso é mentira. Isso é invenção"...

Bublitz - Os quadros de desnutrição infantil continuam. Eu atendia nesse polo montado e aperfeiçoado pelo governo. Havia uma equipe grande, a gente estava entre cinco médicos. Todos os dias eu via cinco crianças com desnutrição. Crianças de um ou dois anos, bem emagrecidas, com aquela face caveiresca que a gente fala. As costelinhas aparecendo bem profundas, os braços bem fininhos, mas com o abdômen bem grande por causa dos vermes. Muitos casos de verminose lá. Eu internava todos os dias crianças com desnutrição. Muitas com desnutrição moderada e muitas com desnutrição grave, severa, aguda também.


"Eu internava todos os dias crianças com desnutrição. Muitas com desnutrição moderada e muitas com desnutrição grave, severa, aguda também", afirma médico / Arquivo pessoal

Os casos de malária eram diversos. Malária é uma doença que não existia antes naquela região. Foi trazida pelos brancos. Pensem nesses locais de garimpo, próximos à água. Eles (os garimpeiros) desviam um rio e ali fica água parada que começa a ser local de replicação de mosquitos da malária. E a população adoece. A situação hoje não está mais tanto na mídia como antes.

O governo está dando uma resposta, mas existe ainda um longo caminho pela frente. As ações que o governo tem feito são fundamentais para a melhoria. Mas o garimpo continua lá. Quando teve a entrada da Força Nacional, quando o Exército foi para a região, boa parte dos garimpeiros foi embora. Mas aqueles que foram embora eram os que não tinham tanto poder. Agora, as facções, aqueles que tinham mais poder, esses permaneceram. Que são aqueles que estão armados, esses seguem lá. A situação ainda não está resolvida.

Muitos dos problemas de saúde que se vê no Norte são base para aqueles da população indígena do Brasil

BdFRS - Tu já participastes de outra missão na África. Que paralelo poderias fazer dessas duas situações?

Bublitz - Estive na Nigéria em 2019. Fiquei seis meses trabalhando num hospital de desnutrição infantil junto com o Médicos Sem Fronteiras, uma organização de ajuda humanitária. Era uma situação muito difícil porque a Nigéria estava em conflito naquela área. Lá estava o grupo o Boko Haram, (vinculado ao) Estado Islâmico. Enquanto a gente atendia ouvia tiros de metralhadora, de bombas. Era uma situação muito, muito, muito, muito grave. Aqui não se chega a esse ponto de calamidade. É uma situação crítica, de crise humanitária, mas em um nível um pouquinho abaixo. Mas me bateu de forma muito forte o que vivi aqui.

Na Nigéria, eu sabia que podia ajudar. Mas não era o meu país. E quem tem que tomar as rédeas para fazer as mudanças necessárias na Nigéria é a população nigeriana. Aqui, quem tem a responsabilidade somos nós. É uma coisa que é fundamental e que todo cidadão brasileiro precisa entender. A gente precisa fazer a nossa parte, seja trazendo informações corretas, seja dando apoio a esse tipo de movimento e, sobretudo, apoiando os movimentos indígenas.

Um paralelo que é importante fazer: eu estava lá no Norte do Brasil buscando ajudar a população Yanomami, mas muitos dos problemas de saúde que a gente vê lá são base para problemas de saúde da população indígena do Brasil inteiro. Não é diferente aqui no Rio Grande do Sul. Aqui, nós temos os Kaingang, nós temos os Guarani. Uma das formas que a gente tem para fazer isso é ajudar a dar voz a essa população. Não (para) a gente ir lá e dizer como é que tem que fazer. Mas a partir deles, tomando as rédeas da situação e propondo as suas próprias intervenções. Nosso papel é de escuta, de apoio. Eles têm que ser os agentes principais dessa mudança.

Eu fazia o atendimento com o conhecimento branco e a xamã fazia pela parte da cultura Yanomami

BdFRS - Os Yanomami têm uma sabedoria milenar. É um povo muito respeitado entre os indígenas. Como estão lidando com essa situação? Como se utilizam da sua sabedoria, sua cultura para conseguirem estar vivos no meio dessa situação toda, que não é só o garimpo, são várias, a questão dos madeireiros... São vários ataques que sofrem...

Bublitz - Respeito muito a cultura Yanomami. Pude conhecer dois xamãs. Um é o João, que era o chefe, o tuxaua de uma das comunidades, a comunidade Xokori. Pude ir até a comunidade, dormi com eles na maloca. Fiquei quatro dias lá. Fizemos um trabalho de atendimento de toda a comunidade, mais vacinação e tratamento de verminose. Fizemos triagem dos pacientes.

O João faz o processo de cura a partir da religião dele, através do Xapiri, que são os espíritos da floresta. Invocam os espíritos. Conheci uma outra xamã, uma mulher, a Simone. São poucas xamãs mulheres. Muitas existem pelo fato de muitos dos homens estarem morrendo. Então, algumas das mulheres tomaram a frente. A Simone é um desses casos. Ficava no polo base de Surucucu e, por várias vezes, a gente fez o atendimento em conjunto. Eu fazia o atendimento da parte médica com conhecimento ocidental, branco, digamos assim, e ela fazia pela parte da cultura Yanomami. E isso foi muito enriquecedor.

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A cultura indígena é muito forte. Graças a ela eles conseguem se manter unidos e lutar contra esses agravos. Eu quero dar uma dica: tenho aqui um livro que se chama "A Queda do Céu". É um livro do Davi Kopenawa, uma das mais importantes lideranças do movimento indígena. Ele é também um xamã. Tem também o domínio sobre a cultura, sobre a cura.

Nesse livro ele traz um pouquinho da história dos Yanomami. Traz a chegada do homem branco, que traz as doenças, a força do aculturamento. E traz agora essa parte da luta contra o garimpo. O que a gente tem visto é um genocídio. Temos levantamento do censo no passado (sobre a presença) de 35 mil indígenas naquela região. O último censo levantou só 25 mil. Se esses números estiverem corretos - e é difícil fazer censo naquela região - a gente pode ter chegado a 10 mil mortos.


"O que se tem vivido com a população Yanomami é uma nova crise humanitária" / Arquivo pessoal

BdFRS - Estamos na iminência de ser aprovado o PL 490 e a questão do marco temporal ainda vai piorar a situação...

Bublitz - O marco temporal é um grande problema para a população indígena. Para quem serve? Quem é que está apoiando? Os garimpeiros? Os madeireiros? Quem está depredando a natureza? São essas as pessoas que o marco temporal está ajudando. Queremos o extermínio dos indígenas? Queremos a depredação da natureza? Parte da culpa do que tem acontecido lá é nossa, é da população branca. E a gente precisa agir de uma forma diferente. Ser contra o marco temporal é necessário. Unir-se à luta da população indígena é necessário. Não se pode permitir com que esse marco seja aprovado.

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BdFRS - A Força Nacional do SUS continua com outros profissionais?

Bublitz - Ela continua. Sou um voluntário, trabalhador voluntário da Força Nacional do SUS. Não represento a Força Nacional e o que falo aqui não são as palavras da Força Nacional. São apenas de um médico que foi lá trabalhar de forma gratuita. A ideia da Força Nacional é de fazer intervenções emergenciais. Não é a ideia que ela fique lá para sempre. O que acontece hoje é uma reestruturação do Serviço de Saúde Indígena. O que se quer é que o Sesai consiga tomar conta daquela situação sozinho, sem ter a necessidade de uma missão emergencial. O que se precisa é de continuidade do processo de cuidado.

:: Metade da população Yanomami não está contabilizada, estima IBGE ::

Precisamos ter profissionais que não fiquem só 20 dias lá, mas sim que fiquem anos. Que conheçam a comunidade e que possam estar junto dela. É preciso haver maior incentivo para a contratação de profissionais. Hoje, há cinco profissionais contratados pela Sesai lá e são cinco (que vieram) pelo programa Mais Médicos. Então, é o Mais Médicos que está conseguindo levar profissionais para aquela região.

É o Mais Médicos que está conseguindo levar profissionais para aquela região

BdFRS - Enquanto se enfrenta uma crise humanitária entre os Yanomamis, no resto do país temos um outro problema que são os baixíssimos índices de vacinação, o que expõe também as crianças. Tua formação é de pediatria e gostaria da tua opinião.

Bublitz - Claro, sou pediatra e emergencista. Trabalho para a Prefeitura de Porto Alegre e no Hospital Presidente Vargas. O que vejo após sair da Amazônia é que a gente está vivendo um caos nas emergências pediátricas com superlotação e um alto número de crianças com problemas respiratórios. E a maior parte desses problemas poderia ser evitada com a vacina. São muitos casos de gripe, a maioria causados por influenza. A vacina da gripe hoje pega tanto o H1N1, a influenza do tipo A, a influenza do tipo B. Previne boa parte das infecções respiratórias mais importantes. Mas os pais pararam de levar as crianças para vacinar.

As vacinas não são perigosas, elas salvam

Antes, tínhamos índices de até 98% da população alvo sendo vacinada. Hoje, estão em torno de 50 a 60%. Na vacina da gripe, apenas 20% das crianças foram vacinadas. É um reflexo de toda aquela paranóia dos últimos anos sobre as vacinas. As vacinas não são perigosas, elas salvam. Hoje tem vacina também para pneumonia. Tem vacinação para meningite. Os mais velhos lembram que a gente já teve epidemias de meningite aqui em Porto Alegre, com muitas pessoas morrendo. E com vacina, hoje a gente consegue evitar boa parte dessas infecções.


Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Ayrton Centeno