Tenho a sensação de correr a maratona duas vezes mais do que um homem para chegar no mesmo lugar
Neste mês de junho completam-se 20 anos da morte de Itamar Assumpção, expoente da Vanguarda Paulista dos anos 1980. Junto a outros nomes da época, Assumpção decidiu romper com os processos de gravação e distribuição de canções para se tornar um artista independente em um mundo que ainda não sabia o que era streamings de música, plataformas de divulgação e sequer, internet. Apesar das dificuldades, gravou seu nome na história da música brasileira.
Nascido em 1949, no interior de São Paulo, se casou e foi viver no bairro paulistano da Penha - que hoje abriga uma estátua em bronze do artista. Enquanto entregava carnês pela região, começou a gestar seu primeiro disco, Beleléu, Leléu, Eu, lançado em 1980 por sua própria gravadora, a Lira Paulistana.
E este foi o caminho que sua filha, Anelis Assumpção, também optou em trilhar. Ao lançar seu quarto disco de estúdio, Sal, em dezembro do ano passado, Anelis honrou suas raízes ao comandar todas as fases de produção de seu álbum: foi produtora, compositora e pensou, em parceria com outras mulheres negras, todo o processo de concepção da obra.
Paralelo à gestão de sua carreira, Anelis luta para manter vivo o legado de seu pai, que faleceu em 2003, vítima de um câncer de intestino, na mesma Penha que adotou durante toda a sua vida artística. Em 2020, no mês da Consciência Negra, lançou o Museu Virtual Itamar Assumpção, o MU.ITA, um grande e vasto relicário da obra do artista, composto de vídeo-instalações, entrevistas, apresentações e muita história.
“Eu estou tentando manter a memória e trabalhar em função desse cuidado, dessa manutenção. Porque a maré a favor é a do apagamento mesmo”, afirma Anelis. “Somos um país estimulado a descartar as nossas memórias, nossas ancestralidades. Então eu acho que uma parte da minha missão é tentar mostrar para o Brasil e deixar isso cada vez mais acessível, para que as pessoas consigam reconstruir as suas identidades a partir de todo ancestral que veio antes.”
Itamar Assumpção teve 20 anos de carreira e gravou 12 discos - três deles foram lançados após sua morte. Para além de ser regravado por diversos artistas brasileiros, como Ney Matogrosso, Zélia Duncan, Cássia Eller, entre outros, Assumpção também teve uma importante carreira internacional. Anelis garante que defender seu legado não está ligado apenas a uma questão familiar.
“Essa história não é minha, é a história do Brasil, são símbolos políticos, são símbolos sociais. Através do Itamar, quantos outros artistas, pensadores e cientistas você não pode conhecer? Quantos foram apagados e retirados de nós, da nossa história, que impede a gente de entender um pouco sobre nós mesmos?”, questiona a artista.
Anelis Assumpção é a convidada desta semana no BDF Entrevista. E na conversa, além do legado de seu pai, ela fala sobre a geração de artistas paulistas de 2010 da qual fez parte, do desmonte dos espaços de cultura da cidade de São Paulo e o papel das mulheres na música.
“Quem coleciona obras de arte, quem é dono da galeria, quem faz a curadoria da exposição, quem é a maioria daqueles que dirigem filmes, produzem e roteirizam novelas, séries? Esses lugares, que são realmente os lugares de poder, porque eles exigem conhecimento, não foram dados às mulheres na mesma proporção”, afirma a cantora.
“Eu costumo sempre falar que eu, às vezes, tenho a sensação de que tenho que correr a maratona duas vezes mais do que um homem para chegar no mesmo lugar, falando sobre o mesmo papel. Acho que a gente precisa entender, primeiro, que isso é uma condição estrutural da nossa cultura, das nossas mães. As mulheres da minha idade, eu tenho 43 anos, poucas mães trabalhavam. As nossas avós, certamente, quase nenhuma”, completa.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Falando sobre o teu último álbum, lançado no final do ano passado, ele é teu quarto álbum de estúdio e, para mim, um dos mais bem produzidos e executados da tua carreira. Você traz diversas parcerias, em suma, com outras mulheres negras. Foi também a primeira vez que você assumiu a produção total do processo, não é?
Anelis Assumpção: É, foi uma coisa muito natural, muito orgânica, assumir essa produção. É um disco que brota na pandemia e ele precisava de espaço. Nesse processo de individualidade que a gente estava, de isolamento, ele precisou acontecer de uma forma que foi inédita, inclusive para mim, de co-produzir com outras pessoas e assumir mesmo a coordenação, a direção de tudo.
Em todos os meus outros trabalhos, eu também produzi, coordenei, mas sempre precisando muito do respaldo de um conhecimento técnico, ou de um know how que sempre, 100% das vezes, vem de corpos masculinos, de homens cisgêneros. Isso não é um problema, mas era um desafio muito interessante para mim, poder exercitar a produção através do conhecimento que eu já tinha, que difere tecnicamente de muitas produções clássicas.
Meu grande impulso foi tentar organizar como passar essa informação, como afirmar também, até como um gesto quase político mesmo das nossas capacidades, dos nossos saberes, dos nossos conhecimentos como mulheres no mundo, para sair dessa zona onde a gente se vê presa, engessada, como se você só pudesse existir daquela forma, só pudesse produzir com os produtores da vez, da moda. E todo ano, ou a cada cinco anos, aparece um nome de um produtor brasileiro que produz 10, 15 discos daquela década.
Então, é importante que a gente, assim como ainda temos que falar muito sobre a composição e a mulher nesse lugar da escrita, eu acho que pensar sobre produção e direção de trabalhos de arte são fundamentais. Acho que isso me moveu muito na pandemia, porque essas mulheres que estavam comigo no disco foram as figuras que eu mais troquei intimamente a vida, por um desespero de estar isolada e precisar de comunicação.
E a gente aprendeu muita coisa. Mais do que isso, nós colocamos em prática os saberes e conhecimentos que a gente já tinha por conta das nossas carreiras, embora as mulheres do disco estejam em lugares diferentes da carreira, tem gente lançando o primeiro disco, tem gente lançando o quinto, sexto. Mas a soma desses saberes foi algo impressionante para mim, quando a gente percebeu, na pandemia, que a gente sabia mais do que a gente sabia.
Você falou, e também vi um outro papo teu ressaltando isso, sobre a quantidade muito aquém de mulheres produtoras, compositoras, enfim. Tivemos recentemente a perda de algumas cantoras importantíssimas, como a Gal, que sempre foi uma intérprete. Estava vendo esses dias um documentário com a Bethânia, que é fantástica, também uma intérprete. Ou seja, os homens sempre estavam ali dando esse suporte. Como virar esse jogo e colocar mais mulheres como compositoras? É o mercado que sufoca isso?
É, eu acho que isso é cultural. Na nossa estrutura de educação e de cultura, como ela vem sendo construída em todos os campos, em todos os pensamentos da sociedade, é lógico que isso também iria se refletir nas artes e na cultura. É muito natural, porque a gente herda isso. A gente vê as mulheres na sociedade, hoje, com informações genéticas seculares de servir, de não serem corpos que dominam riquezas, que lidam com finanças, que lidam com máquinas. A nossa geração agora, na verdade algumas gerações atrás, vem alterando isso no campo das micropolíticas mesmo - e a música é uma micropolítica dentro do campo da cultura, que é absurdamente diverso.
Mas nas expressões de arte…quem coleciona obras de arte, quem é dono da galeria, quem faz a curadoria da exposição, quem é a maioria que dirige filmes, produz e roteiriza novelas, séries? Esses lugares, que são realmente os lugares de poder, porque exigem conhecimento, não foram dados às mulheres na mesma proporção.
Quando você começa a construir uma ideia de que as mulheres não podem estudar, é claro que você vai ter essa essa diferença e isso vai refletir por muitos anos. É o que a gente vive hoje. Quando a gente consegue trazer esse equilíbrio, pelo menos pensar sobre ele, a gente já quebra essa lógica.
Costumo sempre falar que eu, às vezes, tenho a sensação de que tenho que correr a maratona duas vezes mais do que um homem para chegar no mesmo lugar, falando sobre o mesmo papel. Acho que a gente precisa entender, primeiro, que isso é uma condição estrutural da nossa cultura, das nossas mães. As mulheres da minha idade, eu tenho 43 anos, poucas mães trabalhavam. As nossas avós, certamente, quase nenhuma.
Isso é muito forte na nossa cultura, a gente precisa realmente fazer essa força, falar sobre isso. Mas eu acho que quando trago um disco produzido por mulheres - o que quero dizer não é nenhum recalque, inclusive eu estou tentando propor uma reflexão sobre o pensamento de uma forma muito leve - fico feliz de ouvir você dizer que esse disco é um dos que você mais gosta, que acha que tem essa sofisticação.
Eu acho que ele cumpre essa função e a gente consegue em um, trazer 10. Então, basta uma canção produzida por uma mulher para a gente entender do quanto ela é capaz ou quão grandioso é o pensamento de produção daquela figura. Acho que isso é o suficiente para trazer essa reflexão.
Mudando um pouco de assunto, a cena paulistana de 2010, que inclusive virou livro, tem alguns registros, foi onde teu trabalho ganhou força e projeção. Essa cena não desapareceu por completo, porque vários daqueles personagens ainda continuam trabalhando, produzindo, mas ela perdeu aquela efervescência. Por quê?
Eu não sei, eu acho que à medida que a internet fica mais democrática e as pessoas têm mais acesso, a gente tem uma produção de conteúdo com uma certa “competitividade” - bem entre aspas - muito desnivelada e desigual. Porque a gente, como artista, está competindo com influencers, com pessoas aleatórias que produzem conteúdos e a gente fica numa dúvida.
Acho que a gente, a geração de 2010, foi um pouco fundada por esse lugar. A gente ainda está se indagando sobre isso: O que eu faço é música ou é conteúdo?; Onde é que está o meu trabalho? E nenhum problema com o conteúdo, inclusive, eu acho que ele traz um pensamento, ou uma ideia nova, sobre o que é a arte, de fato.
A gente também tem que exercitar esse lugar e tomar cuidado com essa arrogância que nós, artistas, tendemos a ficar, de acharmos que as nossas artes são superiores em relação a uma produção de conteúdo. Eu tenho três filhos e também sou completamente viciada na internet, e descubro conteúdos altamente artísticos de pessoas que não são artistas.
Isso me traz esse pensamento sobre o que é a arte, de fato. Acho que a gente teve esse lugar, por isso que eu falo que é um entre aspas essa competição, porque a gente está em disputa de território, nessa virtualidade: Como aparecer, como existir, como ser, como postergar o trabalho, como continuar fazendo show, fazendo disco?
Se você der uma busca agora na quantidade de projetos inscritos no edital do Proac, por exemplo, aqui em São Paulo, o aumento percentual em relação aos anos anteriores é gritante. Você tem quase 5 mil projetos inscritos para uma categoria onde a verba só vai contemplar quatro projetos.
Então, a gente ainda tem esse lugar, esses reflexos todos, que são da própria sustentabilidade do fazer arte no Brasil. Foi ficando insalubre à medida que os governos foram enfraquecendo, a gente também nota, e sente na pele, isso. A gente está falando de uma São Paulo que não tem mais tantas casas noturnas, não tem mais espaços para música ao vivo. De uma São Paulo que tem os aparelhos de Cultura como os centros culturais todos, inclusive os CÉUs, em um sucateamento muito triste.
Muitas vezes esses centros culturais são maravilhosos, localizados em lugares incríveis, em bairros onde a carência de acesso à cultura é muito grande e aquilo que poderia ser o lugar base daquela comunidade, está em desmanche. E há um desinteresse, um repasse de verba para que ele possa existir, completamente insignificante.
Acho que o que aconteceu com aquela geração de 2010 de São Paulo foi um pouco esse não lugar no mercado. Porque a geração anterior está engessada, emoldurada e eternizada no pensamento do que é a MPB para o Brasil - até uma ou duas gerações anteriores à nossa. Foram gerações que pegaram a FM, os jabás, as grandes gravadoras investindo.
E a geração de 2000 para cá já não tinha gravadora. As gravadoras já estavam todas falidas, a internet não era o que é hoje. Ela era de fato muito potente, muito rica artisticamente, mas a gente ficou nesse limbo, é um pouco um não lugar dentro desse plano cartesiano de existir, de fazer música e arte no Brasil.
Você vê agora a retomada dos Titãs, que é um grupo absurdamente famoso, no Brasil inteiro e eu estou chocada que eles têm três shows no estádio do Allianz Parque, esgotados. Isso é de um simbolismo absurdo. É um reflexo de um planejamento de uma banda que deu certo, até hoje. Talvez, poucos artistas da minha geração consigam vir a ser essa potência no mercado. A não ser que haja uma injeção de dinheiro muito grande, muita publicidade e muita marca em cima.
A gente vive também uma tentativa de desmonte do Sistema S: Sesc Senac, etc. O Sesc, principalmente, foi onde vocês, dessa geração de 2010, navegavam de uma maneira muito tranquila. E agora esse Sistema pode sofrer com uma falta de contribuição. Qual o significado disso?
Pois é, o Sesc acabou virando, praticamente, uma Secretaria de Cultura para a cidade de São Paulo. Virou o grande sustentáculo de todas as frentes de artes da cidade que é a maior cidade da América Latina. A gente fica observando e, realmente, está sobrecarregado para o Sesc. Um corte como esses significa desemprego, fechamento de unidades, é muito sério isso, mexer no que dá certo, no que está sustentando a sociedade, do ponto de vista da cultura.
Fora outros serviços que o Sesc já faz: saúde, educação, lazer e esporte, terceira idade. Os serviços prestados pelo Sesc são de um impacto profundo na sociedade e isso deveria ser imexível. A gente ter que, em 2023, pensar em como é que a gente vai salvar o Sesc, que é salvar a nossa própria pele... Vamos ter que encontrar uma forma dessa política, desses 5% que a Embratur precisa, vir de outras formas, não é possível que não haja uma política pública mais inteligente do que desviar do comércio, uma verba que sustenta há mais de 30 anos o Sesc.
A gente sabe que em São Paulo, o Sesc é um exemplo diferente de vários outros pontos do Brasil. Mas, mais do que isso, deveria, inclusive, ser uma grande referência de gestão, do que é possível fazer sem desviar dinheiro. O Sesc vai abrir três novas unidades esse ano, em São Paulo. Isso é muito grandioso, a gente só ganha, todo mundo ganha, a sociedade inteira ganha. Não mexe aí, não, gente, deixa lá quietinho.
Voltando um pouco no tempo, a cena da Vanguarda Paulista dos anos 1980, da qual o seu pai, Itamar Assumpção, foi protagonista, também enfrentou essas mesmas dificuldades, que vocês, da geração de 2010, enfrentaram? Os personagens daquele período, o Arrigo Barnabé, o próprio Itamar, enfim, continuaram fazendo música após aquele período. Alguns se consagraram, o Itamar foi se consagrando ao longo do tempo, mas também sofreram com dificuldades, não é?
É, acho que mais ainda, porque tudo era mais escasso, tinham menos unidades do Sesc, tinha menos possibilidade de divulgar o trabalho. É uma geração que divulgava show com lambe-lambe na Rua Augusta, na Consolação, que não tinha a menor condição de comprar um spot na rádio para poder anunciar um show, dependia de uma mídia orgânica e que se interessava em dar aquela matéria ou aquele conteúdo.
Agora, o nosso grande ponto é esse: todo trabalhador da música independente vai passar por essas questões. Eu acho que está ligado ao fazer e existir no mercado de forma independente. A gente encontra um pouco mais de dificuldades e resistências, mas goza de uma carreira mais livre. Acho que é uma escolha mesmo lidar com essas dificuldades todas para seguir existindo de forma livre.
Inclusive, a morte do seu pai completa 20 anos neste mês de junho. É um trabalho revolucionário, de fato, vanguardista. Qual é o tamanho do legado do Itamar para a música brasileira?
Olha, eu acho que é imenso. Eu estou tentando manter essa memória e trabalhar em função desse cuidado, dessa manutenção. Porque a maré a favor é a do apagamento mesmo. Somos um país estimulado a descartar as nossas memórias, nossas ancestralidades. Então eu acho que uma parte da minha missão é tentar mostrar para o Brasil e deixar isso cada vez mais acessível, para que as pessoas consigam reconstruir as suas identidades a partir de todo ancestral que veio antes.
Quando a gente se conhece, quando a gente conhece a nossa história…isso não tem a ver com a identificação, com você gostar do trabalho, se apaixonar musicalmente, você entender a trajetória de um artista independente, autodidata, retinto no Brasil, que teve uma carreira onde a interpretação do sucesso é muito…ela depende de um ponto de vista - porque eu acredito que uma pessoa que tem 20 anos de carreira, 12 discos lançados de forma independente, com uma carreira fora do Brasil, navegando num completo apagamento e marginalidade, sendo colocado nesse lugar pela mídia, pelo mercado - é uma carreira de sucesso. Muito sucesso.
Então, eu acho que a gente precisa olhar para essas histórias. Essa história não é minha, somente, porque é o meu pai, é a história do Brasil, são símbolos políticos, são símbolos sociais. Eu acredito que o tamanho é imenso e que cada vez mais, quanto mais pessoas conseguirem enxergar essa trajetória, conhecer essa figura… e através do Itamar, quantos outros artistas, pensadores e cientistas você não pode conhecer? Quantos foram apagados e retirados de nós, da nossa história, que impede a gente de entender um pouco sobre nós mesmos?
A gente ainda está tentando se buscar num divã que analisa as nossas mentes, a partir do ponto de vista euro centrado da psicanálise. Como é que a gente pode falar de autoconhecimento, quando a gente não tem referência de memória. O meu trabalho é sobre isso e para isso. Acho que essa é a minha missão, dessa manutenção, desse cuidado do trabalho do meu pai e também da minha irmã.
Edição: Rodrigo Durão Coelho