Aproveitar os traços únicos do cotidiano das grandes cidades da Venezuela e mostrar ao mundo o que há de mais particular e íntimo da identidade do país. Essa é a ideia que move jovens estilistas venezuelanos que estão começando no mundo da moda e buscam construir um movimento nacional com características próprias.
Para isso, eles se inspiram em elementos urbanos que compõem a cotidianidade de cidades como Caracas e os transformam em criações estilísticas cheias de metáforas e abstrações que podem ir do sarcasmo até a provocação.
Natural da agitada cidade de Barquisimeto, localizada na região oeste do país, Alejandro Garcés é fundador e criador da marca que leva seu próprio sobrenome, mas grafado de maneira diferente: a Garzez. Após passar sete anos estudando moda e cinema na Argentina, ele conta ao Brasil de Fato que começou a enxergar com outros olhos o cotidiano de seu país quando retornou à Venezuela, em 2016.
As transformações econômicas e sociais desse período e a efervescência artística que começou após os anos mais duros da crise fizeram com que Alejandro sentisse a necessidade de condensar essa nova realidade em criações visuais e, junto a isso, contar ao mundo os detalhes do que é ser venezuelano.
Uma união entre a moda e o ato de documentar o tempo presente: é assim que o artista define sua tarefa com a marca. "Seria genial que isso acontecesse cada vez mais, o ato de unir essas duas coisas, para que esses discursos viajem o mundo e para que as pessoas possam dizer: 'Ok, isso é a Venezuela. É disso que se trata. É assim que essas pessoas comem, é assim que essas pessoas vivem'. Mas que, ao mesmo tempo seja moda, que não seja somente uma coisa de jornal, com notícias", diz.
:: O que está acontecendo na Venezuela ::
Existe espaço, segundo ele, para o tipo de trabalho da Garzez e de outras marcas pois "os profissionais da moda venezuelana estão desconectados do que está acontecendo no país".
"Há muitas questões de privilégio e de classe na moda da Venezuela, essas pessoas vivem em uma bolha e estão contando sua realidade, o que também pode ter uma importância antropológica vista com o tempo, mas é outra parte do país. Eles querem tirar fotos parecendo que estão na Europa e que a modelo não pareça venezuelana, então não estão contando nada sobre o que está acontecendo agora", afirma.
Transmitir a realidade das cidades venezuelanas também faz parte do trabalho da Roca Tarpeya, marca criada em 2019 pelas jovens Gabriela García e Nicole Crespo. Com o nome em referência a uma colina de Caracas, elas também se identificam com as novas linguagens urbanas mencionadas por Alejandro e dizem que há um movimento sendo criado no país.
"Há projetos aqui que efetivamente têm esse discurso de capturar a cotidianidade e que são completamente necessários para que a cultura possa ressurgir e para que exista uma expressão coletiva, algo onde qualquer pessoa possa se identificar", afirma Nicole.
Brandalismo, tuki e a filosofia dos ônibus
As primeiras coleções da Garzez elaboradas por Alejandro se inspiravam na técnica conhecida como brandalismo, nas quais o artista se apropriou de logotipos de marcas famosas da Venezuela e de fora para subvertê-los e dar novos sentidos.
As ideias que estampam as camisetas e agasalhos sempre dialogam com elementos da realidade venezuelana como, por exemplo, a utilização da palavra "Malandro" com o logotipo do cigarro "Marlboro", ou da expressão "Fino" com a arte da marca esportiva "Fila".
"Malandro" e "Fino" são gírias muito comuns do vocabulário urbano da Venezuela. A primeira esteve durante anos associada à marginalidade e ao crime, mas aos poucos foi sendo incorporada ao uso comum como uma maneira de se autoclassificar ou classificar situações positivas. Já a segunda é utilizada para reagir positivamente a situações.
Outro elemento que serviu de inspiração para as primeiras peças da Garzez foi o tuki, movimento de música eletrônica venezuelano surgido no início dos anos 2000 nas periferias e favelas das grandes cidades que criou uma espécie de subcultura urbana no país. Batizado com uma onomatopeia por conta das batidas repetitivas das canções, a cultura tuki definiu roupas, danças e uma identidade à juventude periférica durante seu período de auge, que coincidiu com o mais recente período de bonança petroleira e redistribuição de renda iniciado pelo ex-presidente Hugo Chávez.
"Eu vejo o tuki como se fosse um punk venezuelano, porque tinha um som agressivo, mas para além disso, havia uma coisa estética de romper com o estabelecido, uma agressividade visual. Todos esses jovens estavam à margem na sociedade, então eles criaram seus próprios códigos e, ao mesmo tempo, agrediam visualmente o resto da sociedade. Porque eles já eram discriminados pelo jeito de ser, pela cor da pele, eles já eram vistos como ladrões, bandidos. Então eles disseram: 'Eu pareço isso para você? Então vou parecer mil vezes mais', ou seja, um movimento importante de afirmação, de orgulho de ser quem é, de vir de onde vem", afirma Alejandro.
Para seus primeiros trabalhos, o estilista apostou em ensaios fotográficos que buscavam uma combinação estética entre passado e futuro, que unisse modelos venezuelanos, homens e mulheres negras e pessoas LGBTQIA+, vestidos com suas peças em locais simbólicos de Caracas, como o campus da Universidade Central da Venezuela, os diversos centros comerciais no bairro de Chacaito e os edifícios brutalistas que existem aos montes na capital.
A escolha das locações serviu para evidenciar o contraste entre a Venezuela de um passado modernizador, ligada aos ciclos de pujança petroleira, e os tempos recentes de crise: "uma mistura entre nostalgia e futurismo", explica Alejandro.
Em sua mais recente coleção, Garcés diz que está se dedicando a estudar o fenômeno dos ônibus venezuelanos. Algo muito típico das grandes cidades do país, esse tipo de transporte coletivo chama a atenção pela criatividade de muitos motoristas que dirigem seus próprios veículos e os personalizam com cores vibrantes e frases de efeito que podem estampar os assentos, os parachoques, os vidros e até mesmo a lataria do ônibus.
Algumas delas acabaram parando nas novas peças da Garzez pois, segundo Alejandro, elas expressam uma espécie de filosofia popular do país. "Elegância e maldade", "a inveja é sua", "corremos para fugir da morte", "chegou o que te destrói" são alguns exemplos citados por Alejandro que serviram de inspiração.
"Ali você pode ver representado o universo do motorista. Tudo o que ele tem na cabeça, todo esse imaginário, representado no ônibus. Eu digo que os ônibus são como dispositivos de identidade que, no final das contas, também acabam afetando os outros, os passageiros, os pedestres e, inclusive, eu diria que até os ricos que andam nas suas Ferraris e veem o ônibus já são afetados esteticamente", afirma.
Texturas da cidade
Apesar de se identificarem no mesmo movimento, o trabalho da Roca Tarpeya é distinto, afirmam Gabriela García e Nicole Crespo. Ao Brasil de Fato, as criadoras dizem que se utilizam de elementos do cotidiano, mas que apostam na abstração para falar sobre a realidade do país.
Através de colagens feitas a partir de fotografias, elas estampam vestidos, camisetas, agasalhos, bonés e diversos outros tipos de peças com cenas genéricas recolhidas de lugares comuns da cidade. Desde as margens de um rio poluído, até os telhados de zinco das favelas, os alambrados de um edifício ou as paisagens naturais cheia de árvores e nuvens: tudo pode ser motivo para inspirar as coleções da marca.
“Caracas é uma cidade complexa, difícil, e nós tínhamos uma relação um pouco mais romântica com o que acontecia na cidade, só que não queríamos romantizar, queríamos simplesmente pegar o cotidiano como ponto de partida. Então, com base nessa visão de Caracas como uma cidade muito poética, muito rica em elementos estéticos, nós decidimos criar a marca”, afirma García.
Elas também dizem que as peças estão mais relacionadas com texturas, cores e relevos da cidade do que com os objetos em si, já que Caracas “serve como uma matéria-prima para as criações”, como diz Crespo.
“A ideia é usar o que temos ao nosso redor, imagens que são parte do nosso cotidiano, que estão ao alcance do nosso olhar, tudo o que compõe a cidade: o lixo, os telhados, enfim, tudo o que nos permita ver a cidade de uma maneira estética, com uma quota de abstração, pois todas essas imagens passam por um filtro”, afirma.
Apesar da linguagem própria, a Roca Tarpeya também se inspira no movimento tuki. Para tanto, elas lançaram uma coleção específica voltada a essa cultura, com agasalhos e bonés em homenagem ao DJ Baba, produtor musical venezuelano que foi um dos criadores do estilo.
“Nossa relação com o tuki é pela idiossincrasia do movimento e por nossa ligação com as periferias, muito embora o movimento tenha se tornando uma espécie de ‘streetwear’ de Caracas. Ainda que ele possa ser rotulado dentro do que chamamos de estética pobre, porque vem das classes populares, das favelas, hoje há um uso feito também pela classe média, mas para nós isso não importa, para nós é bom que esse estilo esteja voltando e que as pessoas o conheçam para que a percepção das pessoas sobre as favelas mude”, diz García.
Para Nicole Crespo, o ressurgimento da estética tuki também pode estar relacionado com um sentimento nostálgico, “porque ele teve seu auge durante uma época específica”. “O que está acontecendo hoje é uma busca por um passado em que se desfrutava, que está sendo perseguido como um processo de identificação do que é ser venezuelano”, diz.
Edição: Thales Schmidt