Logo após o início da intervenção russa na Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, foram realizadas rodadas de negociação de paz entre as delegações russa e ucraniana no mês de março daquele ano, em Istambul. Durante essas reuniões, teria sido assinado um acordo entre as partes sobre a neutralidade da Ucrânia, o que poderia garantir um armistício no conflito.
O suposto documento foi revelado pela primeira vez pelo presidente russo, Vladimir Putin, no último final de semana, durante reunião com a delegação de líderes africanos que visitaram a Ucrânia e a Rússia em uma missão para discutir termos para a paz.
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No dia anterior, durante a visita da delegação africana a Kiev, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky já havia rejeitado efetivamente seu plano, dizendo que a condição fundamental para as negociações continua sendo a retirada completa das tropas russas da Ucrânia.
Ele disse que apresentou sua fórmula de paz aos membros da delegação, e também afirmou que a Ucrânia trabalharia com os países africanos em pontos específicos da proposta.
De acordo com Putin, o documento intitulado "Tratado de Neutralidade Permanente e Garantias de Segurança para a Ucrânia" foi assinado pela delegação ucraniana. No entanto, o presidente russo alega que Kiev descartou abruptamente o documento que já haviam sido assinado.
Após ouvir as propostas da delegação africana, liderada pelo presidente da África do Sul, Cyril Ramaphos, que propôs desacelerar o conflito e iniciar as negociações de paz o quanto antes, reconhecer a soberania dos países no entendimento da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) e dar-lhes garantias de segurança, Putin pediu a palavra e disse que "a Rússia nunca se recusou a negociar".
Em seguida, mostrou o rascunho do projeto de 18 artigos que estipula que a Ucrânia deveria garantir a "neutralidade permanente" do país em sua Constituição. Rússia, Estados Unidos, Grã-Bretanha, China e França seriam os países garantidores.
O documento também determina em números um limite máximo para a capacidade do exército ucraniano. Vale lembrar que a "desmilitarização" da Ucrânia é um dos objetivos oficiais anunciados pelo Kremlin para justificar o início de sua operação militar.
No final de março de 2022, as tropas russas anunciaram um recuo e se retiraram da capital da Ucrânia, Kiev. Posteriormente as negociações foram interrompidas depois que as autoridades ucranianas acusaram as tropas russas de provocar crimes de guerra em várias pequenas cidades ao redor da capital ucraniana.
"Depois que, como prometido, retiramos as tropas de Kiev, as autoridades de Kiev, como costumam fazer seus donos, jogaram tudo na lata de lixo da história [...] Eles recusaram. Onde estão as garantias de que continuarão a não recusar quaisquer outros acordos? Mas mesmo nessas condições, nunca nos recusamos a negociar", disse Putin durante a reunião com a delegação ucraniana.
Os documentos mostrados por Vladimir Putin aos líderes africanos são datados de 15 de abril de 2022, mais de duas semanas após a última reunião presencial das delegações russa e ucraniana em Istambul.
Ao comentar o acordo apresentado por Putin, o assessor do presidente da Ucrânia, Mykhailo Podolyak, pôs em xeque a legitimidade das rodadas de negociações ocorridas em março do ano passado. Segundo ele, em meados de abril de 2022 "as negociações eram basicamente impossíveis".
Por outro lado, em 14 de abril, o Ministério da Defesa da Rússia anunciou o naufrágio do cruzador Moskva, da Frota Russa do Mar Negro. O navio foi perdido como resultado de um ataque ucraniano, representando um duro golpe para o prestígio do exército russo e minando ainda mais a confiança mútua para possíveis negociações futuras.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor de Ciência Política da UFRGS, Fabiano Mielniczuk, especialista em estudos da Rússia e Leste Europeu, declarou que a ideia da neutralidade da Ucrânia já era uma condição que a Rússia tinha oferecido em dezembro de 2021 aos EUA e para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no sentido de fazer um acordo de segurança mútua.
De acordo com ele, o princípio de neutralidade proposto por Moscou prevê que eles aceitam a Ucrânia dentro da União Europeia, mas que não façam o mesmo em relação à entrada da Ucrânia na organização militar, "por conta da capacidade de destruição que a Otan teria contra o território russo". Mielniczuk observa que "isso é tomado no Ocidente como uma ingerência da Rússia em um Estado soberano".
O que Putin apresentou é que, naquele momento, os ucranianos haviam concordado com a neutralidade da Ucrânia e a não entrada do país na Otan. Por outro lado, os russos teriam se comprometido a retirar suas tropas. No momento em que os russos retiraram suas tropas, o mundo todo viu isso como uma derrota da Rússia, como se a Rússia não tivesse capacidade militar para controlar a Ucrânia", explica.
"O que os russos indicam é que o Ocidente pressionou, os EUA e a Alemanha pressionaram a Ucrânia a não aceitar, ou pelo menos a não cumprir o acordo que tinha sido assinado. O que me parece agora é que havia uma negociação para conseguir retirar os russos da Ucrânia e evitar o conflito em larga escala que nós estamos vendo hoje e de que alguns interesses agiram para que isso não acontecesse", completa.
Edição: Patrícia de Matos