O Governo do Distrito Federal (GDF), por meio da Secretaria da Família e Juventude (SEFJ), apoiou e divulgou a 16ª Marcha Nacional da Cidadania pela Vida, realizada em Brasília, nesta terça (20), por uma organização contrária ao direito ao aborto, o Movimento Brasil Sem Aborto.
A principal pauta da mobilização é a aprovação do Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que prevê, entre outros pontos, a proibição da interrupção da gestação mesmo nos casos atualmente permitidos em lei: estupro, risco de vida para a pessoa gestante e fetos com anencefalia.
Para Cleide Lemos, consultora legislativa aposentada e integrante do Levante Feminista contra o Feminicídio do DF e Entorno, o caso é de “extrema gravidade” e requer uma apuração para compreender a extensão do apoio dado pelo GDF ao movimento, “visto que ele parece envolver o uso de dinheiro público para alavancar uma iniciativa de entidade privada que está longe de ser verdadeira”.
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Segundo matéria publicada em 12 de junho no site da SEFJ, a Marcha quer “reforçar a importância da valorização da vida em qualquer circunstância”. O texto diz ainda que o Estatuto do Nascituro “é um marco para a proteção da vida desde a concepção e da mãe porque garante proteção ao nascituro e à gestante”.
“A realização da tal marcha é, em si, aviltante, pois ela quer impor não só às mulheres, mas também às meninas, o dever de gerar, mesmo nas circunstâncias em que a gravidez só traz sofrimento e morte. Além disso, é um insulto para a população do DF, onde mais de 60% dos estupros registrados são de meninas com até 14 anos de idade, que não podem ser forçadas pelo Estado a dar continuidade a uma gestação de alto risco”, afirma Cleide Lemos.
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Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o deputado Fábio Félix (PSOL) classificou o apoio dado à Marcha como um “desrespeito à lei e um crime contra os direitos humanos, a integridade e a saúde das mulheres”.
“Não cabe a uma Secretaria de Estado se posicionar dessa forma, confrontando os direitos fundamentais das mulheres. Hoje o aborto legal é uma conquista que protege a saúde e a dignidade das mulheres e é inaceitável que elas sejam confrontadas de forma tão violenta pelo próprio poder público”, avalia.
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Resposta do GDF
Procurada pelo Brasil de Fato DF para esclarecer o apoio e a divulgação dada à 16ª Marcha Pela Vida e Contra o Aborto, a Secretaria da Família e Juventude do DF se limitou a dizer que “empenha-se em atender toda a população, nos mais variados contextos, em que é solicitada, dentro do que a Lei permite. Desta forma, apoia o referido evento na divulgação do mesmo”.
No entanto, a pasta não respondeu aos questionamentos quanto à extensão e aos parâmetros do apoio, nem ao orçamento empregado. O espaço está aberto para futuras manifestações.
Para Cleide Lemos, o caso exige uma investigação do Ministério Público e do Tribunal de Contas do Distrito Federal. “O apoio do Governo do Distrito Federal a tal iniciativa merece não só repúdio, mas responsabilização dos agentes públicos. Afinal, não se pode aceitar que a crença religiosa do secretário de plantão na SEFJ instrua a ação do Estado, que deve ser laica, conforme manda a lei maior do país”, afirma.
A SEFJ é atualmente chefiada pelo ex-deputado distrital e pastor Rodrigo Delmasso (Republicanos). Ele divulgou em sua rede social um vídeo em que aparece participando da 16ª Marcha Nacional pela Vida e contra o Aborto, na terça (20), em Brasília.
“16 anos desse povo declarando que a vida, ela é um direito fundamental e ela não pode ser suprimida em qualquer tipo da sua fase. E se você é a favor da vida e contra o aborto, compartilha esse vídeo para todo mundo e vamos mostrar que o Brasil é, sim, a favor da vida e contra o aborto. Um abraço e Deus abençoe”, afirma o secretário na gravação.
Segundo Cleide Lemos, é “inadmissível” que gestores públicos utilizem recursos orçamentários “voltados a angariar o apoio da população” para ações que lesam os direitos reprodutivos das mulheres. “Sobretudo as mais pobres, a maioria delas negras, que dependem do poder público para resguardar a própria vida quando a gravidez não for uma escolha, mas uma séria ameaça à sua integridade física e atentado à sua dignidade pessoal”, enfatiza.
Em rede social da SEFJ são divulgados encontros com lideranças religiosas. Em publicação do dia 27 de janeiro, é noticiado que o secretário Rodrigo Delmasso se encontrou com lideranças do Conselho de Pastores Evangélicos do Distrito Federal (Copev) para tratar de "projetos para os próximos 4 anos". Já no dia 1º de fevereiro, o secretário recebeu lideranças da Agência Humanitária da Igreja Adventista do Sétimo Dia, para conversar sobre "acordo de cooperação com a SEFJ e o apoio à realização de eventos da Igreja Adventista no Estádio Mané Garrincha, em 2023 e 2024".
Estatuto do nascituro
O projeto de lei 478/07, conhecido como “Estatuto do Nascituro”, pretende conferir personalidade jurídica ao ser humano em formação. Isso significa que os embriões teriam, desde a concepção, o mesmo status jurídico e moral de pessoas nascidas e vivas.
Na prática, o projeto vai dificultar ainda mais o acesso a métodos seguros de interrupção da gravidez, mesmo nos casos permitidos em lei. No Brasil, o aborto é crime, mas é autorizado em três circunstâncias: gravidez resultada de estupro, quando há risco de vida para a pessoa gestante e em caso de fetos anencéfalos, ou seja, sem cérebro.
Contrariando essas autorizações, o artigo 12 do Estatuto do Nascituro propõe: “É vedado, sob qualquer pretexto, motivo ou razão, inclusive ato delituoso praticado por algum de seus genitores, aplicar qualquer pena ou causar qualquer dano ao nascituro”.
Segundo o texto, a gravidez deve ser levada em diante, mesmo em casos que seja resultante de violência sexual. É importante ressaltar que relações sexuais com menores de 14 anos são consideradas estupro, segundo o Código Penal.
A redação original do projeto, apresentado em 2007 pelos deputados federais Miguel Martini (PHS-MG) e Luiz Carlos Bassuma (PT-BA na época, hoje Avante-BA), propunha ainda uma pensão alimentícia para o “nascituro concebido em um ato de violência sexual”, o que ficou conhecido como “bolsa estupro”. O valor de um salário mínimo deveria ser pago pelo estuprador ou pelo Estado, nos casos em que o agressor não fosse identificado.
O novo texto, proposto pela deputada Solange Almeida (MDB-RJ) e aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família em junho de 2013, excluiu o artigo da “bolsa estupro”. Além disso, a nova versão não propõe a alteração do Código Penal, nem a proibição do congelamento e comércio de embriões.
Atualmente, o Estatuto do Nascituro aguarda por votação na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara Federal. Caso seja aprovado, o projeto passa pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) para, então, ser levado ao plenário da Câmara.
Atendimento para vítimas de violência sexual no DF
No Distrito Federal, atualmente, o Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB) é a unidade referência para realizar o procedimento de aborto quando a gravidez é fruto de um crime de violência sexual. O Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL) é o único no DF e Entorno que oferece acesso ao procedimento, de forma gratuita, sigilosa e sem qualquer tipo de barreira.
Em 2022, foram realizadas 113 interrupções gestacionais e, até abril deste ano, foram feitos 63 procedimentos, segundo dados da Secretaria de Saúde do DF (SES-DF). A pasta não especificou, no entanto, quantos desses procedimentos foram realizados em crianças e adolescentes.
Não existe necessidade de agendamento. A equipe recebe e acolhe qualquer vítima que se apresentar, mas há canais para contato prévio, incluindo um número exclusivo para WhatsApp (61-2017-1624), além de email ([email protected]) e telefone fixo (61-2017-1600 ramal 7434). O programa atende de segunda à sexta-feira (exceto feriados), de 8h às 12h e das 14h às 18h.
Os demais casos previstos na legislação são avaliados e realizados pelo Setor de Alto Risco do hospital.
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino