Em Sertãozinho, no interior de São Paulo, uma única família comanda a produção de 100 mil toneladas de açúcar, cujo principal destino é o exterior: apenas 30% da produção ficam no Brasil, enquanto o restante é escoado para 74 países. A matéria-prima vem de 20 mil hectares onde não há nenhum outro cultivo além da cana.
A 360 quilômetros dali, no município mineiro de Campo do Meio, uma usina de derivados de cana faliu nos anos 1990. O canavial de quatro mil hectares foi abandonado, assim como os funcionários, que não receberam seus direitos trabalhistas. Parte deles, junto com militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, se organizaram para ocupar a fazenda a partir de 1998.
Hoje, mais de 400 famílias vivem e trabalham no local. Onde havia monocultura de cana-de-açúcar, agora há produção de mais de 150 tipos de alimentos, como milho, feijão, arroz, mandioca, frutas e café, além da criação de animais.
Uma dessas propriedades tem certificação orgânica para seus produtos. Você seria capaz de adivinhar qual delas?
O senso comum pode nos induzir a pensar na produção orgânica como sendo praticada sempre pela agricultura familiar, em pequenas propriedades e com diversidade nos cultivos. E na maior parte das vezes é assim, mesmo: segundo o Censo Agropecuário 2017, 76% dos estabelecimentos com produção de orgânicos são de agricultura familiar, e quase 40% têm menos de cinco hectares. Apenas 15% dos estabelecimentos que produzem orgânicos têm mais de 50 hectares.
Perfil dos estabelecimentos que produzem orgânicos
76% são da agricultura familiar
45% têm entre 5 e 50 hectares
40% têm menos de 5 hectares
15% têm mais de 50 hectares
Só que a agricultura orgânica também cabe, à sua maneira, no modelo do agronegócio. A monocultura de cana-de-açúcar citada ali em cima, em Sertãozinho, é do Grupo Balbo, que controla a empresa Native, responsável pela produção de 20% do açúcar orgânico comercializado no mundo. A família Balbo tem três usinas e cerca de 40 mil hectares na região. Além do açúcar orgânico, as usinas produzem açúcar convencional (160 mil toneladas por ano) e etanol.
Por outro lado, a maior parte das famílias que ocuparam a usina abandonada em Campo do Meio ainda nem conseguiu acesso formal à terra, mesmo vivendo e produzindo alimentos ali há mais de 20 anos: hoje, são 459 famílias acampadas, e apenas 13 assentadas.
O Acampamento Quilombo Grande já foi alvo de várias ações de despejo. A última delas foi em 2020, primeiro ano da pandemia de Covid-19. “Destruíram nossa Escola Eduardo Galeano. E passaram com trator, destruindo as casas, a agrofloresta da escola e as lavouras. Eram mais de 400 policiais”, lembra Tuíra Tule, 37 anos, liderança do MST que vive no local.
Um conjunto de normas
Como é possível haver um agronegócio orgânico, ao mesmo tempo em que produtores familiares podem ter dificuldade para conseguir a certificação?
Além da lei que define os sistemas orgânicos de produção no Brasil, há um conjunto de decretos, portarias e instruções normativas que estabelecem as diretrizes desses sistemas e tratam de cada detalhe da produção e da comercialização dos produtos – a certificação, a embalagem e rotulagem, a fiscalização, o rastreamento e, é claro, todas as técnicas que são permitidas (ou proibidas) no manejo.
Existem critérios técnicos bastante rígidos para definir o que é uma produção orgânica. Por exemplo: não podem ser usados agrotóxicos e adubos químicos solúveis. A água usada deve estar livre de resíduos químicos. A área deve ser protegida da contaminação vinda de outros estabelecimentos, e deve haver um planejamento bem detalhado da produção.
Caso cumpra os critérios, o estabelecimento pode receber o certificado orgânico, que precisa ser renovado a cada ano. Só que as regras não implicam nenhuma discussão sobre reforma agrária, soberania alimentar, produção diversificada ou valorização e autonomia de quem está por trás desses alimentos. Esses são temas que têm a ver com o campo da agroecologia.
Passado em comum
A agricultura orgânica é, então, uma prática agrícola que se preocupa com a sustentabilidade ecológica e gera produtos saudáveis, sem contaminantes químicos. A agroecologia, por sua vez, vai além da técnica. “A gente pensa também em sistemas alimentares socialmente justos”, explica Paulo Petersen, da Articulação Nacional de Agroecologia, a ANA.
Mas tanto a agricultura orgânica como a agroecologia tomaram impulso fazendo frente ao modelo de produção hegemônico, principalmente após a chamada Revolução Verde, que consistiu na modernização da agricultura com o uso de máquinas, agrotóxicos e adubos químicos a partir dos anos 1960. Não é à toa que, até hoje, os dois conceitos guardam vários pontos de contato.
No anos 1970 e 80, milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEB) apoiaram a mobilização do campesinato Brasil adentro e, ao mesmo tempo em que se tornavam espaços de reflexão das famílias rurais sobre sua realidade, promoviam técnicas como o uso de adubações verdes, fertilizantes orgânicos e métodos naturais de controle de pragas e doenças nas lavouras. Muitos agricultores começaram a se voltar para a agroecologia a partir daí.
Nesse mesmo período, pipocavam movimentos contra-hegemônicos de agrônomos, estudantes de agronomia e ambientalistas que alertavam para os impactos ambientais e sociais negativos da agricultura industrial. Eles começaram a praticar várias formas de agricultura, com nomes como agricultura biológica, natural, orgânica e regenerativa, e que estavam todas debaixo do guarda-chuva da “agricultura alternativa”. E isso era parte de uma onda internacional.
Famílias pioneiras
Foi também nessa época que, em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, a família de Levi Gonçalves de Oliveira, hoje com 64 anos, recebeu a visita de Paulo Aguinaga, um rapaz que recém-abandonara o curso de agronomia e queria plantar sem veneno. Quem me conta a história é o próprio Levi, numa manhã de chuva fraquinha e constante, enquanto me mostra suas áreas de plantio.
Ele era adolescente quando o pai, seu Elles, quase morreu após uma intoxicação por agrotóxico. A bomba que usava para aplicar os venenos, na época feita de cobre, estava rachada, com o produto sempre vazando e molhando suas costas. Ele decidiu então soldar a fenda, e, ao fazer isso, acabou inalando toda aquela fumaça tóxica. “Ele ficou mais de três meses internado”, lembra Levi. Seu Elles tomou pavor de agrotóxicos, e, quando voltou do hospital, não queria mais saber daquilo. “A gente tinha na época muito tomate plantado, ele abandonou tudo, mandou a gente parar de colher, perdeu toda a lavoura.”
Era esse o estado de espírito do seu Elles quando conheceu Aguinaga. “Meu pai na hora abraçou [a ideia de plantar orgânicos]. Disse: eu quase morri, esse negócio de orgânico é bom. Vamos encarar”, conta Levi. Assim, sua família se tornou pioneira na agricultura orgânica na região do Brejal, ainda em 1980.
Havia um mercado crescente para produtos sem agrotóxicos na capital do estado, e toda a produção descia a serra. Outros agricultores na vizinhança foram se juntando à proposta e, hoje, o Brejal é um grande polo de produção orgânica no Rio. O foco é a produção de verduras e legumes, além de frutas e alguns tubérculos.
Muitos dos agricultores mais jovens, filhos daquela primeira geração, nunca nem chegaram a produzir com agrotóxicos e adubos químicos. É o caso de Ordelei Correa, 41 anos, que tinha por volta de seis anos quando o pai se juntou à família de seu Elles na empreitada dos orgânicos. Conheço Ordelei já faz um tempo, da feira orgânica de Petrópolis, onde vivo. É ele quem me apresenta a seu Levi, e também é ele quem vai me mostrando a forma de manejo nas hortas.
A terra é escura e muito fofa por todo lado – afinal, são décadas de cuidado. Em boa parte dos canteiros, vários matinhos crescem junto com as verduras, e está tudo bem. Para as culturas mais frágeis, como alfaces e cenouras, não tem jeito: é preciso fazer uma capina cuidadosa, de mão. Algumas hortaliças são plantadas juntas, em consórcio. Em volta dos lotes, há bananeiras e pés de fruta que ajudam a quebrar o vento e proteger as hortas.
Formas de certificação
“Fomos os primeiros a ter certificado. O meu certificado é o 0001”, brinca seu Levi, referindo-se aos anos 1980, quando ainda nem havia lei de orgânicos no Brasil. Tudo era muito incipiente, e as certificações eram feitas por cooperativas ou associações de produtores – no caso do Rio, a Associação de Agricultores Biológicos (Abio) criou as primeiras normas em 1986.
Foi só no fim dos anos 1990 que o então Ministério da Agricultura, Abastecimento e Reforma Agrária (MAARA) começou a normatizar a produção de orgânicos. Primeiro, se estabeleceu que a certificação aconteceria via empresas de auditoria credenciadas junto ao Ministério. Acontece que as auditorias são caras – portanto, excludentes. Então, houve pressão de movimentos de agricultores e ONGs para que houvesse outros sistemas.
Deu certo. A legislação brasileira hoje permite que o selinho de orgânico seja concedido de duas formas. A primeira é a contratação de uma empresa certificadora, credenciada junto ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), para realizar auditorias no estabelecimento interessado e atestar a conformidade da produção às normas dos orgânicos.
A segunda, mais inovadora, é pelo Sistema Participativo de Garantia (SPG). Nesse caso, os agricultores se organizam em grupos que se reúnem periodicamente, visitando os estabelecimentos que fazem parte daquele grupo para atestar as boas práticas. O Mapa pode fazer fiscalizações. Se, durante alguma delas, for encontrada uma irregularidade, todo o grupo responde por ela. No SPG, cada grupo precisa fazer parte de um Organismo Participativo de Avaliação da Conformidade (Opac), que deve ser credenciado pelo ministério. O Opac é a pessoa jurídica que responde pelo SPG e concede o certificado.
Muito mais do que o selo
A forma de certificação preferida por quem tem pouca terra – e pouca grana – costuma ser o SPG. Isso porque, como o Joio já mostrou, contratar uma empresa certificadora pode custar quase dez vezes mais do que a certificação participativa. Se, além de produtos in natura, o estabelecimento também quiser certificar o processamento dos alimentos, essa diferença fica ainda maior.
Eu participei de algumas visitas de SPG há vários anos, quando era membro da Associação Agroecológica de Teresópolis (AAT). O que sempre me chamou a atenção foi que, além da certificação, esses encontros possibilitam muita troca de informações e experiências, sendo importantíssimo para todo mundo e, principalmente, para quem está começando na produção orgânica. Existe uma dimensão formativa ali que a certificação via empresa nunca alcançaria.
Em abril deste ano, participando novamente de uma visita da AAT – agora como repórter –, ainda é essa riqueza que me salta aos olhos. O grupo de sete pessoas está ali para avaliar um terreno arrendado ao casal Mário Folly e Janaína Rocha. É um grupo variado: tem agricultores que sempre plantaram orgânicos, outros que eram convencionais mas fizeram a transição há vários anos, e o novato Nilton Raimundo, 50 anos, que conseguiu seu certificado em 2022 e vai acompanhando tudo de bloco e caneta na mão.
No fim da visita, enquanto as informações estão sendo sistematizadas, puxo de lado Rogério Sampaio, um dos produtores mais experientes do grupo, para ele me contar o que mudou na sua vida após mais de uma década de produção orgânica. Ele tem 52 anos, e trabalha na agricultura desde os sete. Lá pelos 14, começou a mexer diretamente com agrotóxicos e, aos 40, os efeitos apareceram.
“Eu não sabia o que estava acontecendo comigo. Era dor de cabeça muito ruim, às vezes não aguentava andar, muito fraco. Aí fui no médico, ele falou que eu estava com muito veneno no sangue e que tinha que parar. Eu sentia o cheiro dos venenos e começava a me dar vômito, também comecei a ficar muito estressado. A vista também já não estava enxergando muito bem. Eu não sabia o que fazer e ia continuando. Um dia, conheci um rapaz que falou do orgânico e fui ver. Gostei, mudei”, relata.
Rogério reconhece que houve um baque na produção e na renda: “No orgânico é mais difícil vender, e a gente tem que plantar de acordo com o que vai vender. No convencional eu plantava muito, eram dois caminhões por semana de mercadoria. No orgânico, uma merrequinha. Mas o importante é a saúde, eu mudei 100%”, compara. Hoje, Rogério trabalha sozinho numa área de cerca de um hectare. Sua produção – composta principalmente de verduras, legumes e tubérculos – é toda escoada na feira agroecológica de Teresópolis.
A renda é uma preocupação constante para Nilton Raimundo, que também foi produtor convencional durante décadas. Diferente de Rogério, ele nunca chegou a experienciar problemas de saúde relacionados aos agrotóxicos, mas se aproximou da agricultura orgânica por um caminho inusitado: quando recebeu em casa um agricultor orgânico que era Testemunha de Jeová e estava fazendo uma daquelas famosas visitas de evangelização. Na visita, ele falou tanto da Bíblia como dos orgânicos – Nilton não se converteu à religião, mas a parte da produção sem venenos lhe interessou um bocado.
Em meados de 2018, ele entrou com o processo de certificação, mas o dono da terra onde ele trabalhava não gostou nada da ideia e o mandou embora. Tempos depois, ele conseguiu se estabelecer em um pequeno terreno do sogro, com cerca de 0,3 hectare, onde hoje cultiva cerca de 30 variedades de hortaliças junto com a esposa e o filho.
Ele avalia que a renda familiar caiu por uma conjunção de dois fatores: a redução na área que tem disponível para plantar, e a mão de obra mais intensiva que o plantio de orgânicos exige. “Antes eu plantava num terreno grande, hoje é muito pequeno. No convencional, para capinar, você passa um afalon, um fusilade, tá limpo. No orgânico é tudo de mãozinha. No convencional, você taca um esterco, taca um adubo [químico] e tá colhendo. No orgânico, tem o trabalho de fazer a compostagem”, explica.
Sua motivação para continuar como produtor orgânico, diz, é saber que está produzindo algo que é melhor para a saúde das pessoas e do ambiente. Mas não é fácil.
Um mar de dificuldades
Mesmo com a possibilidade de certificação via SPG, não dá para dizer que o selo é super acessível a todos os produtores familiares. Primeiro porque, embora o custo no SPG seja mais baixo, ele ainda existe, e significa algumas centenas de reais por ano. Tem também os custos indiretos: nesse esquema, os agricultores precisam se visitar periodicamente – em geral, ao menos uma vez por mês – para avaliar os estabelecimentos. Isso significa perder um dia de lavoura e gastar carro e combustível, o que não é trivial, já que nas zonas rurais as distâncias são grandes.
Além disso, existe toda uma burocracia necessária para gerar o controle da certificação, e os produtores podem não dar conta de manter tudo em dia. “Tem mil coisas que se o cara não tiver estudo pode preencher errado. Se compra uma semente, tem que registrar. Se produz a semente, tem que registrar”, exemplifica seu Levi, de Petrópolis.
Edvaldo Vieira da Silva é um dos fundadores da feira orgânica de Petrópolis, criada em 2000, e conta que a agricultura orgânica também traz vários desafios no manejo. “Esse ano está ainda mais difícil por conta das chuvas. Sem usar química, perco muita planta por causa de fungos”, exemplifica. Mas nem passa pela sua cabeça voltar a usar agrotóxicos – sua entrada no mundo dos orgânicos teve a ver com problemas muito sérios de saúde. “Eu já nasci na lavoura convencional. Estava sempre com problema de pulmão. Com 13 anos, fui desmaiado para o hospital e fiquei 29 dias internado, quase morto”, conta.
Não houve outra crise tão aguda como essa, mas ele continuou com um problema crônico nos pulmões. Há pouco mais de 20 anos, um conhecido que veio da cidade lhe disse que ia plantar orgânicos e ele decidiu experimentar também. Em pouco tempo, parou de ter as crises que lhe tiravam o sono.
Durante a transição, Edvaldo teve apoio do mesmo técnico do Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) que já lhe dava assistência na produção convencional. Hoje, além da feirinha em Petrópolis, ele faz uma do circuito de feiras orgânicas no Rio. Mas, aos 49 anos – 40 deles trabalhando como agricultor – Edvaldo está ficando cansado.
“O mais importante pra mim não é o papel, é a minha consciência com os outros e comigo. A gente sabe plantar, sabe o que fazer.”
Edvaldo da Silva, agricultor orgânico
“Se um dia eu parar de fazer feira orgânica, não vou mais querer ter o certificado, ter todo esse tipo de responsabilidade, essa lógica. Mesmo que continue trabalhando sem veneno, porque, da porteira pra dentro, nunca mais vai entrar veneno, mesmo. O mais importante pra mim não é o papel, é a minha consciência com os outros e comigo. A gente sabe plantar, sabe o que fazer. Se um dia eu cansar [da certificação], vou plantar e vender o produto na feira comum. Quem comprar, vai estar comprando um produto que pra ele é convencional, mas vai estar comprando sem veneno”, afirma.
O certificado não é para todos
Além da burocracia, conseguir um certificado orgânico pode ser difícil por outra razão: os critérios de conformidade são bastante rígidos, e há produtores que, por mais que façam tudo direitinho, não têm como cumpri-los.
Nilton, de Teresópolis, tem receio de não conseguir manter o certificado no futuro por causa das características do seu terreno. “Minha vontade é terminar minha carreira no orgânico. Mas o local [onde ele mora] está crescendo muito e o terreno está no limite em relação à água. Tenho um vizinho com um terreno mais alto que o meu [que está vazio]. Se de hoje pra amanhã ele arrendar aquele terreno [para alguém que use agrotóxicos], acabou comigo. Eu nem gosto muito de pensar nisso, não”, conta.
No centro de Petrópolis, a família de Sérgio e Maria das Graças Lage tem uma das bancas mais gostosas da feira livre, com várias frutas nativas ou adaptadas à região: jabuticabas e amoras na primavera, caquis no outono, ponkans e framboesas no outono e inverno, castanhas portuguesas no verão, abacates super cremosos em vários meses do ano. Eles também produzem milho verde e aipim e, para consumo próprio, plantam feijão. Para escoar a produção, a família faz duas feiras por semana e fornece frutas para a merenda escolar no município.
Sérgio já pensou em migrar para a produção orgânica porque, como tantos agricultores familiares, tem uma história tenebrosa para contar em relação aos agrotóxicos. No caso dele, o que aconteceu foi um acidente bem perigoso. Quando ele tinha 12 anos, sua mãe lavou uma bomba pulverizadora numa caixa d’água. Ele pegou uma cenoura do canteiro, deu uma lavada nela naquela água e comeu antes de ir pra escola. Pouco tempo depois, precisou ser carregado pela professora até o pronto-socorro, com intoxicação aguda. “Eu poderia ter morrido”, recorda.
Hoje, ele diz que recorre muito pouco aos agrotóxicos: “Só uso quando não vejo outra solução, quando alguma praga já tomou mais de 15% da produção. Acontece muito pouco.”
Mesmo assim, migrar para os orgânicos é uma missão quase impossível para ele. A região onde sua família mora, o Caxambu, tem um monte de pequenos estabelecimentos rurais bem próximos uns aos outros, e quase todos utilizam agrotóxicos. Além dos resíduos que podem chegar pelo vento, tem o problema da água, que vai passando de propriedade em propriedade. Ali, para que a comunidade ficasse livre de venenos, seria necessário ter um trabalho conjunto de transição.
Direito à terra
Muitas vezes, a dificuldade na certificação orgânica está num nível ainda mais profundo do que a burocracia ou as dificuldades técnicas: está na falta de algo fundamental, que é o próprio direito à terra. No Quilombo Campo Grande, em Minas, as famílias acampadas não conseguem nem mesmo ter a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), que é a porta de entrada para agricultores familiares acessarem políticas públicas de apoio à produção.
Para obter a DAP, é preciso atender critérios legais que definem a agricultura familiar (produção em áreas rurais com no máximo quatro módulos fiscais, mão-de-obra e gerenciamento da própria família, e maior parte da renda familiar vinculada ao estabelecimento), e também comprovar o uso da terra. Tuíra Tule, liderança local, explica que, em tese, acampados podem obter uma DAP provisória, mas que, em Minas Gerais, nenhuma família acampada nunca conseguiu.
“Essas famílias não têm acesso a crédito, assistência técnica, nenhuma política de desenvolvimento. Para você ter uma ideia, só 327 famílias têm energia elétrica”, diz Tuíra. Até daria para conseguir o selo orgânico sem a DAP, na certificação participativa. Mas massificar a certificação antes de resolver as questões estruturais é algo que não está nem no radar, de acordo com ela: “É uma decisão política que vem da falta de acesso.”
Parte dos agricultores orgânicos que aparecem nesta reportagem também vivem em estado de insegurança em relação à terra. O local onde moram Levi e Ordelei, em Petrópolis, não é oficialmente deles. Ainda nos anos 1980, um juiz simpático à agricultura orgânica decidiu arrendar a Fazenda Pedras Altas para alguns agricultores da região que quisessem mergulhar nessa produção. “Mas o acordo foi todo de boca”, aponta Levi.
O problema é que, desde a morte do proprietário, em 2003, uma filha que ninguém conhecia vem brigando pela terra. “Ela de vez em quando cerca um pedaço e põe à venda, há pouco tempo cercou uma estufa nossa”, conta o produtor. Ordelei nota que, com isso, a área de produção vem sendo reduzida. A fazenda inteira tem cerca de 200 hectares, mas as sete famílias – cerca de 30 pessoas – que vivem e trabalham ali estão, hoje, com cerca de sete.
Agronegócio orgânico
A legislação dos orgânicos é bem abrangente: entre as diretrizes, estão o incentivo à regionalização da produção e do comércio, o estímulo da relação direta entre agricultores e consumidores, e a base em sistemas agrícolas organizados localmente. Ela também estabelece que as relações de trabalho sejam “baseadas no tratamento com justiça, dignidade e equidade”.
Tecnicamente, uma grande empresa que produz orgânicos tende a apresentar muitas vantagens ecológicas e sociais sobre aquelas que não são certificadas. No caso da Native, que abre essa reportagem, existe um monitoramento nos canaviais mostrando a abundância de animais de todo tipo, o que é mais sustentável do que plantações onde há pouca vida além da cana.
Mas uma grande empresa é sempre uma grande empresa, e seu objetivo último é maximizar lucros. Então nada impede que o mesmo grupo familiar que produz o açúcar orgânico da Native tenha também usinas com produção convencional (em volume maior, inclusive).
Em outra empresa que produz açúcar orgânico e convencional, a Caravelas, em março deste ano foram resgatados 32 trabalhadores em situação análoga à escravidão. Não foi em área de produção certificada, mas essa é a questão: temos uma mesma empresa com um flanco de produção orgânica, razoavelmente “limpa”, e outro com trabalho escravo.
E as violações podem, de fato, acontecer na produção orgânica. Em maio, o Joio mostrou como a empresa Meri Pobo – que se vende como a maior produtora de acerola orgânica do Brasil – tem nas costas investigações por crimes ambientais e por questões trabalhistas.
O negócio é que, se o mercado de orgânicos é promissor (e ele é), grandes empresas vão inevitavelmente explorar esse filão. Em 2017, a Unilever – que tem problemas sociais e ambientais em suas cadeias produtivas e produz vários ultraprocessados – comprou a Mãe Terra. A Horizon Organic, da Danone, é a maior empresa de laticínios orgânicos do mundo. A Nestlé tem papinha e leite orgânicos. E por aí vai.
“A agricultura orgânica pode significar só uma troca do pacote tecnológico. Troca insumos químicos por insumos orgânicos”, reflete Tuíra. É óbvio que a atividade dessas empresas não tem nada a ver com o trabalho praticado por agricultores familiares orgânicos, como os que apareceram aqui. Mas fica evidente que as normas dos orgânicos são insuficientes quando se quer pensar para além da técnica produtiva. É aí que entra a agroecologia.
Foco na transformação
Enquanto a agricultura orgânica surgiu como prática agrícola, a agroecologia nasceu como ciência, ainda na década de 1920, e no início sua concepção era limitada a uma abordagem mais técnica, envolvendo apenas o estudo de métodos ecológicos na agronomia. Foi muito tempo depois, a partir dos anos 1980, que o termo “agroecologia” começou a se popularizar, já assumindo um caráter político, englobando dimensões sociais, econômicas e culturais.
Mas, ao contrário do que acontece com a agricultura orgânica, não há uma linha divisória clara identificando a agroecologia. “Não dá para dizer: até aqui, temos agroecologia, dali para lá não temos mais”, diz Paulo Petersen, da ANA.
Por exemplo: se a agroecologia trata de justiça social, então precisa envolver questões relacionadas aos direitos das mulheres – tanto que o lema “sem feminismo, não há agroecologia” já é um bordão em vários movimentos de mulheres camponesas. Mas isso não significa que não possa haver produção em bases agroecológicas no patriarcado.
“Todo mundo pergunta qual o tamanho da agroecologia no Brasil. Essa é uma resposta impossível porque a agroecologia é um enfoque de transformação, e não uma linha divisória. Os princípios da agroecologia podem estar até em uma fazenda de soja transgênica, no sentido de transformar aquele tipo de produção, que é insustentável por natureza”, explica Petersen. Existe uma palavra-chave, então, que é a transformação – e não só de cada estabelecimento produtivo, mas do sistema alimentar como um todo.
É claro que o fato de o conceito de agroecologia ser tão amplo suscita todo tipo de críticas, especialmente entre pesquisadores que pensam as ciências agrárias e biológicas separadamente das ciências sociais. Já houve até quem se referisse à agroecologia como um território de “fadas e duendes” ou como “pseudociência do campo”.
Por esse mesmo motivo, há desafios quando se trata da construção de políticas públicas de apoio à agroecologia. É relativamente fácil estabelecer programas de crédito rural e assistência técnica que beneficiem produtores orgânicos porque eles são identificáveis e quantificáveis segundo critérios objetivos. Com a agroecologia, é diferente: mais do que programas específicos com beneficiários individuais, ela precisa ser uma diretriz de todo o sistema alimentar.
Quando fala de programas importantes para impulsionar a agroecologia no Brasil, Paulo Petersen destaca muito o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). E o interessante é que nenhum dos dois tem os termos “agroecologia” nem “produção orgânica” no nome – embora os produtos orgânicos tenham preferência de compra, os programas beneficiam a agricultura familiar de maneira geral. Mas, na visão do pesquisador, a concepção deles é agroecológica na medida em que há incentivos para a agricultura familiar produzir alimentos para o território.
Na agroecologia, se discute muito a importância dos circuitos curtos entre produção e consumo – “relocalizar os sistemas alimentares”, nas palavras de Petersen –, de modo a revalorizar a agrobiodiversidade ao reconectar os sistemas alimentares, os ecossistemas e as culturas alimentares. E tanto o PAA como o PNAE permitiram isso. “[Foram resgatadas] espécies que eram da cultura alimentar dos territórios, que ainda estavam vivas mas que, como os mercados cada vez mais uniformizam o padrão alimentar, estavam sendo perdidas.”
De quebra, isso ajuda a evitar o uso massivo de agrotóxicos. “Mesmo que boa parte dessa produção ainda use algum insumo químico, não é aquela loucura de uma monocultura. A diversidade produtiva já é um mecanismo ecológico de diminuição de pragas e doenças, então você já tem uma regulação ecológica, que é um princípio da agroecologia.”
Assim, propriedades como a de Sérgio, no estado do Rio, ou como o Acampamento Quilombo Grande, em Minas, definitivamente têm bases agroecológicas, mesmo que não tenham certificação orgânica.
Tuíra Tule conta que, em 2018, com o apoio da prefeitura de Campo do Meio e da Universidade Federal de Alfenas, foi feito um levantamento de tudo o que foi construído no acampamento. “Contamos cada pé de café, cada árvore plantada, cada lavoura que fizemos, cada casa, cada poço furado, cada estrada feita por nós”, enumera.
O resultado é de fazer cair o queixo: quase 2,5 milhões de pés de café – o Café Guaií é o carro-chefe nas vendas da comunidade –; mais de mil hectares de lavouras; mais de 40 hectares de hortas; mais de 500 cabeças de vacas de leite e 500 cabeças de gado de corte; e mais de 150 mil árvores plantadas, entre nativas e frutíferas. “Essa terra que produzia riqueza para uma só família e tristeza para tantas, hoje gera vida digna para mais de 450 famílias”, aponta Tuíra. E ainda há muito o que conquistar.
- A reportagem entrou em contato com o Grupo Balbo e a empresa Caravelas, que recusaram os pedidos de entrevista.