Nenhum dos quatro policiais, réus no julgamento pelos crimes cometidos na "Chacina do Curió" responderam às perguntas do Ministério Público ou da assistência de acusação. O corpo de jurados não apresentou perguntas e os acusados só responderam os questionamentos feitos pelo colegiado de juízes e pelos advogados de defesa. Foi o terceiro dia do julgamento, que acontece no 1° Salão do Júri do Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza.
Marcus Vinícius Sousa da Costa, Antônio José de Abreu Vidal Filho, Wellington Veras Chagas e Ideraldo Amâncio também foram unânimes em dizer que não participaram de nenhum dos 9 episódios que aconteceram na madrugada do dia 12 de novembro de 2015, nos bairros do Curió, São Miguel, Lagoa Redoma e Messejana. Os crimes resultaram em 11 mortos. 7 pessoas sobreviveram.
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O primeiro a depor foi o policial Antônio José de Abreu Vidal Filho. O acusado, considerado desertor da Polícia Militar, mora com a família em Massachusetts, nos Estados Unidos, e foi ouvido por videoconferência, de dentro do carro. De acordo com a denúncia, a quebra do sigilo telefônico coloca o policial na cena do crime na madrugada do dia 12 de novembro de 2015. O veículo do policial também foi identificado próximo ao local da Chacina, pelas câmeras do Departamento de Trânsito do Ceará (Detran-CE).
O segundo policial ouvido, ainda pela manhã, foi Marcus Vinicius Sousa da Costa. Ele está no banco dos réus porque, de acordo com as investigações, o veículo do policial foi visto circulando pelos bairros onde aconteceram a matança. Em depoimento, o policial disse que esteve na base do Programa Crack é Possível Vencer e que junto com outros policiais, em carros descaracterizados, foi até o Hospital Frotinha de Messejana. Pouco depois ele e outros policiais rodaram por alguns quarteirões até voltar a praça onde fica a base do Programa. Chorando, Marcus Vinicius disse que não desceu do carro, mas que ouviu dois tiros e comunicou na base. "Foi só o que eu ouvi, mas não vi e nem sei quem atirou. Estou pagando por isso sendo inocente".
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O soldado Wellington Veras Chagas foi o terceiro a depor. Seguiu a mesma cartilha dos outros réus e não respondeu às perguntas do Ministério Público. Segundo o que contou em depoimento, Welington passou o dia em treinamento sobre a abordagem policial para casos envolvendo mulheres vítimas de violência doméstica na sede da Secretaria de Segurança Pública, e em seguida foi pra casa de onde não saiu até saber pelo grupo de whatsapp dos policiais, a notícia de que um policial havia sigo baleado e estava no hospital. Wellington disse que saiu sem celular e desarmado para o Hospital onde o policial estava internado, que de lá seguiu para a praça e depois voltou pra casa, sem desligar o veículo que estava com problemas mecânicos. "Inclusive eu tenho esse carro até hoje e ainda tenho a mesma arma à espera de uma perícia que nunca aconteceu", disse o policial.
O quarto e último policial a depor foi o soldado Ideraldo Amâncio. Também alegando inocência, o policial disse que estava de folga na noite do dia 11, que recebeu a notícia de um policial internado, pelo grupo de whatsapp e que só saiu de casa para pegar a esposa no terminal de ônibus da Parangaba, distante da região onde ocorreram os crimes,e voltou para casa com ela. "Eu não fui na praça da base, não fui no hospital e não conhecia o policial Valtemberg. O veículo que foi visto não é o meu", disse o policial que é natural do Rio Grande do Norte.
A estratégia utilizada pela defesa para que os réus não respondessem aos questionamentos do MPCE ou da Assistência de Acusação foi criticada pela Anistia Internacional Brasil. Para a diretora de Programas e Campanha da organização, Alexandra Montgomery, quem quer restabelecer a verdade, não fica em silêncio. "Até o momento temos poucas respostas. A estratégia da defesa é dizer que eles não estavam presentes e não estão envolvidos e todos solidários às famílias das vítimas, mas não responder perguntas não ajuda nos esclarecimentos dos fatos. É direito deles permanecer no silêncio,mas se estão dispostos a ajudar a desvendar isso, precisam esclarecer".
Para Alexandra o caso da "Chacina do Curió" poderá servir de referência para mudanças nos sistema de justiça de todo o país. "Ela pode abrir precedentes para outros casos de chacinas e pode mudar o destino dos órgãos de controladoria porque se você questiona o sistema, você questiona o sistema inteiro" analisa.
A Anistia Internacional Brasil acompanha o caso desde o início do processo, ao lado do Cedeca Ceará- Centro de Defesa da Criança e do Adolescente - e de outros movimentos a favor dos direitos humanos acompanha o caso. O julgamento que começou na última terça-feira, deve seguir até sábado (24). Nesta sexta, quarto dia do julgamento que já dura mais de 30 horas, estão previstos os debates entre defesa e acusação.
O crime
De acordo com as denúncias do MPCE, na madrugada do dia 12 de novembro de 2015, dezenas de policiais encapuzados e em carros descaracterizados e adulterados, entraram nos bairros Curió, Lagoa Redonda, São Miguel e Messejana e mataram 11 pessoas, de forma aleatória, em retaliação a morte do soldado Valtemberg Serpa, ocorrida em um latrocínio na véspera da matança.
Das 11 vítimas fatais, 8 tinham entre 16 e 19 anos. Apenas dois tinham antecedentes criminais, um por pensão alimentícia e outro por crime de trânsito. Para facilitar o entendimento dos fatos, o MPCE, dividiu os crimes em nove episódios.
Episódio 1
Em 11 de novembro de 2015, Sobrevivente 1 estava internado em um instituto para tratamento e recuperação de dependentes químicos, no bairro Lagoa Redonda. Naquela noite, ele pulou o muro da clínica para comprar drogas, na companhia de outro interno. Na sequência, os dois foram abordados por homens em um automóvel de cor prata, acompanhado à pequena distância por outro veículo. Ambos tentaram fugir.
O Sobrevivente 1 levou quatro tiros e teve fratura exposta no pé. As lesões, contudo, não indicam intenção de matar, uma vez que os tiros atingiram as pernas dele. Da mesma forma, nada impedia os denunciados de consumar uma ação homicida. Mesmo porque o rapaz ficou sob poder dos acusados e foi atingido pelo simples fato de correr ao ser abordado. As circunstâncias indicam ainda que as torturas começaram às 23h30, na Rua Raquel Florêncio, e tiveram como contexto principal o “justiçamento”.
Episódio 2
Entre 23h30 de 11 de novembro e 3h30 do dia 12, o Sobrevivente 2 foi submetido a intenso sofrimento mental, com emprego de grave ameaça e restrição de sua liberdade de locomoção. A intenção era obter informações sobre o paradeiro de duas pessoas, identificadas por Curió e Índio, apontadas como traficantes da região. Naquela noite, o Sobrevivente 2 estava em casa, deitado, enquanto familiares permaneciam na calçada observando um helicóptero do CIOPAER que circulava sobre a região. Em dado momento, uma viatura parou na frente da casa e quatro policiais mandaram todos entrarem. Outros três veículos descaracterizados chegaram ao local, sendo dois carros e uma moto, todos com as placas encobertas.
A vítima foi levada em um dos carros para a casa que ele próprio havia apontado como sendo a de “Curió”, que não estava no local. Lá, os homens com balaclavas, encapuzados e descaracterizados obrigaram o rapaz a fazer ligações telefônicas. Em seguida, ele foi levado para a Praça da Igreja São José, na Avenida Recreio, em Messejana. No local, havia mais de 50 homens, todos encapuzados e utilizando radiocomunicadores e telefones celulares. Na sequência, o Sobrevivente 2 foi levado para outro local onde, no percurso, viu duas ambulâncias do SAMU e um corpo, no cruzamento das Avenidas Gerardo Lima e José Artur de Carvalho. Segundo o depoimento da vítima, um policial vestido com a farda do Ronda do Quarteirão tirou sua foto e recolheu seus documentos. Após ligações telefônicas, esse policial disse que o alvo “não tinha nada a ver com a morte do policial” e o liberou. Por volta de 3h30, o rapaz foi deixado pelos policiais na casa de sua mãe, na Avenida Maestro Lisboa. O próprio rapaz disse, em depoimento, que não foi agredido fisicamente. Contudo, após ser retirado da casa de sua avó, foi colocado de joelhos, com uma arma apontada para sua cabeça, a fim de informar onde era a casa do vulgo “Curió”. Assim, ficou evidente que ele foi vítima de crime de tortura, pois teve sua liberdade de locomoção restringida por mais de três horas, foi levado por homens encapuzados para local isolado e acusado de participação na morte do policial Serpa.
Episódio 3
Quatro homicídios consumados e uma tentativa foram registrados na rua Lucimar de Oliveira, no bairro Curió, na madrugada de 12 de novembro de 2015. Antônio Alisson Inácio Cardoso, Jardel Lima dos Santos, Pedro Alcântara Barroso Nascimento Filho e Alef Souza Cavalcante foram a óbito e o Sobrevivente 3 foi lesionado. O episódio reuniu o maior número de mortes conjuntas naquela madrugada. No caso do Sobrevivente 3, o homicídio não se consumou por motivos alheios à vontade dos agentes. Embora os disparos de arma de fogo tenham atingido áreas fatais do corpo dele, o socorro médico rápido e eficaz impediu o óbito. Alef e Pedro, embora também tenham sido socorridos, não sobreviveram.
Segundo a denúncia do MPCE, os cincos rapazes e uma mulher estavam na calçada da casa onde o Sobrevivente 3 morava. A Testemunha 1 também acompanhava o grupo. Por volta das 23h50 do dia 11 de novembro de 2015, vários homens encapuzados chegaram em veículos e mandaram os jovens ficarem de pé de frente para uma parede e mandaram a Testemunha 1 se afastar e fechar os olhos. Tiros de arma de fogo foram desferidos à queima-roupa contra as vítimas. Nesse momento, a mulher correu por algumas vias e conseguiu escapar dos tiros também efetuados contra ela, escondendo-se embaixo de um carro, onde permaneceu por cerca de uma hora. Nesse local, telefonou para a Testemunha 2 e falou sobre os crimes.
Ao chegar ao local, a Testemunha 2 constatou que Alisson e Jardel já estavam sem vida. Na sequência, colocou o Sobrevivente 3, Alef e Pedro na carroceria do próprio carro e os levou para o hospital Instituto José Frota, na companhia de dois familiares de Pedro Filho e do Sobrevivente 4. A câmera de vídeo de um estabelecimento comercial filmou uma viatura passando duas vezes pela rua onde aconteceram os crimes, ignorando a presença das vítimas no local. Vários veículos descaracterizados passaram na área após os homicídios, no momento em que a viatura 1087 da PM também estava na Rua Lucimar de Oliveira. Segundo registros de áudios da frequência da Polícia Militar, o CIOPS acionou a viatura 1087, mas a chamada não foi respondida.
Episódio 4
Minutos após o crime que tirou a vida dos quatro rapazes, uma tentativa de homicídio aconteceu na rua Professor José Artur de Carvalho, no bairro Lagoa Redonda. O Sobrevivente 4 que ajudou a Testemunha 2 a levar Pedro, Alef e o Sobrevivente 3 para o IJF na carroceria de um carro, também foi lesionado por disparos de arma de fogo. Neste caso, o homicídio só não foi consumado por circunstâncias alheias à vontade dos agentes.
No momento do socorro, os ocupantes do veículo passaram por um bloqueio feito por vários homens encapuzados. Posteriormente, ficou comprovado que o obstáculo só foi transposto porque a Testemunha 2 ligou o pisca-alerta do carro onde levava os feridos e este seria um sinal combinado entre os agentes. Além disso, o carro era de modelo e cor parecida com um veículo usado na ação pelos denunciados. Em dado momento, o carro da Testemunha 2 passou a ser perseguido por um veículo tipo sedan e três motocicletas, que sinalizavam insistentemente. Achando que todos poderiam ser executados, o Sobrevivente 4 saltou do carro e escondeu-se em uma churrascaria que estava fechada. Encontrado, foi espancado por homens encapuzados, que perguntavam quem era o “traficante do bairro”. Em dado momento, a vítima se desvencilhou dos agressores, correu e levou oito tiros pelas costas, foi socorrida por populares e sobreviveu.
Episódio 5
A Travessa Francisco Guimarães, no bairro São Miguel, também registrou a ocorrência de crimes naquela madrugada. Às 0h50, do dia 12 de novembro de 2015, os Sobreviventes 5 e 6 foram constrangidos mediante grave ameaça e violência, com o fim de revelarem possíveis envolvidos na morte do policial Serpa. Os dois dormiam em sua residência, que foi invadida por cerca de seis homens encapuzados. Na sequência, eles foram obrigados a se ajoelhar. Sem informações repassadas, o RG do Sobrevivente 5 foi consultado para saber se haveria antecedentes criminais. Ante a resposta negativa, os dois sofreram intenso sofrimento mental e físico, sendo que o Sobrevivente 5 chegou a ser ferido à bala. Após os atos de tortura, ambos foram ao hospital. Durante a manhã, após alta médica, a Sobrevivente 6 soube que seu pai, Francisco Enildo Pereira Chagas, que morava próximo dela, havia sido assassinado (ver Episódio 8).
Episódio 6
Na madrugada de 12 de novembro de 2015, várias casas da Rua Elza Leite de Albuquerque, no bairro São Miguel, foram invadidas por homens encapuzados, que perguntavam por um possível traficante chamado Robério. Por volta de 1h da manhã, Marcelo da Silva Mendes e Patrício João Pinho Leite foram vítimas de homicídio mediante disparos de arma de fogo. Eles estavam na calçada, em frente à casa de Marcelo, usando o Wi-Fi disponível na rua, quando quatro homens encapuzados os abordaram. Marcelo tentou entrar em casa, mas foi retirado do local à força e deitado na calçada, ao lado de Patrício. Ambos foram inqueridos sob violência, espancados e executados à bala.
A Testemunha 3 estava dentro de casa e presenciou tudo. Ao perceber a saída dos agentes, tentou persegui-los, mas foi contida por disparos de arma de fogo, que a fizeram recuar.
A investigação revelou que, naquele momento, várias ligações foram feitas para o CIOPS, solicitando viaturas para a Rua Elza Leite de Albuquerque. Em uma chamada realizada por volta de 1h30, o solicitante, desesperado, falou que já havia ligado mais de 30 vezes. “A Polícia chegou na esquina e voltou”, registrou, mesmo com corpos no local.
Episódio 7
Por volta de 1h05 de 12 de novembro de 2015, na Rua Professor José Artur de Carvalho, próximo ao 35º Distrito Policial, Renayson Girão da Silva, conhecido como “Tudo Passa”, Guimê” e “Neymar”, foi vítima de homicídio. Ele estava em um ônibus que fazia a rota Corujão Paupina – Lagoa Redonda, em direção a este segundo bairro, junto com a namorada. Na ocasião, o ônibus foi parado por um comboio que impedia a passagem. Neste momento, dois homens encapuzados, portando arma de fogo, mandaram o motorista abrir a porta. Na sequência, mandaram os passageiros descerem e o motorista seguir viagem.
Renayson, então, começou a ser interpelado e implorou para não fazerem nada com ele. Ato contínuo, mandou a namorada correr. Na fuga, ao olhar para trás, ela viu o momento em que o namorado foi alvejado. Instantes depois, uma viatura do Ronda do Quarteirão passou pelo local e levou a namorada de Renayson para a casa da mãe dela. Em depoimento, a jovem disse que os mais de 20 homens que interceptaram o ônibus usavam coletes da Polícia.
Episódio 8
Três homicídios aconteceram na Travessa Francisco Guimarães, no bairro São Miguel, por volta de 1h45 do dia 12 de novembro de 2015. As vítimas foram Jandson Alexandre de Sousa, Valmir Ferreira da Conceição e Francisco Enildo Pereira Chagas.
Após os episódios 5 e 6, alguns veículos retornaram à Rua Elza Leite de Albuquerque. Vários homens encapuzados desceram dos carros e se juntaram a outros agentes que estavam no local. De lá, o grupo seguiu em direção à Travessa Francisco Guimarães, chegando ao ponto comercial de Enildo.
Valmir estava no local para comprar cigarro. Segundo depoimentos, os homens chegaram ao lugar gritando “É a Polícia! Mão na cabeça!” e atirando. Valmir e Elenildo, que estava dentro do pequeno comércio atendendo ao pedido do cliente, foram atingidos e morreram. Na mesma travessa, em outra casa, homens encapuzados entraram na residência de Jandson Alexandre de Sousa. No local, tiraram uma criança dos braços da vítima e atiraram. Jandson levou um tiro no peito e outro na testa. O crime ocorreu na presença de quatro crianças.
Episódio 9
José Gilvan Pinto Barbosa e o Sobrevivente 7, moradores do Barroso, bairro vizinho à Grande Messejana, foram vítimas da mesma ação articulada na madrugada de 12 de novembro de 2015. Por volta de 1h45, os dois conversavam em uma esquina da rua José Euclides Gomes, quando dois carros pararam e oito homens desceram já atirando. Ambos foram atingidos por disparos de arma de fogo. José Gilvan foi a óbito no local, e o Sobrevivente 7 só não faleceu por circunstâncias alheias à vontade dos agentes.
O Sobrevivente 7 foi levado ao Hospital Frotinha de Messejana pela Testemunha 4. Posteriormente, em depoimento, a Testemunha 4 relatou a presença de um veículo com placa adulterada na frente da unidade médica no momento em que o Sobrevivente 7 estava em atendimento. Segundo ela, ao lado do veículo, estavam cerca de 10 homens, sendo dois com uniformes da Polícia Militar.
Outro depoimento importante foi da Testemunha 5. Ela disse que o Sobrevivente 7 havia saído do trabalho na madrugada do dia 12 de novembro de 2015 e teria ido em direção à casa dele. Cerca de uma hora depois, ouviu disparos de arma de fogo. Na sequência, uma viatura policial passou e a Testemunha 5 perguntou o que havia acontecido, ao que escutou dos pms: “menos dois para dar trabalho para a Polícia”.
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Fonte: BdF Ceará
Edição: Camila Garcia