Mundo desigual

Desigualdade deve ser 'prioridade' na discussão sobre mudanças climáticas, diz Lula em Paris

Presidente afirma que não adianta ter 'clima muito bom' enquanto pessoas morrem de fome

Botucatu (SP) |

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Lula olha para Macron durante o discurso em que cobrou ajuda dos países ricos para combater a desigualdade no planeta - Ricardo Stuckert/PR

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez um discurso de improviso durante a Cúpula para um Novo Pacto Financeiro Global, nessa sexta-feira (23), em Paris. Além dos temas quentes do momento para a diplomacia brasileira, como desmatamento, aquecimento global e acordo entre União Europeia e Mercosul, ele defendeu a importância de se combater a desigualdade.

“Não é possível que num encontro com tantos presidentes de países importantes, a palavra desigualdade não apareça. Desigualdade salarial, de raça, de gênero, na educação, na saúde”, elencou o presidente, sentado à direita do presidente da França, Emmanuel Macron, anfitrião do evento.

“Estamos num mundo cada vez mais desigual. Precisamos tratar disso com tanta prioridade quanto a questão climática, porque senão a gente pode acabar tendo um planeta com um clima muito bom e o povo continuar morrendo de fome em vários países do mundo”, disse Lula. Segundo ele, o Brasil “andou para trás” no passado recente, “como muitos outros países”, e prova disso é o fato de muitos brasileiros passarem fome hoje em dia.

O presidente brasileiro se dirigiu bastante aos países africanos em seu discurso, e também cobrou com veemência as nações ricas. Um exemplo desse posicionamento foi o fato de ter mencionado o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), uma agência das Nações Unidas dedicada a erradicar a pobreza e a fome, que segundo ele previa fazer investimentos em infraestrutura em todo o continente africano.

“Se o mundo desenvolvido resolvesse financiar empresas para construir as necessidades daquele plano, a África já teria dado um salto de qualidade. Ontem, ouvimos o presidente do Congo falar do rio Congo. Pelo que sei, no rio Congo poderiam ser feitas três hidrelétricas de Itaipu. Mas não tem nenhuma”, comparou o presidente, que criticou a forma como recursos são investidos em alguns casos. “Precisamos parar, a nível internacional, de fazer proselitismo com recursos. Ah, vou ajudar essa coisinha aqui, essa coisinha ali, quando na verdade precisamos investir em coisas estruturantes que mudem a vida dos países”.

Lula dedicou boa parte de sua fala à forma como os recursos circulam mundialmente, o que, afinal, era o tema da cúpula. Disse que as “instituições de Bretton Woods não funcionam mais, não atendem mais às aspirações e interesses da sociedade”, em referência aos acordos feitos nos estertores da Segunda Guerra Mundial, que elaboraram regras para o sistema monetário internacional. Criticou também o Banco Mundial e o FMI, por deixarem “muito a desejar”.

Argentina

E voltou a mencionar o empréstimo do FMI à Argentina durante a gestão do presidente Mauricio Macri (2015-2019). “Muitas vezes bancos emprestam dinheiro e o dinheiro emprestado provoca a falência do Estado. É o que estamos vendo na Argentina hoje. Da forma mais irresponsável, o FMI emprestou US$ 44 bilhões para um senhor que era presidente. Não se sabe o que ele fez com o dinheiro e a Argentina passa por uma situação muito difícil porque não tem dólar para pagar o FMI”.

O presidente novamente cobrou uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, para que a organização volta a ter representatividade e força política. E fez uma ligação entre governança global e mudança climática. “Se não mudarmos essas instituições, a questão climática vira uma brincadeira. E por quê? Quem é que vai cumprir as decisões emanadas dos fóruns que nós fazemos? É o Estado nacional? Vamos ser francos. Quem cumpriu o protocolo de Kyoto? Quem cumpriu as decisões de Copenhague, o acordo de Paris? Não se cumpre porque não tem uma governança mundial com força pra decidir as coisas e a gente cumprir”.

O presidente defende que as decisões tomadas durante as COPs (conferências internacionais sobre mudanças climáticas) nunca terão poder de lei em cada país se precisarem ser discutidas e ratificadas internamente, pelos respectivos parlamentos, porque sempre haverá resistências que tirarão a força do que foi decidido em âmbito internacional.

“Se não mudarmos as instituições, o mundo vai continuar como está. Quem é rico vai continuar rico e quem é pobre vai continuar pobre”, previu Lula.

Bons indícios

O presidente apontou o que considera boas iniciativas no sentido de renovar as instituições e a lógica financeira global: a criação do banco dos Brics, presidido pela ex-presidenta Dilma Rousseff, e as possibilidade de criar o Banco do Sul e também de se discutir novas possibilidades para moeda de comércio. “Não sei por que Brasil e Argentina tem que fazer comércio em dólar; por que Brasil e China tem que fazer comércio em dólar. Isso está na minha pauta e, se depender de mim, vamos falar disso na cúpula dos Brics. E também no G20. Precisamos colocar mais companheiros africanos para participar do G20, como vocês (dirigindo-se ao presidente Macron) estão fazendo no G7. Esses fóruns não podem ser grupos de luxo. Precisamos chamar os diferentes”.

Edição: Thales Schmidt