Limitar os evangélicos ao campo da extrema direita não ajuda no diálogo, pelo contrário
Por Delana Corazza* e Micaela Ovelar Márquez**
Na última década, principalmente após as eleições presidenciais de 2018, uma preocupação tomou conta do campo progressista: como dialogar com a população evangélica. Como já sabemos, essa preocupação tem fundamento porque, em primeiro lugar, parte de seus fiéis está no coração do bolsonarismo; em segundo, porque as igrejas evangélicas se tornaram uma força política conservadora incontestável que caminha a passos agigantados. Essa força não acaba com as eleições de Lula. De maneira geral, isso foi o que vimos durante a última Marcha para Jesus, que aconteceu no começo deste mês de junho na cidade de São Paulo.
O número de participantes foi controverso: para a Polícia Militar, havia cerca de 300 mil pessoas; para os organizadores, esse número estava em torno de 2 milhões. Incontestavelmente havia um mar de gente. O encontro foi mais do que um "evento pacífico que reúne igrejas cristãs do país e do mundo (...) que acreditam em Jesus Cristo [como] nosso resgatador", como afirma o site oficial da mobilização; foi uma festa com famílias, de pessoas de todas as idades, de diferentes classes sociais e raças e até de diferentes estilos musicais: não somente ouvia-se música gospel, mas também havia diversos trios elétricos aos som de músicas coreografadas, cantadas por grande parte dos participantes em um coro contagiante: "Eu gosto da energia , é uma coisa surreal, você sente uma atmosfera diferente, sente a energia do povo, a presença de Deus", nos disse uma jovem evangélica que também participou do evento.
Era impossível não sentir ali a presença de um coletivo que tinha, de fato, uma identidade comum. Muitos nos olhavam nos olhos e sorriam a todo momento reafirmando essa identidade em uma linguagem crente que nos escapava. As pessoas eram acolhedoras, solicitas e generosas, como se quisessem mostrar que são uma parte "da alegria perdida há tempo no país". A guarda metropolitana presente estava pacífica, os policiais tiravam fotos com as crianças e famílias, muito diferente de como agem em outras manifestações populares vinculadas ao campo progressista.
:: Especialista afirma que incentivo ao ódio religioso é projeto de poder político e cultural ::
A Marcha para Jesus é hoje o maior evento evangélico do país e acontece anualmente em todo o Brasil desde o ano de sua criação, em 1993, por Estevam Hernandes, líder da igreja pentecostal Renascer em Cristo. Em 2009, o então presidente Lula sancionou uma lei colocando a Marcha nos eventos oficiais do país. Composta principalmente por pentecostais, os temas abordados são de conteúdo moral como a defesa da chamada família tradicional, assim como contra a legalização do aborto. Bolsonaro foi o primeiro presidente a estar presente em uma Marcha que ganhou um tom político no ano de 2018, período de enorme polarização em nosso país. Foi neste mesmo ano que os fiéis se vestiram para além das camisetas com escritos bíblicos: estavam também com camisetas da seleção brasileira e com bandeiras do Brasil, símbolos da direita naquele momento.
Neste ano, aparentemente, o tom mudou. A grande maioria das pessoas participantes não queriam politizar o evento, criando um clima mais ameno nesse sentido, mas algumas coisas chamaram a atenção. Duas bandeiras foram vendidas durante todo o percurso: a do Brasil, por motivos óbvios, e a de Israel. Quando perguntamos por que estavam vendendo ou levando a bandeira de Israel, nos responderam que "essa era a terra de Jesus"; curioso, porque o Estado de Israel, estabelecido oficialmente em 1948, foi uma criação do movimento sionista, com raízes racistas, xenófobas e inspirador do genocídio palestino1. Ou seja, essa bandeira, além de não ser um símbolo do cristianismo, não é um símbolo de amor. Israel permeia o imaginário crente como a Terra Prometida, e no governo Bolsonaro, figurou como amigo externo do país, contrapondo aos países considerados "comunistas" e anti-cristãos pela cúpula bolsonarista, como Cuba, Bolívia e Venezuela.
Mesmo que de forma menos polarizada, o tom político esteve presente, ainda que de forma tímida. O fato de Bolsonaro ter ido a duas Marchas em seu governo abriu um precedente importante para Lula, que pela primeira vez se manifestou justificando sua ausência: "Sempre admirei e respeitei a Marcha para Jesus, que considero uma das mais extraordinárias expressões de fé do nosso povo". Apesar da ausência de Lula, o governo foi representado pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e pelo advogado-geral da União, Jorge Messias. Em sua fala, ao mencionar o presidente (sem citar seu nome), Messias levou uma leve vaia dos fiéis. A ausência de Bolsonaro e da ex-primeira dama Michelle Bolsonaro foram sentidas. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o ministro do Supremo Tribunal Federal, o "terrivelmente evangélico" André Mendonça, estiveram presentes representando o campo bolsonarista. Suas falas foram recebidas com aplausos.
A Marcha pode ser considerada uma demonstração pública da força mobilizadora dos evangélicos, e os aplausos e vaias nas manifestações políticas institucionais demonstram que o campo conservador ainda prevalece. Ao conversarmos com fiéis que caminhavam conosco pudemos perceber essa identidade. Não apontaram para um certo incômodo da mistura entre religião e política, vista de modo muito reticente pelos crentes de décadas atrás. Dentre os nomes de referências, escutamos de uma jovem líder de sua igreja a menção à Nikolas Ferreira (PL-MG), deputado federal bolsonarista, defensor da família pelo viés da extrema direita fundamentalista. Muitos pontuaram a defesa da família como ação concreta de um cristão no campo institucional: "tem que respeitar a família: pai, mãe, filhos, quem ama a família, ama a liberdade e ama a justiça", nos disse um dos marchantes. Ainda sobre religião e política, um jovem nos contou que "não gosto muito de política, mas as pessoas, quando sabem que eu sou evangélico, já falam que eu sou bolsominion, me esculacham, mas não ligo, faço o 22 brincando, para tirar um sarro". Ainda que, de fato, se apresentem em sua maioria como conservadores, nos parece que limitar os evangélicos ao campo da extrema direita não ajuda no diálogo, pelo contrário, faz com que se perca a oportunidade de politizar pelo campo progressista pautas que ainda estão em debate, principalmente com a juventude evangélica.
A Marcha é composta por milhares de pessoas, e os evangélicos hoje são milhões no Brasil e seguem crescendo. Ocupam espaços de poder fundamentalmente pelo viés conservador, mas em sua base são diversos, heterogêneos e estão em disputa. Quando organizados se tornaram, indiscutivelmente, uma força de embate direto contra as pautas defendidas às duras penas pela esquerda, como igualdade de gênero, legalização do aborto, respeito à diversidade e contra à intolerância religiosa. O tamanho da Marcha sinaliza um recado claro: de que darão continuidade ao fenômeno social, político, cultural e econômico em curso.
A religião é, como pudemos ver, identidade mobilizadora do povo brasileiro. A escolha de Lula em não estar presente na Marcha em um momento importante de tentativa de aproximação e diálogo pode ser lido e reivindicado publicamente como uma certa despreocupação em relação aos evangélicos que, majoritariamente, construíram um muro concreto contra as pautas progressistas e, por isso, têm um discurso anti-esquerda consolidado. As ausências e presenças foram notadas, notificadas e seguem ecoando em nossos ouvidos: as eleições passaram, mas cometeremos um erro grave se não considerarmos a força dos evangélicos como setor organizado da sociedade que tem voz, voto e projeto. São muitos e seguem fortes.
1. PAPPE, Ilan (2006) A limpeza étnica de Palestina. Disponível em: https://www.simonandschuster.com/books/The-Ethnic-Cleansing-of-Palestine/Ilan-Pappe/9781851685554
* Delana Corazza é pesquisadora do Observatório sobre os Evangélicos e a Política do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
** Micaela Ovelar Márquez é analista politica argentina-venezuelana, faz parte do coletivo audiovisual "O Projecto Alfabetizador / Maestra Productions”
*** O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social é uma instituição internacional, orientada pelos movimentos populares e políticos da Ásia, Africa e América Latina, que tem como objetivo promover o pensamento crítico por meio de uma perspectiva emancipatória em prol das aspirações dos povos. Leia outras colunas.
**** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Nicolau Soares