ENTREVISTA

'Quem é LGBT não pode ter medo de ser, apesar da violência', diz autora de dossiê

No país que mais mata LGBTQUIAP+, Pietra do Prado sustenta necessidade de desafiar preconceito e garantir direitos

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Representantes da Acontece LGBTI+, Pietra (esquerda) e Alexandre Bogas Fraga (direita), ao lado de Rita von Hunty, durante evento no Ministério de Direitos Humanos e Cidadania - Foto: Arquivo pessoal

O Dia Internacional do Orgulho LGBT acontece na próxima quarta-feira, 28. A data marca o início da luta moderna pelos direitos dessa população. Mas não há muito o que comemorar. No último ano, 273 pessoas LGBTQUIAP+ foram assassinadas no Brasil.

Significa que, a cada 32 horas, um ser humano perde a vida simplesmente por sua condição sexual ou de gênero. São dados assim que colocam o Brasil na liderança, há 14 anos, entre os países que mais matam essa população.

Esses números são revelados através do esforço de organizações que atuam na causa e compilados no Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil. Publicado em maio de 2023, o documento resulta da parceria entre a Acontece Arte e Política LGBTI+, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT).

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Em entrevista ao Brasil de Fato RS, a psicóloga Pietra Fraga do Prado, coordenadora-geral do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, que realizou o dossiê, e coordenadora de projetos da Acontece Arte e Política LGBTI+, faz um alerta sobre a gravidade da situação: “É realmente muito triste, ainda mais a gente partindo do princípio de que esses dados são subnotificados, porque não temos acesso a dados oficiais”.


Pietra: "O último avanço foi a criminalização da homofobia e da transfobia" / Foto: Arquivo pessoal

Ela reconhece que houve avanços, fruto da luta das organizações militantes, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Faltam políticas públicas efetivas e uma legislação específica que aprimore os mecanismos de criminalização da LGBFfobia no país.

Confira a entrevista:

Brasil de Fato RS - Neste dia 28 é celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBT. A data marca o início do movimento pelos direitos humanos da comunidade LGBT+. A partir de sua vivência no movimento Acontece – Arte e Política LGBTI+, como entendes o papel dessas organizações na luta e no avanço por direitos no Brasil?

Pietra do Prado - Não só da Acontece o papel fundamental das organizações que a gente tem é na luta e no avanço por direitos humanos no Brasil, principalmente da comunidade LGBT. As organizações desempenham um papel de conscientizar, de mobilizar e defender esses direitos, além de serem importantes também na visibilidade e na quebra de preconceitos para a gente promover a inclusão, a igualdade de direitos. E um outro papel fundamental que muitas organizações têm, a Acontece é uma delas, é pressionar o governo e as instituições para adotarem políticas públicas que garantam a proteção e promoção dos nossos direitos como comunidade LGBT.

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BdF RS - Quais os principais avanços que o movimento organizado conquistou para essa população nos últimos anos?

Pietra - O último avanço foi a criminalização da homofobia e da transfobia. Mas teve outros como a aprovação do casamento civil igualitário pelo Supremo Tribunal Federal. Também a garantia do direito ao nome social e de inclusão das populações LGBT nas políticas afirmativas, o que antes não tinha.

BdF RS - Nos fale sobre o Acontece – Arte e Política LGBTI+. Quando surgiu, onde e como atua?

Pietra - A Acontece foi criada 10 dez anos atrás. Ela aniversaria neste mês de junho. Tem a sua sede em Florianópolis. O objetivo principal é promover a arte e a política voltada para a comunidade LGBT. A forma de atuação vem muito por manifestações culturais, como exposições, performances, debates. Existem também os cine debates. Assistimos um filme e debatemos. Também atuamos conscientizando a sociedade sobre as questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero.

Em 2022, retrato de LGBTfobia no Brasil foi principalmente de mulheres trans e travestis

BdF RS - É interessante ver a palavra "arte" no nome do grupo. Traz uma outra perspectiva.

Pietra - Total. Sempre que leio esse "arte", lembro de uma intervenção em Brasília e que foi muito pelas pessoas da Acontece. Elas colocaram manchas de sangue nos corpos e a bandeira LGBT embaixo, representando essa violência da LGBTfobia, quando fatalmente mata a gente.

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4ª Marcha Nacional contra a Homofobia foi realizada em Brasília no dia 15 de maio / Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

BdF RS - A próxima pergunta entra um pouco nesse aspecto. Você é uma das coordenadoras do Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil. Esse relatório denuncia que, durante o ano de 2022, ocorreram 273 mortes de LGBTs de forma violenta no país. Equivale a uma morte a cada 32 horas. O que esses dados revelam sobre o Brasil?

Pietra - É realmente muito triste, ainda mais partindo-se do princípio de que esses dados são subnotificados. A gente não tem acesso a dados oficiais, por exemplo, de delegacias, do IML (Instituto Médico Legal), da Secretaria de Segurança Pública. Esses órgãos não coletam essas informações ainda. É a luta que estamos travando também. Mas o número que a gente já tem hoje mostra a urgência de combater a LGBTfobia no Brasil. E mostra como é persistente esse preconceito, o quanto está arraigado mesmo na nossa sociedade e que precisamos combater via políticas públicas para garantir a segurança, a vida e outros direitos da população LGBTI+.


Lançamento do dossiê de 2022, com a apoio do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e da Secretaria Nacional de Direitos de Pessoas LGBTI+ / Foto: Arquivo pessoal

BdF RS - A pesquisa apresenta quais grupos são as maiores vítimas e quais as localidades com maior ocorrência das mortes violentas?

Pietra - Sim, temos inúmeras variáveis para entender onde essas mortes acontecem. Tem o período do dia, com que tipo de arma, se é em espaço público ou privado, a idade dessas pessoas, a raça e etnia, o próprio segmento, que a gente chama, da comunidade LGBT.

Em 2022, o retrato de LGBTfobia no Brasil foi principalmente de mulheres trans e de travestis, que tiveram mais mortes, com idades entre 20 a 29 anos, pessoas pretas e brancas, que foram mortas com armas de fogo em espaço público no período noturno. Especialmente no Nordeste e no Sudeste, que sempre têm um histórico de registrar os índices mais preocupantes. Em questão de estados são Ceará e São Paulo.

Mas acho importante colocar que todos os segmentos têm sido sistematicamente vitimizados por essa violência. Por mais que tenha a divisão dos segmentos, é importante atentar a todos eles.

BdF RS - E o mesmo com relação aos locais? Acontece em todo o Brasil?

Pietra - Em todo o Brasil. Acho esses índices de Nordeste e Sudeste são mais altos também porque temos mais formas de investigação nessas macrorregiões e não por não estar acontecendo (a violência) em outras regiões. Talvez esteja até acontecendo mais frequentemente só que, como a gente não tem como chegar a esses números, acaba sendo subnotificado.

BdF RS - Tem uma espécie de apagão então com relação a esses dados pelo poder público?

Pietra - É o maior desafio do Observatório. Quando a gente possui esses dados via poder público consegue chegar mais próximo das realidades em que acontecem essas mortes.

Tem discriminação e preconceito no acesso à Justiça, à saúde e à educação

BdF RS - Chama a atenção, ao olhar o relatório, o número significativo de suicídios, 30 entre as 273 mortes. O que equivale a mais de 10% do total. Parece revelar também um problema de saúde mental. Quais são as outras violências que essa população sofre, porque além das mortes tem toda uma gama de problemas enfrentados por esse segmento.

Pietra - Sim, esse adoecimento mental, psicológico, é muito frequente por outras violências até chegar nessa violência fatal que é quando tiram a nossa vida. Mas existe a violência psicológica, ameaças que várias pessoas sofrem por serem LGBT, intimidação, humilhação, e a própria discriminação, seja na sala de aula, seja no trabalho.

Uma outra esfera de violência também é a institucional, quando o tratamento é diferenciado para essas pessoas, quando tem discriminação e preconceito no sistema de Justiça, no acesso à saúde, na educação. Então, às vezes essas pessoas não acessam esses serviços de maneira adequada por conta da sexualidade ou da identidade de gênero. São múltiplas violências que culminam nesse adoecimento.

A gente tem dados, por exemplo, que falam que, se tem uma pessoa que aceita a sexualidade, a identidade de gênero da pessoa LGBT, que seja amigo ou da família, diminui em 40% a chance dela tentar o suicídio ou de ter ideações suicidas. Isso já é muita coisa. Imagina se cada LGBT tivesse uma pessoa do lado, o quanto a gente não poderia diminuir o sofrimento dessas pessoas.

É preciso falar sobre diversidade nas escolas não para converter ninguém mas para garantir respeito

BdF RS - O Brasil carrega a marca de país que mais mata LGBT+ no mundo há 14 anos. Somente em 2019 a homofobia passa a ser considerada crime no Brasil, via STF. Vemos que é um problema histórico e estrutural. Quais as principais deficiências em políticas públicas para dar conta desse problema?

Pietra - A falta de uma legislação específica para criminalizar a própria LGBTfobia em todas as suas formas é uma deficiência. Por mais que a homofobia seja considerada como crime, ela ainda está anexada ao crime de racismo. Então, o próximo passo seria ter uma legislação específica para não ter impunidade ou dificuldades para a punição dos agressores.

Outra deficiência é a carência de programas na área de educação para se falar sobre inclusão, sobre respeito, sobre diversidade sexual e de gênero nas escolas – e não para converter crianças para serem LGBT, que é como, às vezes, a gente escuta esse discurso. O ponto não é esse. Trata-se de falar sobre respeito, falar sobre outras formas de ser no mundo, sobre a complexidade que é ser um ser humano.


Representantes do Observatório, da esquerda pra direita: Wilians Ventura, Alexandre Bogas Fraga Gastaldi, Pietra Fraga do Prado, Bruna Bevenides (ANTRA) e Kayque Cordeiro / Foto: Arquivo pessoal

BdF RS - Isso que tu me falas me traz uma questão com relação a esse último período, de governo Bolsonaro, da voz institucional promovendo essa violência, como isso se tornou talvez mais forte ainda. E agora, em contraste, a gente tem esse atual governo que, na posse, subiu a rampa com a diversidade, mostrando um pouco a diferença. Como o período Bolsonaro prejudicou o avanço nessa questão?

Pietra - É muito impactante ter um presidente que coloca esse discurso de ódio tão abertamente. Que incentiva essa violência, legitima esse discurso de preconceito de uma forma que vai contra a Constituição, que nos diz sobre respeitar a diversidade sexual e de gênero das outras pessoas. Atitude que pode até acabar tirando a vida de várias pessoas ou cometendo outros crimes.

No governo atual, além de trazer toda essa representatividade na própria posse, acho que o principal são os investimentos direcionados, principalmente via políticas sociais, para essas populações minoritárias. É o cuidado com a causa indígena, com a população negra, que também sofre violências sistemáticas durante anos no Brasil.

A população trans tem que poder ter a oportunidade de estudar, de se formar

BdF RS - No que você considera fundamental avançar para garantir os direitos humanos à população LGBT? Como o orgulho LGBT pode contribuir?

Pietra - Quem é LGBT não pode ter medo de ser, por mais que possam acontecer essas violências. Acho que é da gente se mobilizar para que os nossos direitos sejam respeitados e garantidos. Um ponto do avanço que acho importante a gente colocar é na saúde. Nesse cuidado em saúde mental, na saúde geral também, para combater essa discriminação. Também essa discriminação no mercado de trabalho, dessas pessoas serem empregadas, de principalmente a população trans poder ter a oportunidade de estudar, de se formar, de entrar pro mercado de uma maneira competitiva também. Porque eles têm tantos direitos negados para acessar essa educação, e tantos outros, que ficam numa vulnerabilidade muito extrema.

Então, é combater isso de várias formas, incentivando essas pessoas a estudarem, a conviverem com a família, a terem amigos. Isso também é muito protetivo para a nossa saúde mental, é fundamental para viver com qualidade de vida, e para exercer a cidadania.

BdF RS - Uma mensagem final?

Pietra - Nós da Acontece LGBTI+, e do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, também gostaríamos de contar para os leitores que eles também podem fazer a diferença para a comunidade LGBTI+. Você pode nos fazer um PIX agora, no [email protected], de 20 reais, para contribuir diretamente na manutenção da equipe responsável pelo monitoramento e documentação das violências e mortes que afetam a nossa comunidade LGBTI+.

Porque é com esse trabalho que a gente consegue pressionar o poder público para prevenir essas tragédias e garantir a segurança de todas as pessoas LGBTI+ mais no Brasil. E você pode contribuir diretamente com a sua doação.


Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Ayrton Centeno