A vice-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, participou nessa segunda-feira (26) de seu primeiro ato público após a definição do atual ministro da Economia, Sergio Massa, como pré-candidato do oficialismo (coalizão governista) para a disputa das eleições presidenciais, em outubro. Na ocasião, ela explicou o motivo de ter havido uma escolha de consenso, sem a necessidade de submeter nomes às prévias, e rasgou elogios a Eduardo “Wado” de Pedro, que não poderá disputar a presidência.
O evento em questão foi convocado para celebrar a repatriação de um avião utilizado para os chamados voos da morte durante a última ditadura civil-militar argentina (1976-1983) — a aeronave, que estava nos Estados Unidos, foi utilizada em dezembro de 1977 para atirar ao mar mulheres vítimas da ditadura, entre as quais havia integrantes da associação Mães da Praça de Maio e monjas francesas. Tais voos serviam para se livrar de cadáveres e para atirar pessoas sequestradas que a ditadura havia sequestrado, com o objetivo era se livrar dos vestígios dos assassinatos cometidos. Mas corpos apareceram no litoral, frustrando os planos dos criminosos.
Cristina, principal liderança da corrente kirchnerista dentro do oficialismo, aproveitou a ocasião para marcar posição em relação ao processo eleitoral. Ela até fez breves comentários positivos sobre Sergio Massa, que participou do processo de repatriação do avião. Mas investiu muito mais tempo e retórica em Wado.
“Eu disse ao Massa que se houvesse as Paso (prévias), nossa força política apoiaria o Wado”, afirmou Kirchner, ao lado de Sergio Massa. Ela mencionou o fato de Wado ter sofrido com a “tragédia da Argentina” — a ditadura —, ter tido que sair às ruas para saber onde estavam seus pais. Elogiou seu valor, sua convicção, seu “pertencimento a um projeto coletivo, que é coisa para poucos, para pouquíssimos”.
E por que exaltar o candidato que foi preterido mais do que aquele que foi escolhido para tentar manter a centro-esquerda no poder? Wado também estava no evento, porém na plateia. E sorriu bastante quando elogiado, aparentando um sentimento de orgulho.
Segundo artigo de Sebastián Lacunza no site elDiario.es, a escolha de Massa, junto com um pré-candidato a vice designado por Alberto Fernández, evidencia o "declínio da influência de Cristina Kirchner, figura central da política argentina e do peronismo desde 2003". 2003 é o ano em que ela se tornou primeira-dama, quando seu ex-marido, o finado Néstor Kirchner, chegou ao cargo de presidente — Cristina o sucedeu e governou o país de 2007 a 2015.
“Acho que ela estava falando para as bases”, explica Carlos Vidigal, professor de História da UnB, doutor em Relações Internacionais e autor de Relações Brasil-Argentina: a construção do entendimento, livro publicado em 2009. “Talvez a Cristina não esteja muito otimista com a eleição e esteja tentando preservar seu capital político”. O raciocínio seria o seguinte: se o Massa perder, a culpa não recai com força sobre ela, uma vez que não era seu candidato favorito. E a derrota não pode ser descartada, porque a grave crise econômica tende a desgastar o atual governo e sua candidatura.
A escolha por Sergio Massa veio após uma disputa forte entre Cristina Kirchner e o presidente Alberto Fernández, lembra o professor. Uma disputa que tem a ver com divergência de visões políticas e passou por muitas críticas por meio da imprensa no passado recente. Fernández é crítico de uma vertente conhecida na Argentina por “cristinismo”, que enfatiza a dimensão ideológica, o “aspecto setentista do kirchnerismo”, aquele que reverencia a luta armada contra a ditadura. “Ela sempre esteve mais ligada a esse espírito, que causa incômodo tanto em setores conservadores do peronismo quanto entre muitos governadores de províncias”.
Vidigal conta que, nas últimas semanas, chegou a 14 o número de governadores provinciais (de um total de 24) que se aproximaram da candidatura de Massa e também do candidato que era o favorito do presidente Fernández: Daniel Scioli, embaixador no Brasil. “A candidatura Scioli é colocada na mesa quando a Cristina escolhe o Wado. Então, havia três candidatos: Wado (mais à esquerda), Scioli (mais à direita) e o Massa, que conseguiu se colocar entre os dois”.
Sergio Massa dialogou durante todo o processo decisório com os dois expoentes da disputa (Kirchner e Fernández), segundo o professor. “Nessas últimas semanas, governadores não kirchneristas bloquearam o nome do Wado e a Cristina trabalhou pra bloquear o do Scioli. E aí sobra, entre aspas, para o Massa”.
Embora, falando assim, pareça uma decisão consensual de um meio termo, Vidigal acredita que a escolha por Massa seja “uma derrota da Cristina”. Não só pelo fato de Wado ter sido preterido mas também pela escolha de Agustín Rossi como candidato a vice. Rossi foi ministro da Defesa do governo Fernández e é muito ligado ao presidente. Vale lembrar que, na Argentina, o vice-presidente é quem comanda o Senado.
Embora Cristina Kirchner tenha ironizado a insistência de Alberto Fernández pela realização de prévias e destacado o fato de ter sido escolhido um pré-candidato de consenso, haverá prévias no oficialismo, porque além da chapa Massa-Rossi, também estão inscritos para as prévias, pela coligação oficialista União pela Pátria, Juan Grabois (presidente) e Paula Abal Medina (vice). Mas essa disputa deve ser mera formalidade, uma vez que a chapa com apoio do atual governo terá mais força.
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Pela coalização opositora (Juntos pela Mudança), haverá disputa nas prévias entre Patricia Bullrich, apoiada pelo ex-presidente Mauricio Macri, e Horacio Larreta. “Ela representa, dentro desse campo liberal, um posicionamento muito à direita. Tem uma visão muito dura do processo político. O Larreta aceita o diálogo com os peronistas. Mas, nos dois casos, a saída do Wado é ruim para a oposição, porque o Massa está mais ao centro e dialoga com uma porção maior da população”, analisa Vidigal, que destaca também o candidato de ultradireita Javier Milei, que está “correndo por fora porque ninguém sabe qual o potencial dele”.
Peixe fora d´água
Durante o evento com Cristina Kirchner, Sergio Massa pouco falou. Fez uma breve declaração sobre a importância de repatriação do avião e não mencionou as eleições. “O Massa parecia desconfortável”, reparou Carlos Vidigal. “O ambiente não era dele. Nem os políticos presentes nem o discurso. Esse discurso (dos direitos humanos, de resgate da memória dos crimes da ditadura) é do kirchnerismo duro”.
Porque então ele se envolveu no processo de recuperar o avião? “Porque ele também precisa desses votos”, explica o professor. “O que a gente viu ali (no ato) é o candidato acenando para os kirchneirtas à esquerda saberem que terão lugar no projeto dele”.
Edição: Thales Schmidt