O município era quase do tamanho de Sergipe, tinha 19.750 quilômetros quadrados
Falei a um amigo que só vi neve uma vez na vida, em El Alto, na Bolívia, e ele me perguntou sobre o lugar em que passei mais frio no Brasil. Contei: não foi no alto das montanhas de Minas Gerais nem na região Sul.
Eu estava em Barra, no oeste baiano, fazendo um trabalho para o Mobral, nos municípios considerados mais problemáticos do país, em termos de alfabetização. O município era quase do tamanho de Sergipe, tinha 19.750 quilômetros quadrados. Ia da margem esquerda do rio São Francisco até a divisa com o Piauí.
Mais causos: Coluna do Mouzar
A gente ia casa por casa em todo o município, vendo se tinha analfabeto nelas e saber porque não aprenderam a ler e escrever. Uma das coisas que me surpreenderam nos lugares mais distantes foi conhecer pessoas que eram alfabetizadas, mas ficaram tanto tempo sem ler nem escrever que esqueceram, não sabiam mais. Isso existe e chama-se regressão.
Viajávamos num jipe. Às vezes, andávamos por trilhas de animais, com uma roda do jipe na trilha e a outra “roçando” o mato. Passávamos dias num rumo, voltávamos a Barra, descansávamos um dia e partíamos em outra direção.
Assim, fomos parar na divisa da Bahia com o Piauí, lugar com muito pouca vegetação, uma caatinga bem rala, e muito calor durante o dia.
O lugar tinha oito casas, cada uma distante uns cinquenta metros das outras. Ficamos para dormir numa casa dessas, fomos bem recebidos. Quando escureceu foi que eu me lembrei de uma coisa que todo geógrafo tem obrigação de saber e eu vacilei: em clima desértico, durante o dia faz muito calor, mas à noite gela. E lá era quase deserto.
Outra andança... Meu gosto pela Bahia
Umas pessoas se acomodaram em redes e para mim e mais um sobrou espaço no chão, no meu caso com um couro de boi servindo de cama, sem nada pra cobrir. E foi esfriando, esfriando...
O dono da casa me viu de manga de camisa e falou que eu não ia aguentar o frio. Foi à casa de um filho ali perto pedir um cobertor emprestado. Era o que chamávamos “cobertor de soldado”, bem fino, mas ajudava.
Só que estava cheio de pulgas. Não aguentei. Levantei decidido a acender uma fogueira no terreiro, mas já encontrei uma fogueira acesa. Um companheiro da equipe me antecipou. Logo veio mais um. E passamos a noite conversando.
Pior: no povoado seguinte, o frio era igualzinho, mas aí nem tentei dormir, fui logo acendendo uma fogueira.
*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Daniel Lamir