Entre 2 e 5 de julho, Brasília sediou a 17a Conferência Nacional de Saúde sob um clima muito diferente da última edição, realizada há 4 anos. A organização do evento estima que mais de 6 mil pessoas participaram do encontro, entre entre usuários do sistema de saúde, entidades da sociedade civil, fóruns regionais e movimentos sociais.
O encerramento da conferência, cujo tema foi “Garantir Direitos e Defender o SUS, a Vida e a Democracia”, contou com a presença do presidente Lula, que exaltou a retomada da participação popular para a construção de políticas para a saúde.
“Todas as conquistas que nós temos na Saúde são obra e trabalho de vocês que participam das Conferências Nacionais de Saúde, exigindo do governo que faça as coisas melhorarem. Vocês, melhor do que eu, sabem o significado do SUS. Vocês, mais do que eu, sabem quantas vezes o SUS foi ofendido”, recordou o mandatário, após abraçar o mascote do Zé Gotinha e antes de elogiar o Sistema Único de Saúde e seu alcance em um país com dimensões continentais.
Presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), um dos organizadores do evento, Fernando Pigatto anunciou o compromisso de fortalecer o papel dos conselhos locais em todas as unidades de saúde do Brasil.
“Tudo que veio das conferências municipais, das estaduais, das conferências livres, estamos transformando em propostas para criar diretrizes para o plano plurianual, para o plano nacional de saúde. Nós queremos também fazer uma devolutiva de tudo que foi aprovado aqui para fazer com que aquelas pessoas que participaram desde lá da ponta saibam o que está sendo implementado e que pode melhorar nas suas vidas”, discursou.
Na véspera do encerramento (4), parte dos participantes da conferência realizou um protesto em defesa do SUS em frente ao Museu da República. Entre palavras de ordem e cobranças, o nome da ministra da Saúde, Nísia Trindade, foi exaltado pelo público.
Sua permanência no cargo foi garantida por Lula, após contornar pressão do centrão, ávido por controlar um dos maiores orçamentos do governo, sem a necessidade de barganhar e liberação de emendas do relator. Dias antes, Nísia já havia anunciado um investimento de R$ 200 milhões para expandir a assistência mental no SUS, em consonância com demandas de gestores e usuários.
“Há dois pontos de consenso [na conferência]: reforço do SUS e da democracia. E nesse contexto, a saúde mental tem lugar especial. Não só porque tivemos diversos retrocessos, especialmente a partir de 2016 com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, mas além disso o sofrimento dos últimos anos, com o negacionismo e com uma visão que é totalmente o oposto da humanização do atendimento, que é mesmo um descaso com o sofrimento, agravado com a pandemia de covid-19”, disse a ministra em coletiva de imprensa realizada no dia 3.
O repasse será direcionado para quase 3 mil Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) existentes no país e para os 870 Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT). Ambos terão recomposição do financiamento e os recursos serão incorporados ao limite financeiro de média e alta complexidade de estados, do Distrito Federal e dos municípios com unidades habilitadas.
Medicina humanizada e fatia maior do orçamento
Pela dimensão e alcance em todo território, programas como o Mais Médicos, o Farmácia Popular, o Brasil Sorridente, além do personagem Zé Gotinha, símbolo das campanhas de vacinação, foram destaques nas plenárias.
A retomada desses e outros programas, que haviam sido extintos ou enfraquecidos durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), foi comemorada pelo CNS. A associação popular, cujas atribuições constam em lei, não abre mão de ampliações no Plano Nacional de Saúde e Plano Plurianual de 2024-2027.
“Nós precisamos avançar, principalmente combatendo o desfinanciamento do SUS, que perdeu mais de R$ 60 bilhões nos últimos tempos, principalmente depois da emenda constitucional 95. Então, para nós, temos como principal meta chegarmos a 6% do Produto Interno Bruto até o final do próximo período, até o final desse governo, é fundamental e é isso que a gente vai buscar”, reivindica Pigatto.
As Conferências Livres também trataram de propostas como o aumento do alcance das Práticas Integrativas e Complementares (PICS), atualmente presentes em todas as capitais brasileiras e em 54% dos demais, de acordo com dados do Ministério da Saúde. De quiropraxia e musicoterapia à acupuntura, há dezenas de modalidades que visam o equilíbrio corporal e físico, prevenindo doenças e promovendo saúde.
Defensora das práticas, a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) enxerga oportunidades de promover a conexão com conhecimentos ancestrais. “Claro que as práticas denotam saberes e fazem parte da nossa própria história. Portanto, todas as práticas integrativas, complementares, são fundamentais para que nós tenhamos visão por inteiro da própria saúde, para que nós possamos entender que a nossa saúde é também uma saúde espiritual, uma saúde mental, para além de uma saúde física”, declara.
Há também outras práticas que, apesar de populares, ainda possuem acesso limitado no SUS. Uma delas diz respeito ao trabalho das doulas, profissionais envolvidas no parto humanizado, onde a mãe e o bebê ocupam o centro das atenções.
Organizadas em 19 associações estaduais, as doulas lutam para aprovar na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 19.4321, que já passou pelo Senado, para regularizar e uniformizar a profissão. Um movimento que ajudaria a reverter a violência obstétrica e de gênero, que de acordo com Morgana Tavares de Almeida, presidente da Federação Nacional de Doulas, mantém o Brasil na segunda colocação mundial entre países que mais recorrem a cesarianas.
Atualmente, apesar da demanda crescente, a contratação e remuneração dessas atividades, que iniciam bem antes do parto em si, é feita de maneira informal e, em alguns casos, até voluntária. Isso porque, explica Morgana, há um compromisso com a causa e um ativismo inerente aos profissionais que acompanham as gestantes antes, durante e após o parto, oferecendo apoio emocional e sugerindo técnicas e exercícios para alívio da dor.
“É a inserção no SUS que vai fazer com que possa se compreender como é o bem estar daquelas pessoas. É por isso que a gente entende que a mudança necessária, para além de ser inserida, que outras pessoas tenham acesso à saúde suplementar possam ter doula, que a gente possa promover uma modelagem, um padrão, mais acessível em todos os estados do país”, aponta.
Histórico democrático pela universalização do acesso
Iniciadas em 1941, as Conferências Nacionais de Saúde percorreram estão diretamente ligadas às conquistas do setor e a própria elaboração do SUS, que seria instituído na Constituição de 1988. Conforme recorda Pigatto, a sua 8° edição, em 1986, foi um marco para a consolidação da participação da sociedade civil - justamente o mesmo ano em que começava o processo de redemocratização do país.
Consolidado com ciclos de 4 anos, o evento tratou ao longo da história uma série de eixos temáticos fundamentais ao que se entende hoje por Saúde pública brasileira, como a municipalização, a reforma sanitária e o próprio financiamento do sistema. Uma lógica duramente mutilada após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016.
“Passamos por um momento de golpe no país. Construímos a 16°, que foi a última conferência e que nós chamamos de oitava + 8 para demarcar aquilo que estava na Constituição. E agora, quando a gente chega na 17°, superamos todo o desafio de fazer com que, num cenário adverso, de um governo de extrema direita, não só no país mas também em vários municípios e estados, a gente pudesse realizar essa conferência”, enaltece Pigatto.
Envolvido em ações comunitárias e em defesa da agricultura familiar desde os anos 1980, Pigatto afirma que o desfinanciamento da Saúde, agravado nos últimos 4 anos, empurrou ainda mais responsabilidade aos municípios. Nesse contexto, questiona a falta de parâmetros e os “interesses não republicanos”, segundo ele, na distribuição de recursos por um grupo restrito de parlamentares via orçamento secreto - em 2023, as chamadas emendas de relator devem consumir R$ 10 bilhões apenas para a área.
“A correlação de forças no Congresso é difícil, então cabe nós estarmos nas ruas mostrar qual é o rumo que o país precisa tomar para dar respaldo ao programa de governo que ganhou a eleição. Por isso, um plano de governo para a saúde só é implementado com quem tem compromisso com o SUS, e a ministra Nísia tem esse compromisso”, adiciona.
A própria ministra, que durante o evento lançou o Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais em Saúde - plataforma interativa que pretende reunir iniciativas, práticas e saberes regionais, diz não ser mais possível pensar um governo que seja isolado da sociedade civil. “Nesses seis meses, posso dizer que a Saúde está de volta, mas a Saúde como um projeto coletivo na luta contra as desigualdades e pela conquista do bem viver”, finaliza.
Edição: Rodrigo Durão Coelho