Faz oito meses que ocorreram as últimas eleições presidenciais no Brasil. Oito meses que a mídia publicou diversos vídeos com tentativas de compra de votos por empregadores em diversas localidades do país, que a sociedade brasileira relembrou as práticas coronelistas de compra de votos. São oito meses desde que não se fala mais no assunto.
A eleição de 2022 já está no passado, mas os crimes que foram cometidos e a sensação de impunidade pelo esquecimento permanecem. A dificuldade de combater práticas nocivas estruturais da formação social brasileira é um grande problema a ser enfrentado pelas instituições e por aqueles que acreditam, defendem e lutam por justiça. E em breve teremos que escolher nas urnas novas prefeituras e nova vereança. Como pretendemos enfrentar o “voto de cabresto contemporâneo”?
O “voto de cabresto” é uma prática que ficou conhecida após as análises sociais do período da República Velha. Este conceito não pode ser analisado separadamente da ideia de “coronelismo”, pois são os coronéis os sujeitos ativos dessa prática, até então, interiorana. Contemporaneamente, contudo, tal prática foi metamorfoseada e exportada para além dos rincões rurais do país, sendo verificada tanto em estabelecimentos comerciais urbanos, como nos bairros populares metropolitanos (comunidades, favelas e periferias).
Victor Nunes Leal, em seu livro Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil, colocou que o “coronelismo” é uma forma de manifestação do poder privado por meio da troca de proveitos com o poder público. Apesar do autor ter associado esse fenômeno com a estrutura agrária e o coronel com a figura do senhor de terras, percebemos que profissionais liberais (tais como médicos, advogados e engenheiros) também são aliados políticos de ditos “coronéis”.
Como vimos no caso do Conselho de Medicina que colaborou com o negacionismo de Bolsonaro, defendendo a política pró-cloroquina.
O sujeito passivo dessa prática é uma grande massa de trabalhadores que tiram sua subsistência da terra e vivem na pobreza econômica e social. Diante destes, o “coronel” é um homem branco, rico e influente que exerce uma espécie de jurisdição informal sobre seus dependentes.
Nessa conformação estão os “currais eleitorais” com os “votos de cabresto”. No ambiente urbano, por sua vez, o assédio eleitoral é exercido pelo patronato, que coage os trabalhadores das fábricas e dos comércios a votarem nos seus candidatos. Exemplo disso foi o caso da empresa Havan e seu dono, Luciano Hang, que coagiu seus funcionários a votarem no candidato de sua preferencia, Jair Bolsonaro.
Mas diversos foram os vídeos divulgados na mídia nacional durante as últimas eleições presidenciais, em que empregadores ameaçaram demitir todos os funcionários caso Bolsonaro saísse derrotado do pleito. O assédio eleitoral no trabalho, que atualmente vivenciamos, pode ser entendido como um resquício de um Brasil comandado, nos termos de Florestan Fernandes (em Sociedade de classes e subdesenvolvimento), por uma elite arcaica, com forte apego às formas de mandonismo político, aversão a mudanças e com uma cultura de acomodação bancada pelo Estado.
A burguesia brasileira tem mais poder social e político do que econômico efetivamente, dessa forma, é dependente do Estado para patrocinar seus projetos privados. Além do “coronel” no ambiente rural e do empregador no ambiente urbano, o “voto de cabresto contemporâneo conta com a complacência de líderes religiosos e da milícia. A tradicional bancada ruralista, atrelada às bancadas da bíblia e da bala, exerce forte poder e interferência na política nacional. Portanto, os poderes de coação para sua eleição acompanharam seu crescimento no país nos últimos anos.
Nesse ínterim, o “novo voto de cabresto” ou “voto de cabresto contemporâneo” se expande além do uso da força e da figura personalíssima de um coronel local, e passa a ser predominantemente exercida por meio de coação moral, principalmente pela ameaça de ficar sem trabalho.
É preciso lembrar tais acontecimentos recentes para, ao entendê-los em toda sua historicidade, cobrar por justiça aos trabalhadores prejudicados. Assim como é premente não deixar que tais ataques à democracia caiam no esquecimento; ao menos até que novos vídeos sejam divulgados nas redes sociais e causem um novo breve desconforto, visibilidade passageira que tão logo é usurpada por uma notícia ainda mais devastadora.
Não podemos naturalizar a reincidência de práticas antidemocráticas, mas é preciso lutar para sua superação na realidade social brasileira. E, não podemos anistiar os fascistas de ontem, pois somente percorrendo o caminho da socialização da justiça é que poderemos construir um Brasil com memória.
*Renata Falavina e Súllivan Pereira são advogadas, sociólogas e pesquisadoras do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
**Este é um artigo de opinião. As opiniões das autoras não necessariamente expressam a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho