A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) encerrou os dois primeiros meses de atividade sob fortes críticas de parlamentares da base governista que atuam no colegiado. O grupo se queixa de falta de foco, desigualdade de tratamento entre progressistas e conservadores na apreciação dos pedidos apresentados à CPI e trabalhos voltados ao que consideram uma perseguição à entidade.
O deputado Valmir Assunção (PT-BA), titular do colegiado, aponta falta de objeto determinado no roteiro da CPI, conforme determinam as regras para a criação de comissões do tipo. Essa foi a crítica mais frequente de governistas desde o início dos trabalhos. O requerimento de criação da CPI fala em “investigar a atuação do grupo MST e do seu real propósito, assim como dos seus financiadores”., sem especificar eventuais ocorrências a serem averiguadas.
“O ideal seria que a gente pudesse produzir um relatório que, por exemplo, aperfeiçoasse a legislação para casos de grilagem, crimes ambientais e trabalho escravo, mas acho que infelizmente isso não vai acontecer porque eles têm feito da comissão apenas um palanque contra movimentos populares”, avalia Valmir Assunção (PT-BA).
O deputado se queixa da qualidade das iniciativas aprovadas pelo grupo. “Se a gente analisar os dois meses de trabalhos, a gente teve apenas uma diligência, em São Paulo, que acabou com parte da comissão cometendo crime, invadindo a casa das pessoas, e com representação contra esses deputados”, ressalta Assunção. A ação se refere à diligência feita pela CPI logo no final de maio, em Presidente Prudente (SP), a pedido do deputado Gustavo Gayer (PL-GO), quando o colegiado visitou acampamentos que não eram do MST, e sim da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL).
A entidade é ligada a José Rainha, liderança que já pertenceu aos quadros do MST, mas do qual se desvinculou em 2007 por conta de divergências políticas. Rainha, inclusive, é alvo de pedidos de convocação já chancelados pela CPI e deverá ser ouvido pelos parlamentares em agosto. Tem feito parte da estratégia da ala bolsonarista também mirar outros nomes que no passado tiveram dissidências com o MST. É o caso dos ex-acampados Nelcilene Reis e Ivan Xavier, que foram ouvidos em 30 de maio. Os dois fizeram acusações que depois foram rebatidas pelo MST por falta de comprovação e se retiraram da sessão da CPI antes que governistas pudessem lhes fazer perguntas.
“São pessoas que o MST colocou pra fora do movimento justamente porque não seguiam aquilo que era acordado coletivamente dentro do assentamento, que não entendiam a importância da pauta da reforma agrária. Elas saem ressentidas e reproduzem o discurso contrario à reforma agrária e que interessa para os bolsonaristas, que querem justamente combater a reforma”, diz Nilto Tatto (PT-SP), um dos membros do colegiado.
Balanço
Ao todo, a comissão recebeu 302 requerimentos, a maioria apresentada pelas siglas PL (83), PT (72), PSOL (50) União (48) e PCdoB (47). Instalada oficialmente em 17 de maio, a CPI realizou 11 reuniões, sendo as duas primeiras para instalação do colegiado, eleição do presidente e seu vice e apresentação do plano de trabalho. Nas outras nove, foram votados 74 requerimentos sobre busca por depoimentos, levantamento de informações e outros pleitos, dos quais quatro foram rejeitados, sendo todos estes de deputados da esquerda.
Entre os 70 pedidos aprovados pelo colegiado, 60 foram de opositores e dez de parlamentares governistas. O placar traduz a configuração de forças do colegiado, que tem apenas oito membros do campo progressista entre os 26 integrantes titulares da CPI. Pelo menos 17 destes últimos são ligados à Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), braço do ruralismo no Congresso Nacional. “Os requerimentos de convocações e convites do PSOL foram dezenas, mas dois ou três foram apreciados. Há uma desigualdade que não respeita a pluralidade da comissão na condução [dos trabalhos]”, critica Talíria Petrone (RJ).
É nesse cenário que deputados se queixam de falta de acolhimento a pedidos que buscam averiguar informações sobre conflitos agrários em pontos emblemáticos do país. É o caso de um requerimento assinado pela bancada do PT que pedia diligência na região conhecida como Complexo Divino Pai Eterno, no município de São Felix do Xingu (PA), a cidade com maior concentração de cabeças de gado no país e uma das que acumulam alto nível de desmatamento.
No local, agricultores sem terra apontam uso indevido de área pública por parte de fazendeiros. A disputa é acompanhada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acusa o Estado brasileiro de omissão diante do conflito. O caso envolve ameaças, expulsão de famílias, ação de pistoleiros e mortes de trabalhadores. No requerimento de diligência, o PT pedia oitivas da CPT, da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar (Fetagri) e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Pará, Carlos Bordalo.
O pleito foi negado pela CPI, que no mesmo dia rejeitou também requerimento de governistas que solicitavam levantamento de informações junto ao Ministério da Fazenda a respeito de inquéritos ou processos administrativos que apuram crimes cometidos por caçadores, atiradores e colecionadores, conhecidos pela sigla “CACs”. O grupo argumentou que os dados seriam relevantes para traçar características de quem pratica violência no campo, muitas vezes marcada pelo uso de armas de fogo.
Na ocasião, ao defender a negativa do pedido, o bolsonarista Marcos Pollon (PL-MS) disse ver “total desvio de finalidade” no requerimento. Na sequência, o relator da CPI, Ricardo Salles (PL-SP), foi consultado pelo presidente, Tenente-Coronel Zucco (Republicanos-RS), e recomendou a reprovação do pleito. “Do ponto de vista daquilo que é o caráter de uma CPI, para apurar irregularidades, ela [a CPI do MST] não tem feito nada, até porque ela não tem foco. E, quando colocam [críticas] para cima do MST, veja que já estamos na quinta CPI e nenhuma delas deu em nada. É só uma comissão pra criminalizar o MST e os movimentos que lutam por reforma agrária”, avalia Nilto Tatto (PT-SP).
O petista se refere às CPIs da Terra, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), do MST e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que ocorreram respectivamente em 2005, 2009, 2016 e 2017. Os autos dessas comissões anteriores foram, inclusive, solicitados por meio de requerimento apresentado pela bolsonarista Caroline de Toni (PL-SC) à CPI. Os parlamentares votaram e aprovaram o pedido em 14 de junho.
Mulheres
Seguem em destaque, entre mulheres que compõem o colegiado, as queixas relacionadas às interrupções nas falas das deputadas durante as sessões da comissão. As parlamentares reclamam de machismo na condução dos trabalhos e o caso tem sido investigado pela Procuradoria-Geral da República (PGR). O órgão foi provocado pela procuradora Raquel Branquinho, que coordena o grupo de trabalho do Ministério Público Federal (MPF) que trata de violência política de gênero, tema de legislação aprovada em 2021 pelo Congresso para resguardar os direitos das mulheres que concorram a cargo eletivo ou estejam em exercício de mandato.
A apuração corre em sigilo e nasceu a partir de atitude do presidente da CPI, Zucco, que cortou o microfone da deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) durante uma participação nos debates da comissão. As interrupções na fala de mulheres que compõem a CPI ocorreram em diferentes sessões, como na última terça (11), quando a psolista foi interrompida diversas vezes por Salles. Manifestações de tom machista surgiram também em outros formatos. Na quarta (12), por exemplo, o bolsonarista General Girão (PL-RN) chegou a dizer durante uma votação que respeita as mulheres porque elas são "responsáveis pela procriação e pela harmonia da família".
A discussão começou minutos depois de o deputado Éder Mauro (PL-PA) bater boca com Sâmia e Talíria Petrone e acusá-las de pertencerem ao que chamou de “chorume do comunismo”. O antagonismo se aguçou em meio a gritos, novas interrupções de falas e críticas mútuas. “Infelizmente, isso tem se tornado regra no parlamento, no plenário, nas comissões, nas redes sociais. Foi por isso que na última legislatura a gente conquistou a lei de violência política de gênero e a gente espera que haja avanços no enquadramento desses parlamentares por cometerem tal crime”, disse Sâmia ao Brasil de Fato em entrevista posterior ao término da sessão.
“É um ambiente tóxico, de violência machista sistemática”, acrescenta Fernanda Melchionna (PSOL-RS). Para Sâmia, a atitude da ala bolsonarista surge da irritação do segmento diante das críticas costumeiramente feitas pelas parlamentares. “Eles se utilizam disso porque sabem que estamos aqui para denunciar os crimes de boa parte do agronegócio brasileiro, daqueles que financiaram o golpismo, que têm ligação com trabalho escravo, com a disseminação de agrotóxicos. Violentar, interromper a palavra, cercear o direito de expressão e atuação na comissão é uma forma de impedir o conteúdo que a gente vem colocando, mas isso não nos esmorece. Somos muitas deputadas que se fortalecem uma à outra pra seguirmos nessa luta”, afirma a psolista.
Simbologia
Para Sâmia e outros parlamentares do campo progressista, em seus dois primeiros meses, a comissão se resumiu a uma disputa simbólica que tenta enquadrar o MST como movimento ilegal e fazer o dano de imagem respingar no governo Lula. A organização e o PT são parceiros históricos, ambos fundados na primeira metade da década de 1980, no bojo da luta popular contra o regime ditatorial.
“Esta CPI é um símbolo das disputas que ocorrem neste momento, em que o Bolsonaro se tornou inelegível e a Justiça avança na identificação dos golpistas do 8 de janeiro. É uma forma de tentar disputar a narrativa, de aglutinar a base bolsonarista. Aqui tem bolsonaristas que estão absolutamente isolados na política brasileira”, observa Sâmia Bomfim, ao acrescentar que não vê ganhos para a base extremista na comissão.
“Concretamente, não avançou na criminalização de movimento nenhum. Não foi identificado nenhum crime, nenhuma liderança do MST foi ouvida, nenhum documento foi avaliado. A única função foi disputa de narrativa nas redes sociais e a repetição de uma tese que eles têm de que o movimento seria criminoso. Agora, concretamente, não criminalizou o MST. Pelo contrário, tem servido de propaganda sobre a luta pela reforma agrária e sobre o MST também”, avalia Sâmia.
Edição: Leandro Melito