Em mais uma denúncia de escravidão envolvendo empregadas domésticas, a Justiça do Trabalho na Bahia negou indenização a uma mulher de 53 anos que, aos sete, teria começado a fazer os serviços da casa de uma família em Salvador. No total, ela passou mais de quatro décadas na residência, sem remuneração.
A sentença foi publicada no começo do mês. “Em seu âmago, naquela casa, [ela] nunca encarnou a condição essencial de trabalhadora, mas de integrante da família que ali vivia, donde se infere que, sob o ponto de vista do direito, jamais houve trabalho e muito menos vínculo de emprego”, argumentou o juiz do caso, Juarez Dourado Wanderlei.
Autor da ação, o Ministério Público do Trabalho (MPT) vai recorrer da decisão. A sentença foi criticada por entidades de defesa dos direitos humanos.
“É aquela velha história de dizer que a trabalhadora pertence ao seio familiar e, com isso, negar a ela seus direitos”, contesta Admar Fontes Júnior, coordenador estadual de enfrentamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo na Bahia, em entrevista à Repórter Brasil.
De acordo com a ação movida pelos procuradores do MPT, quando ainda era uma criança, a empregada doméstica foi entregue pelo próprio pai à família Cruz, para a qual trabalharia por 44 anos.
Ao longo desse período, além de fazer todo o serviço doméstico, ela também teria cuidado dos filhos dos patrões, em jornadas de até 15 horas diárias. Segundo o MPT, ela não tinha direito a férias e nem a descanso semanal.
Em 2021, auditores fiscais do governo federal classificaram a situação como trabalho análogo (semelhante) ao de escravo. Na sequência, teve início o processo judicial movido pelo MPT.
A ação pedia que a trabalhadora recebesse os salários retidos ao longo de 44 anos de serviços prestados, além de benefícios nunca pagos, como FGTS, descanso remunerado e 13º. No total, o MPT cobrava uma indenização de R$ 2,4 milhões.
Segundo Admar Fontes, que acompanhou a empregada doméstica no dia da fiscalização e prestou assistência nos meses seguintes, “ela se assustou quando soube que o juiz não considerou que ela trabalhava na casa da família”.
Para o advogado Dielson Fernandes Lessa, que representa a família Cruz no processo, “a decisão foi adequada e restabelece a justiça neste momento”.
Na avaliação do advogado, “a família entende que foi vítima de uma calúnia, porque nunca existiu esse tipo de tratamento [trabalho escravo]. A relação entre a suposta vítima com a família é de mãe e filha, de pai e filha”, disse, em entrevista por telefone à Repórter Brasil.
Jornada exaustiva, forçada e degradante
Em 2021, Tatiana Fernandes, auditora fiscal do Trabalho, participou da operação de resgate da empregada doméstica.
“A lei configura o que é trabalho escravo de forma muito objetiva. Não é uma condição que os auditores fiscais interpretam”, afirma.
Nesse caso específico, a fiscalização apontou a presença de três elementos para caracterizar o trabalho escravo.
O expediente de 15 horas diárias, com intervalos curtos entre um dia e outro, e sem direito a repouso e férias, configurou a jornada exaustiva.
As condições degradantes também apareceram no relatório, segundo Fernandes. “Os direitos mais elementares não estavam preservados: ela não tinha liberdade, não tinha privacidade, não tinha como gerir a própria vida”, explica a auditora.
A trabalhadora dormia em um quarto com os netos da patroa, de quem também chegou a cuidar, quando os filhos da dona da casa ficaram adultos.
Mesmo as saídas ordinárias, como idas ao mercado ou à padaria, eram controladas – a trabalhadora ouvia reclamações se demorasse.
Por fim, os auditores identificaram uma situação de trabalho forçado. “Ela não tinha a menor condição de sair daquela situação”, afirma Fernandes, já que a trabalhadora não tinha recursos financeiros para se manter fora da casa. Ela jamais teve conta bancária, por exemplo.
Afeto distorce relação
Em depoimento à Justiça, a trabalhadora disse que “nunca foi maltratada”, “que não aconteceu nada na casa que não tenha gostado”, e que inclusive “retornaria para a casa [da patroa] a passeio”. As declarações foram usadas pelo juiz para determinar que a relação era familiar, e não de trabalho.
A decisão é criticada pela pesquisadora Marcela Rage, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).“Esse grupo é a única coisa que ela reconhece como família. É muito nítido como a ideia de afeto distorce a situação e retira a relação do trabalho do foco”, diz a estudiosa, autora do mestrado “A invisibilidade do trabalho escravo doméstico e o afeto como fator de perpetuação”.
Na avaliação de Marcela, o fato de a trabalhadora não ter vivenciado violências explícitas não quer dizer que ela não tenha sido vítima de outros tipos de privação. Para Admar Fontes Júnior, o episódio não pode ser considerado um caso isolado.
“Todas as trabalhadoras domésticas que foram resgatadas relatam esse sentimento, que elas pertenciam ao seio familiar. Mas quando a gente pergunta mais detalhes, ouve que elas tinham um quarto nos fundos de casa, sem luz natural, não sentavam à mesa para comer com o restante dos moradores da casa e por aí vai”, ressalva.
Os resgates de trabalhadoras domésticas começaram a ficar mais frequentes no Brasil depois de 2017.“Precisa ser feito um trabalho a nível institucional para tornar visíveis as engrenagens da exploração do trabalho doméstico. Precisamos desconstruir essa naturalização de que a casa é o lugar do afeto, caso contrário, vamos reiterar essa prática cruel”, conclui Marcela Rage, da UFMG.