Está prevista para esta quarta-feira (19) a finalização, pelo governo federal, do relatório que deve agrupar as principais propostas dirigidas pela sociedade civil ao Plano Plurianual Participativo (PPA), instrumento de gestão que insere a população em geral no processo de decisão sobre quais políticas devem ser consideradas prioritárias para receber verbas da União nos próximos anos, no período 2024-2027. As medidas resultam de um processo de consulta popular que envolve principalmente plenárias presenciais nos 27 estados e uma votação virtual aberta ao público.
Com a finalização do documento, o Ministério do Planejamento e Orçamento (MPOG) deverá listar as 50 propostas mais votadas em meio à totalidade das manifestações feitas na plataforma e também as 20 mais votadas dentro da área de cada ministério. “Na sequência, as pastas fazem análises técnicas dos pontos para incorporá-los ao PPA. Eles podem ser transformados em objetivos, metas, entregas, indicadores que vão compor o projeto de lei (PL) do PPA”, explicou ao Brasil de Fato o secretário nacional de Participação Social do governo, Renato Simões.
O PPA está previsto na Constituição Federal, tem perspectiva de médio prazo e fixa diretrizes, objetivos e metas que devem ser considerados pelo governo federal de plantão. O PL em questão deverá ser encaminhado ao Congresso Nacional pela Presidência da República até 31 de agosto. Depois, terá que ser analisado, votado e aprovado por deputados e senadores para que possa se converter em norma.
Tradicionalmente, os PPAs Participativos são realizados a cada primeiro ano de gestão para que possam traçar os passos do governo nos anos seguintes. Desta vez, no entanto, o plano, nos moldes como foi concebido, ressurge após um jejum que coincide com o intervalo da gestão Bolsonaro. O PPA 2019-2023 foi formatado sem abertura de canal com a sociedade civil, o que fez a gestão se tornar alvo do segmento, que a acusou de autoritarismo.
Neste primeiro semestre do ano, o programa foi resgatado pela gestão Lula e tem sua gênese ainda em janeiro, quando se deu a organização do MPOG e da Secretaria-Geral da Presidência (SGP), em cuja batuta está a Secretaria Nacional de Participação Social. Depois de montada a arquitetura administrativa da nova gestão, os mecanismos de participação popular foram sendo recuperados e rearticulados aos poucos. A jornada é ilustrada, por exemplo, pela evolução do número de entidades presentes nos Fóruns Interconselhos, instância de participação civil criada em 2011 que havia sido interrompida em 2017.
Fundados com o objetivo de reunir regularmente lideranças dos conselhos nacionais e outras entidades semelhantes, os fóruns contribuem para a elaboração e o monitoramento dos PPAs. A primeira edição realizada este ano ocorreu em maio e contou com 20 conselhos participantes, enquanto a segunda, ocorrida em julho, teve a presença de 33 conselhos nacionais em funcionamento e oito em processo de reativação. Neste último grupo estavam, por exemplo, o Conselho Nacional de Cidades e Conselho da Igualdade Racial.
“A centralidade de debater PPA hoje com toda essa participação é porque estamos redesenhando a máquina pública pra dar capilaridade aos ministérios. Na prática, como é que a política publica chega aos territórios e às pessoas que votaram no presidente? Com novos programas, consequentemente, com novas ações orçamentárias e com orçamento. As entregas do governo atual vão ser realmente fluidas a partir do ano que vem, quando a gente tiver esses vasos comunicantes novos, que estão sendo estabelecidos pelo PPA”, destrincha Simões.
Balanço
Segundo dados oficiais do governo federal, o PPA Participativo deste ano recebeu mais de 1,5 milhão de votos na plataforma virtual, que contabilizou ao todo 4 milhões de acessos. A votação se divide entre programas e propostas a serem priorizados. No caso dos primeiros, figura em primeiro lugar o Enfrentamento à Emergência Climática, capitaneado pelo Ministério do Meio Ambiente. Em segundo, aparece A Atenção Primária à Saúde, do Ministério da Saúde (MS). Os dois receberam separadamente mais de 20 mil votos.
O MS aparece novamente em destaque no ranking das propostas mais votadas, onde surgem medidas como a qualificação técnica para determinadas carreiras do Sistema Único de Saúde (SUS) e o aumento do piso da enfermagem, respectivamente com 95,7 mil e 92,5 mil votos. Pontos relacionados à segurança pública, medidas inclusivas para pessoas com deficiência, infraestrutura, questões educacionais, política penal e outros também compõem a lista. Aos 23 anos, a estudante de Ciências Sociais Brenna Villanova, integrante do Movimento Negro Unificado no Distrito Federal (MNU-DF), está entre aqueles que se engajaram no processo.
O que a gente espera agora é que o governo chame os movimentos populares para tratar dessa demanda
- Ceres Hadich, da direção nacional do MST
Inicialmente, ela participou de reunião local em Brasília (DF) que discutiu temas como o racismo religioso. “A gente está usando nosso direito como cidadão, como votante, que é falar das nossas necessidades, do que deveria ou não existir em determinadas pastas. Acho positivo que haja esse canal porque os povos de terreiro, por exemplo, ficaram durante seis anos excluídos da pauta política do país. É importante que esse diálogo tenha voltado e ele precisa continuar”, opina a universitária, que também atuou na votação eletrônica do PPA, na qual defendeu projetos nas áreas de igualdade racial, educação e cultura.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) está entre as entidades que também contribuíram. A organização se engajou no PPA Participativo desde os primeiros debates que discutiram, nas bases populares, a agenda a ser levada para as plenárias estaduais. Ao final, a organização apresentou uma proposta que trata do que chama de “amplo processo de reforma agrária”.
A pauta inclui pontos como regularização de todas as famílias sem terra, desenvolvimento dos assentamentos, com infraestrutura e estímulo à produção de alimentos em larga escala, assistência técnica, entre outros. A proposta reuniu 13.384 votos na consulta pública, ficando em 14º lugar no ranking exposto no site do PPA. “O que a gente espera agora é que o governo chame os movimentos populares para tratar dessa demanda”, afirma Ceres Hadich, da direção nacional do MST.
Desafios
De modo geral, organizações ouvidas pela reportagem também apontaram desafios relacionados ao PPA Participativo 2024-2027. “Tem havido vários limites nesse processo de escuta, de representatividade, muito em função da própria desarticulação que a gente viveu no último período. Tanto por parte do Estado isso foi ausente, quanto por parte da própria sociedade civil organizada, porque a gente tinha ‘desembalado’ dessa forma de se representar e ser representado que são os conselhos, que é a forma como o Estado apresenta a possibilidade de escuta”, observa Ceres Hadich.
Outros detalhes sobre a metodologia também são percebidos como obstáculos a serem superados na política. É o caso do tempo dedicado aos debates e encaminhamento das propostas da sociedade civil ao governo. “Ações como o PPA são fundamentais para a democracia, para a ampliação da participação civil, mas, infelizmente, elas ainda não têm ocorrido da forma como deveriam ser para proporcionar uma ampla participação”, avalia a gestora de políticas públicas Carla Moura, que atua como técnica do Núcleo de Monitoramento do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE).
A entidade participou do processo deste ano ao marcar presença na plenária ocorrida no estado, quando sugeriu medidas relacionadas ao enfrentamento aos homicídios na adolescência e à agenda do sistema socioeducativo. “Houve grande número de organizações presentes, mas não houve tempo suficiente pra se levantar e avaliar as políticas. A gente sentiu falta disso porque foi dado mais tempo pras falas institucionais, ou seja, dos atores dos governos – federal e local – e um tempo mais restrito pras falas das organizações”.
Outro gargalo visto pelas entidades ouvidas é o formato virtual em parte dos fluxos do PPA, que passou ser adotado a partir deste ano. “A gente entende essa perspectiva de tentar ampliar a participação através das plataformas, mas isso também acaba sendo uma limitação porque muitas pessoas não têm acesso à internet ou têm dificuldade de acessar essas plataformas e entender como elas funcionam, por isso também a plenária presencial deveria ser um espaço maior de escuta. A plenária daqui foi muito mais um momento apenas de rápida apresentação de propostas do que de fato uma escuta”, esquadrinha Carla Moura.
A médica e militante Kota Mulanji, do Fórum de Segurança Alimentar e Nutrição dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, também vê limitações no processo. A entidade se engajou no PPA em diferentes pontos do país, como Rio Grande do Sul, São Paulo e Bahia. Propostas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e outras foram colocadas como prioridade pela base do segmento, que foi mobilizado para votar na plataforma virtual.
“Não gosto de falar que o método do PPA seja especificamente ‘positivo’ ou ‘negativo’, mas é complexo. Por exemplo, [para votar] tinha que entrar na plataforma gov.br, tinha que ter uma senha, atualizar a senha, tinha que ter rede de internet, etc. Em um país que hoje é mais desigual, essa desigualdade acaba aparecendo ali no processo. Tinha que ter tido alguma outra forma de votação”, advoga.
O secretário de Participação Social do governo argumenta que a desvantagem citada pelo fórum é equacionada pelo caráter não exclusivo da participação virtual, ou seja, pela pluralidade das formas de engajamento no PPA, uma vez que o processo todo envolve debates locais prévios à consulta digital em si. “Ela não substitui a forma de participação territorial, por isso fizemos os Fóruns Interconselhos e as plenárias estaduais. A plataforma é um instrumento complementar às formas mais tradicionais de participação”, afirma Simões, argumentando que estas últimas também possuem limitações.
“O caráter presencial também é excludente porque, se você faz uma plenária em um estado enorme, as pessoas que estão na outra ponta não participam. A plataforma surge, então, como opção para dar espaço e voz a um grupo que não pode se deslocar, e isso ajuda a fazer um processo maior de unificação nacional no PPA Participativo”, emenda o secretário.
Kota Mulanji diz ter sentido falta ainda da participação de atores do parlamento no ciclo de discussão do PPA. “No final, é o Legislativo que vai aprovar isso que estamos discutindo e propondo para o país e, se ele se ausenta do debate, fica parecendo que ele não deu contribuição e não fez a disputa política desde agora. Quando a gente levantou essas questões todas, tudo já estava rodando e não deu tempo travar um diálogo mais profundo com o governo. O lado interessante é que isso fica anotado para um próximo PPA.”
Edição: Leandro Melito