Há quatro anos, mulheres de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, pararam para ver a seleção brasileira feminina de futebol disputar a Copa do Mundo, na França. Naquele ano, 2019, um grupo delas fundou o Centenárias, formado por adoradoras do esporte e, em especial, do futebol. A Amazônia Real, à época já preocupada com a invisibilidade midiática do time feminino em comparação com o masculino, aderiu à campanha Jogue Como Uma Garota, criada pela marca-protesto Peita, de Curitiba (PR).
Se o Brasil sempre paralisa todas as atividades para ver os 11 jogadores nos Mundiais, por que isso não acontecia com as 11 jogadoras? Neste ano, o município localizado na região do Alto Rio Negro vai parar de novo, assim como muitos outros locais do resto do País, o que é uma grande notícia.
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São Gabriel da Cachoeira, que faz fronteira com a Colômbia e Venezuela, decretou ponto facultativo para os dias de participação da seleção brasileira feminina na Copa do Mundo. Noventa por cento da população do município é indígena, com 23 etnias. Na estreia da equipe brasileira contra o Panamá, a partir das 8 horas (7 horas em Manaus) nesta segunda-feira (24), as boleiras do município vão repetir a torcida verde-e-amarela de 2019 com o aval de um decreto municipal.
Ednéia Teles, indígena do povo Arapaso e uma das coordenadoras do esporte feminino no município, comemorou a liberação para torcer pela seleção brasileira feminina. Uma das fundadoras do grupo Centenárias, ela comemora que a torcida iniciada quatro anos atrás rendeu frutos. As meninas de São Gabriel da Cachoeira mostraram que o envolvimento com o esporte não era apenas “fogo de palha”, já que elas continuam firmes e fortes.
“Para nós, a Copa do Mundo é uma inspiração. Muitas meninas gostariam de estar jogando uma Copa do Mundo. Então o nosso, Centenárias, é fruto dessa Copa (de 2019) na qual a gente se reuniu e eu fui uma das embaixadoras aqui em São Gabriel da Cachoeira, do Jogue Como Uma Garota”, explica Ednéia.
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O governo federal foi o primeiro a decretar o ponto facultativo nos dias de jogos da seleção brasileira feminina, fato inédito. A medida foi copiada em alguns Estados como Tocantins, Rio Grande do Norte e Pará. Em Manaus, contudo, não haverá ponto facultativo. Já o governo do Amazonas autorizou o início do expediente às 11 horas, após a realização do jogo.
Para Ednéia Teles, a Copa de 2019 foi um marco histórico nesse movimento de engajar as torcedoras, jogadoras, grupos de defesa dos direitos das mulheres e o público em geral a assistir aos jogos da seleção brasileira feminina. “Na época, nos reunimos no bar de uma colega nos dias dos jogos da seleção. Mais de 100 pessoas se reuniram para ver a Copa. Como era de tarde, o horário ajudava. Mas como não havia ponto facultativo, muita gente não conseguiu participar. Ainda assim, muitas faziam de tudo para assistir aos jogos. Algumas marcaram folga e outras até fugiam”, brinca.
E o movimento em favor da torcida pela seleção brasileira promete ser ainda mais forte este ano. “Estamos nos reunindo com as mesmas mulheres aqui do movimento, com as Centenárias. Esse ponto facultativo em São Gabriel é um marco histórico para nós, como movimento de esporte, como mulheres e como funcionárias também”, comemora.
A concentração em São Gabriel da Cachoeira será na casa de dona Teresilha, localizada na rua Brigadeiro Eduardo Gomes (conhecida como Rua do Conde), no bairro Boa Esperança. “Nesta segunda-feira, estaremos aqui reunidas convidando todo o povo São Gabriel. O espaço não é tão grande, mas vai acolher quem chegar. Vamos torcer pelo Brasil contra o Panamá. Vamos enviar a nossa energia positiva”, finaliza.
O Mundial feminino acontece Austrália, com um fuso de dez horas de diferença para o Brasil. As três primeiras partidas da seleção brasileira vão ocorrer no horário matutino no Brasil: às 8 horas (de Brasília) de 24 de julho, contra o Panamá; às 7 horas de 29 de julho contra a França; e às 7 horas de 2 de agosto contra a Jamaica. Os jogos terão transmissão dos canais Globo, SporTV, Globoplay e CazéTV.
O futebol feminino do Brasil
No Brasil, o futebol feminino ainda está longe de ganhar os holofotes, e as conquistas são comemoradas como gols de placa pelos movimentos feministas. Pela primeira vez, um Mundial terá um álbum de figurinhas, que na modalidade masculina vira febre nacional. Mas não haverá mobilizações, empresas e repartições públicas que dispensam funcionários, fan fest para torcedores. No lugar da festa, há preconceito, como foi exibido no dia da abertura do Mundial, transmitido pelo canal Cazé TV, no Youtube. O influenciador precisou desabilitar os comentários da partida entre Nova Zelândia x Noruega, por conta de uma enxurrada de comentários machistas e misóginos.
As poucas vitórias que a seleção feminina teve, nos últimos anos, veio precedida da palavra “obrigação”. Hoje, os clubes que disputam a primeira divisão masculina do Brasileirão só podem fazê-lo se tiverem equipes no feminino. A medida é válida apenas para a divisão de elite, mas será ampliada para as séries B, C e D até 2027, conforme anunciou a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). E falando em divisões, hoje, o Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino já conta com três divisões: A1, A2 e A3.
Se o quadro hoje ainda não é dos melhores, há de se lembrar que já foi bem pior, como lembra a jornalista, editora de esportes e especialista em futebol feminino, Camila Leonel. Mulheres eram proibidas de jogar futebol no Brasil. “A proibição ocorreu a partir de 14 de abril de 1941, durante o governo do Getúlio Vargas. O decreto foi motivado após um cidadão carioca chamado José Fuzeira escrever uma carta ao presidente sugerindo que proibissem as mulheres de jogar futebol”, pontua Camila.
A jornalista conta que Fuzeira defendia que o corpo da mulher “não havia sido feito para jogar futebol”, que “os pés delicados das moças não serviam para chutar bolas”, e que o esporte poderia “comprometer as funções biológicas da mulher”, no que diz respeito à maternidade.
À época, a modalidade estava em expansão, e já havia, inclusive, a ideia de criar liga só de mulheres. “E, neste crescendo, dentro de um ano é provável que em todo o Brasil estejam organizados uns 200 clubes femininos de futebol, ou seja, 200 núcleos destroçadores da saúde de 2.200 futuras mães que, além do mais, ficarão presas de uma mentalidade depressiva e propensa aos exibicionismos rudes e extravagantes”, vociferou Fuzeira. “O presidente (Getúlio Vargas) foi convencido pelos argumentos e decidiu baixar a Lei 3.199, que proibiu as mulheres de jogar e isso durou até 1983”, lembra Camila Leonel.
“A proibição freou um crescimento do futebol de mulheres no Brasil e isso também traz dificuldades como formação de treinadoras, jogadoras”, acrescenta Camila. Outro ponto que a jornalista ressalta é a questão da mentalidade brasileira. “Com essa questão de ‘futebol é algo que vai tirar a feminilidade da mulher’ é coisa pra homem, incrustou o aspecto machista que perdura até hoje de que mulher não serve pra jogar, não sabe jogar, que o jogo é chato.”
Solo fértil
Apesar de todos os pesares, o futebol feminino vingou, e a região Norte se tornou um expoente do crescimento do esporte. O time do Iranduba da Amazônia chegou a colocar mais de 25 mil torcedores na Arena da Amazônia durante um jogo contra o Santos, válido pelo Campeonato Brasileiro da Série A1, em 2017. Foi na Arena da Amazônia, palco da Copa do Mundo de 2014, que a lendária volante Formiga se despediu da seleção brasileira feminina.
O time de Iranduba, apelidado carinhosamente pelos torcedores de Hulk da Amazônia, chegou a ser terceiro lugar na Libertadores da América. Mas, por conta do calote de um de seus patrocinadores, hoje vive em uma situação de penúria.
As esperanças do futebol feminino residem hoje no time 3B Sport Clube da Amazônia, o 3B, que já conquistou os campeonatos amazonenses de 2019 e 2021, e atualmente disputa a Série A2, a segunda divisão do Brasileirão. O 3B tem hoje o melhor Centro de Treinamento de Manaus, local que é usado por grandes equipes do futebol brasileiro quando visitam a capital.
A reportagem da Amazônia Real visitou o centro de treinamento da equipe na sexta-feira (14), para saber como está a expectativa pelo Mundial. Mas as jogadoras estarão com um olho na TV e outro no gramado. Dois dias depois da estreia da seleção brasileira feminina no Mundial, no dia 26, o 3B fará a grande final do Campeonato Amazonense, contra o JC Futebol Clube, de Itacoatiara. Na partida de ida, a equipe de Manaus venceu por 2 a 0. Agora o confronto será no CT do 3B.
Na torcida
Cada uma das atletas do 3B Sport Clube da Amazônia traz consigo uma história de superação e amor ao futebol. A pequena lateral direita Giselinha, de 25 anos, saiu do interior do Pará, na Vila Igarapé Açu, para vencer no mundo do futebol. Ela fez parte da fase dourada do Iranduba da Amazônia e acredita que o trabalho da técnica sueca Pia Sundhage pode trazer bons frutos para a seleção brasileira feminina. “O trabalho dela vem sendo feito há bastante tempo. Você pode acompanhar os resultados. Estou confiante que a nossa seleção possa avançar e surpreender nesta Copa”, opina.
Para a lateral, que pretende assistir a todos jogos, convocando amigos para a torcida, o futebol feminino está crescendo, mas ainda precisa de mais investimentos. A batalha contra o preconceito continua. “Ainda falta quebrar alguns tabus em relação ao preconceito, em relação à mídia para dar mais visibilidade. A cada ano a gente vai conseguindo um espaço maior na sociedade, mas ainda existe muito preconceito de torcedores que vê o futebol feminino muito abaixo do masculino”, diz.
Awanny, de 20 anos, é goleira e nasceu em Barra de Alcântara, interior de Teresina, capital do Piauí. Ela começou a jogar futsal com 12 anos e com 15 foi para o campo. “Mesmo com o fuso eu vou acompanhar essa Copa. Vou assistir porque gosto e é muito importante, muito bonito de ver. Eu já fui convocada na base e sei o quanto é importante conquistar aquela estrela. Isso vai ajudar a impulsionar o futebol feminino”, diz.
No elenco do 3B há também o “sangue amazonense” da atacante Paulinha, 30. Agricultora do Careiro da Várzea, ela deixou de lado as plantações de couve, cebola, pimentão, maxixe para vencer no futebol. Ela bota fé na seleção brasileira feminina. “Vai dar bom para a seleção. Eu estive analisando algumas coisas porque tem bons times, mas no meu ponto de vista a seleção brasileira vai ter um bom desempenho”, aponta.
Paulinha, que começou a vida de jogadora enfrentando os garotos de sua terra natal, também falou de seus sonhos. O maior de todos? Chegar à Série A1. “É meu sonho, mas acho que ainda preciso aprender muito”, pontua.
Quem também sonha alto é a meia-atacante venezuelana Nairelis Rodriguez, de 19 anos. Há dois anos ela chegou ao Brasil com a família. Na Venezuela, ela defendeu as seleções sub-17, sub-20 e a seleção adulta. Mas devido à grave crise humanitária vivida por seu país natal, precisou deixar tudo para trás.
“A situação estava muito ruim. Meu pai trabalhava em garimpo, conseguiu reunir um dinheiro e veio pra cá. Depois vim com a minha mãe e irmã. Foram dois dias de viagem de ônibus. Tivemos que começar do zero vendendo água na rua. É uma coisa que não tenho vergonha de falar, porque foi uma experiência e hoje estou aqui”, revela a jogadora venezuelana. “Meu projeto é seguir jogando profissionalmente, jogar por um Flamengo, Palmeiras. Quero poder mostrar o meu futebol.”