A Venezuela já entrou em clima de disputa eleitoral mesmo um ano antes das próximas eleições, que devem ocorrer em 2024, mas que ainda não possuem data definida. Isso porque nos últimos meses os partidos têm ocupado as ruas com atos políticos, candidatos têm se provocado publicamente e opositores vem atacando o presidente para se apresentar como alternativa ao governo.
O cenário da oposição, no entanto, ainda está fragmentado e distante de alcançar a coesão pretendida. O principal setor da direita está reunido na coalizão Plataforma Unitária e convocou eleições primárias para tentar definir um candidato único que enfrentará o chavismo no próximo pleito.
Entre os 14 aspirantes à vaga de representante da oposição estão velhos nomes da política venezuelana que já se envolveram em diversas tentativas de enfrentar o governo, seja pela via eleitoral ou até mesmo pela via insurrecional. A favorita nas pesquisas, até o momento, é a ex-deputada Maria Corina Machado, ultraliberal de extrema direita que chegou a defender intervenções militares estrangeiras contra a Venezuela.
Além disso, Henrique Capriles, ex-governador do estado Miranda e ex-candidato à Presidência por duas vezes, também tenta se afirmar como líder opositor. Apesar de não aparecer bem posicionado nas pesquisas, ele aposta em sua experiência como candidato para convencer os apoiadores, já que perdeu para Nicolás Maduro, em 2013, por estreita margem de votos.
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Outro nome que aparece com alguma relevância no processo é o ex-deputado Freddy Superlano, que chegou a derrotar o candidato chavista nas eleições para o governo do Estado de Barinas em 2021, mas foi inabilitado pela Justiça de assumir o cargo. No passado, Superlano ocupou cargos estratégicos no chamado "governo interino" e hoje é líder do Voluntad Popular, o mesmo partido do ex-deputado que se autoproclamou presidente Juan Guaidó.
Esses três candidatos possuem algo em comum: eles estão inabilitados pela Controladoria-Geral da República de ocupar cargos públicos. Maria Corina possui uma proibição por 15 anos pois, segundo as autoridades, ela teria ocultado bens em sua declaração de patrimônio no período que era deputada. Capriles também possui uma inabilitação de 15 anos por diversos supostos delitos administrativos que ele teria cometido durante seu mandato como governador do estado de Miranda (2008-2017).
Correndo por fora e sem anunciar ainda se será ou não candidato, o atual governador de estado de Zulia, Manuel Rosales, também pode ser outro ator importante na disputa. Histórico opositor ao chavismo, Rosales foi candidato presidencial em 2006 e perdeu para o ex-mandatário Hugo Chávez. Em 2009, foi acusado de corrupção e fugiu do país, retornando em 2015, quando ficou preso por dois meses. À época, ele chegou a ser inabilitado de ocupar cargos públicos por sete anos, mas em 2017 o Tribunal Superior de Justiça (TSJ) acatou um recurso e anulou a decisão.
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A possibilidade de concorrer à Presidência coloca Rosales como um possível candidato de unidade, caso os outros setores não consigam negociar o fim das inabilitações. Entretanto, o governador de Zulia e seu partido, Un Nuevo Tiempo (UNT), já anunciaram e retiraram sua participação nas primárias duas vezes desde o início do processo e a presença de Rosales segue um incógnita.
Sanções, calendário e diálogos
As inabilitações de opositores devem se tornar mais um elemento de negociação nas mesas de diálogo entre governo e oposição. As conversas, que vinham ocorrendo no México e estão paralisadas desde 2021, serão decisivas para definir não só as datas da próxima eleição presidencial, mas também as condições eleitorais para governo e oposição.
Com seus principais candidatos inabilitados, a direita pede a criação de um calendário eleitoral e de garantias jurídicas para que todos possam concorrer. Já o governo, desgastado pela crise econômica agravada pelo bloqueio dos EUA, exige a suspensão das sanções para que o país possa realizar eleições sem interferências externas.
"O governo diz que também precisa de condições eleitorais e quais são elas? Chegar nas eleições sem sanções", explica Indira Urbaneja, analista política, diretora da ONG Reunificados e especialista em campanhas eleitorais. Opositora ao chavismo, ela explica ao Brasil de Fato que negociar o fim do bloqueio antes do pleito presidencial é indispensável para que o governo possa retomar projetos e políticas públicas que recuperem a economia do país.
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"Então o governo diz: 'como vou às eleições nesse cenário se não tenho como garantir ao meu eleitorado as condições sociais e econômicas para que as pessoas queiram votar em mim, para que as pessoas se interessem pela minha oferta eleitoral'?", explica.
Urbaneja, no entanto, também afirma que a existência de sanções acabou prejudicando os próprios candidatos da oposição que pediram o bloqueio, já que os eleitores passaram a identificar a relação entre crise econômica e as medidas restritivas impostas pelos EUA.
"Há um amplo setor da população venezuelana que não se identifica nem com a oposição, nem com o chavismo, e isso não quer dizer que não está disposto a votar por esses setores. Na verdade esses eleitores estão entristecidos, decepcionados, e eles também culpam a oposição. Então esse jogo terminou muito mal para a oposição porque eles acreditaram que a população não ia perceber que eles também são responsáveis pela situação socioeconômica que estamos vivendo", afirma.
Na última semana, os diálogos entre governo e oposição ganharam um novo incentivo. Às margens da cúpula da Celac-UE, a vice-presidente da Venezuela, Delcy Rodríguez, se reuniu com o chefe da delegação opositora nos diálogos, Gerardo Blyde. O encontro também contou com a participação dos presidentes da França (Emmanuel Macron), Colômbia (Gustavo Petro), Argentina (Alberto Fernández) e Brasil (Lula).
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Após a reunião, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, celebrou o encontro e disse que "houve um consenso" para eliminar as sanções contra a Venezuela. Para o pesquisador do Instituto Samuel Robinson de política externa venezuelana Gustavo Borges, levantar o bloqueio dos EUA é necessário para equilibrar a disputa eleitoral do próximo ano.
"Todo esse esquema de agressão e de asfixia faz com que seja impossível um processo em condições de igualdade porque o setor opositor apoia e promove a campanha de sanções e, portanto, é parte dela. O que se está tentando negociar no México é o fim da política de sanções e acordos conjuntos para regularizar a situação do país, inclusive depois das eleições", diz ao Brasil de Fato.
Borges ainda considera que "o melhor cenário seria um no qual não houvesse nenhum inabilitado, mas esse processo está viciado pela pressão, pela agressão, pela ameaça permanente e pela imposição de medidas hostis de potências estrangeiras contra o país".
Quem contra quem?
Diante da diversidade de temas pendentes nas negociações, a possibilidade de visualizar os candidatos para a próxima eleição fica ainda mais distante. Pelo lado opositor, caso as pesquisas se confirmem e caso ocorram as primárias, Maria Corina Machado seria a favorita, ainda que esteja inabilitada.
A ex-deputada, no entanto, diz não reconhecer os processos de diálogo entre governo e oposição e vem elevando cada vez mais o tom de sua campanha eleitoral. Um de seus slogans diz que ela irá "até o final" para, em suas palavras, "derrubar o regime" de Maduro e "varrer o socialismo" da Venezuela.
Por outro lado, ela diz que sua candidatura se baseia em "ordem, dinheiro e família" e traz propostas ultraliberais para a economia como a privatização de quase todos os bens e serviços públicos, inclusive a indústria petroleira que é a principal fonte de renda do Estado venezuelano.
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Para Gustavo Borges, existe uma falsa percepção de crescimento de popularidade de Machado já que ela, na verdade, estaria conquistando antigos apoiadores de Juan Guaidó. "A narrativa de que Maria Corina está mobilizando novos eleitores, novos apoiadores, que está crescendo exponencialmente é falsa. Ela simplesmente ocupou um vácuo deixado por Juan Guaidó, então esses apoiadores estão trocando a camiseta do partido e por isso passam a enxergar nela a possibilidade de continuar com esse projeto radical de direita", diz.
A analista Indira Urbaneja vai além e afirma que Maria Corina não tem intenções de vencer as eleições. "Ela quer ser chefe da oposição para dizer que aqui não há condições eleitorais, que 'em ditadura não se vota', então ela quer dizer: 'como em ditadura não se vota, eu preciso que a comunidade internacional me apoie, porque eu sim tenho a valentia que Guaidó não teve de ativar o TIAR [Tratado Interamericano de Assistência Recíproca], ou de ativar o R2P, que é a convenção Responsabilidade de Proteger, e o compromisso e a valentia de aceitar que os marines norte-americanos realizem uma intervenção na Venezuela', esse é o plano dela", diz.
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Já pelo lado do governo, o mais provável e esperado pelos analistas é que Maduro dispute a reeleição e tente o 3º mandato consecutivo. Apesar de ainda enfrentar um cenário econômico complexo com uma das inflações mais altas da região, o chavista aposta no levantamento de sanções para ampliar a renda petroleira e investir na recuperação do país.
Urbaneja, no entanto, aponta para a possibilidade de um fracasso na estratégia de Maduro e afirma que se o chavismo perceber que o atual presidente pode não ser capaz de vencer as eleições, outro candidato deve ser estudado.
"Até hoje, Maduro é reconhecido por sua base como o homem que salvou o país dos ataques dos EUA, de 59 países que reconheceram o interinato e sancionaram a Venezuela. Maduro ficou aí, resistindo e isso tem um valor para o eleitor, mas a política também é pragmática e se o chavismo notar que Maduro não pode garantir a vitória, eu estou convencida de que poderiam encontrar outro candidato. Não é algo que está dado agora, não vejo assim, mas também não podemos descartar", diz.
Edição: Thales Schmidt