Uma nova fase nas relações entre o governo e o empresariado nacional começa a ser estruturada na Venezuela. Após anos de períodos turbulentos e conflitos de interesse, nos quais o Estado acusava o capital privado de apoiar golpes e os empresários contestavam a política de expropriação estatal, agora ambos os setores unificam o discurso em torno de um objetivo comum: o fim das sanções.
Em entrevista à emissora de rádio Circuito Éxitos na última terça-feira (25), o novo presidente da Fedecamaras, a maior entidade patronal do país, disse que a instituição se somaria aos pedidos pelo fim do bloqueio e classificou como "loucos" os venezuelanos que seguem apoiando as medidas coercitivas impostas pelos EUA e países aliados.
"Nenhum país quer estar sancionado, o venezuelano que diz querer sanções é um louco. Evidentemente, nós pedimos que as sanções sejam eliminadas, elas não fizeram outra coisa senão empobrecer o país", disse Adán Celis, empresário do ramo industrial de embalagens que foi eleito presidente da associação privada na última sexta-feira (21).
O presidente, Nicolás Maduro, elogiou as declarações de Celis, as classificando como "uma voz de sensatez" e disse esperar se reunir com o empresário "para conversar sobre os planos para o desenvolvimento econômico do país".
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"Eu digo a todos os setores sensatos do país, para além de bandeiras políticas ou ideológicas, para que unamos esforços para exigir o fim de todas as sanções contra a Venezuela, nós temos direito a uma vida livre de sanções. Se existe um consenso hoje na Venezuela é de rechaço e repúdio às sanções dos EUA, porque são contra todo o país. Nunca havíamos alcançado um consenso tão grande e poderoso", disse Maduro.
Já nesta terça-feira (01), o novo presidente da Fedecamaras se reuniu com a Comissão de Diálogo, Paz e Reconciliação Nacional da Assembleia Nacional venezuelana, que foi representada pelo deputado da oposição Luis Eduardo Martínez (Acción Democratica).
Durante a reunião, Adán Celis entregou ao deputado uma carta dirigida ao presidente do Parlamento, o deputado chavista Jorge Rodríguez, na qual afirma que o setor privado está disposto a manter "relações de respeito" com todos os Poderes do Estado venezuelano.
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O deputado Luis Eduardo Martínez, por sua vez, disse que entregaria o documento a Rodríguez e advogaria pela realização de uma reunião entre o presidente do Parlamento e os representantes da Fedecamaras para avançar no "processo de construção de uma economia sólida que permita o bem-estar generalizado dos venezuelanos".
Crise e bloqueio também atingem setor privado
Posições contrárias às sanções por parte da Fedecamaras não são uma novidade, já que os dois últimos presidentes da entidade chegaram a classificar como importante a revisão de algumas medidas coercitivas impostas contra a economia venezuelana.
As recentes declarações de Adán Celis, no entanto, foram as mais contundentes vindas do setor privado e chegam em um momento de definição política no país, quando os principais partidos já começaram a trabalhar nas ruas e nos bastidores em busca de apoio para as eleições presidenciais que devem ocorrer no próximo ano.
Além disso, o momento econômico venezuelano não é bom e o setor privado sente os impactos. Segundo dados do Observatório Venezuelano de Finanças (OVF), entidade ligada à oposição, a Venezuela passou por contrações econômicas nos dois primeiros trimestres de 2023, o que tecnicamente poderia configurar o retorno da recessão ao país. O Banco Central ainda não publicou as cifras oficiais de crescimento.
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A crise nos salários, a inflação em alta e a dificuldade em obter financiamentos bancários seguem impedindo uma ampliação na demanda consumidora o que também limita a capacidade de investimento industrial privado nacional. Todo esse cenário de crise é agravado pela continuidade da política de sanções dos EUA contra Caracas que, além de praticamente impedir o comércio petroleiro do país e a geração de divisas ao Estado, afeta direta e indiretamente o empresariado nacional.
De acordo com dados do Observatório Venezuelano Antibloqueio, órgão estatal de pesquisa, 17% das mais de 900 sanções impostas contra o país foram dirigidas diretamente ao setor privado. Além disso, a crise que se abateu sobre as reservas do Estado obrigou o governo a abandonar diversos contratos com empresas privadas.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o sociólogo Franco Vielma, ex-analista da estatal petroleira da Venezuela PDVSA, explica que além de sofrerem com bloqueios diretos impostos por Washington e com a perda de contratos estatais, o setor privado foi afetado também pelo fenômeno do "super cumprimento" de sanções.
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"Há empresas privadas de outros países que não se relacionam com empresas privadas da Venezuela por medo de serem alvo de alguma represália por parte do Departamento do Tesouro. Esse 'super cumprimento' é uma situação que não tem formalidade, mas que existe nas estruturas de negócios e atividades comerciais de muitas empresas privadas no estrangeiro com empresas privadas na Venezuela", explica Vielma.
O pesquisador ainda afirma que existem divisões dentro do setor privado venezuelano e que a posição de Adán Celis é importante pois indicaria a visão de todo um setor industrial do país.
"Diferentemente de câmaras de comércio importadoras, os industriais têm uma posição distinta a respeito do bloqueio. Eles dependem muito de matérias-primas, de maquinaria, de instalação de capital fixo, de crédito e muitas dessas condições foram afetadas no país por conta do bloqueio", afirma.
Motivações políticas ou econômicas?
Além de escapar dos impactos econômicos das sanções, o custo político de seguir apoiando essas medidas também deve ter influenciado na decisão dos empresários. O esgotamento da chamada estratégia de "pressão máxima", elaborada pelo ex-presidente Donald Trump com o objetivo de retirar Maduro do poder e apoiar o "governo interino" de Juan Guaidó, deixou sequelas no campo político opositor e diversos agentes agora buscam se afastar dessa imagem.
Segundo uma pesquisa de opinião realizada e publicada em junho pelo instituto venezuelano Hinterlaces, 83% dos entrevistados são contra a aplicação de sanções à Venezuela.
Ao Brasil de Fato, o economista liberal José Manuel Puente, professor do Instituto de Estudos Superiores de Administração (IESA) da Venezuela e do Instituto de Empresa (IE) da Espanha, afirma que as declarações de Adán Celis indicam que houve uma reflexão por parte do setor privado após o fracasso da estratégia opositora.
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"É nesse contexto que Celis levanta a mão e diz: 'vamos pensar bem no que estamos fazendo, não sigamos piorando a situação dos mais humildes com as consequências de algumas sanções que não têm sentido'. Então, depois dessa reflexão que vem após anos sem conseguir uma transição política e piorando a situação dos venezuelanos, ele tomou a atitude, me parece de maneira valente, de dizer publicamente que as sanções devem ser revistas", diz.
Apesar disso, ainda existem atores do campo opositor que seguem apoiando a política de sanções contra a Venezuela. A principal deles é a ex-deputada ultraliberal Maria Corina Machado, que aparece como favorita para se tornar a candidata da oposição nas eleições presidenciais do ano que vem. Com o slogan de campanha que diz "até o final", a opositora aposta no discurso confrontacional para prometer "varrer o socialismo" da Venezuela e "derrubar o regime" de Maduro.
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José Manuel Puente acredita que há uma diferença de tom entre o discurso dos empresários da Fedecamaras e o de Maria Corina, já que a ex-deputada segue apoiando o bloqueio. "Se olharmos para candidatos como Henrique Capriles e alguns outros, eles têm claro que algumas sanções devem ser eliminadas. A postura de Maria Corina é a mais radical, não é a melhor na minha opinião, então a proposta de Adán Celis estaria muito próxima a outros candidatos como Henrique Capriles", opina o economista.
Ex-governador do estado Miranda e candidato presidencial por duas vezes, Capriles volta a se postular como possível catalisador do campo da direita. Apesar de opositor e apoiador do extinto "governo interino", ele vem rivalizando com algumas posturas de Machado como a privatização massiva de bens públicos do Estado - incluindo a indústria petroleira PDVSA - e a redução de gastos públicos com programas sociais, algo extremamente enraizado no país pelos governos chavistas.
Para Franco Vielma, o descompasso entre a Fedecamaras e Maria Corina Machado é claro, uma vez que a pré-candidata ultraliberal estaria mais alinhada com os interesses de empresas estrangeiras.
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"Maria Corina Machado está fazendo as ofertas mais assombrosas para tentar atrair esse dinheiro internacional para sua campanha e ela está oferecendo a privatização de bens do Estado venezuelano como incentivo. Claro que há alguns integrantes da cúpula empresarial que estariam interessados em participar desse processo de privatização, mas alguns deles sabem que o país pode acabar prejudicado porque as empresas estrangeiras vão se posicionar melhor. Então, em um cenário no qual o chavismo caia, quem vai sair favorecido serão as grandes empresas transnacionais e não precisamente as empresas venezuelanas", argumenta.
Empresários e chavismo: relacionamento impossível?
Os sinais de reaproximação entre setor privado e governo e o descompasso entre os empresários e a principal candidata opositora levantaria a hipótese de um possível apoio da Fedecamaras ao candidato do governo, mas os analistas consultados pelo Brasil de Fato são céticos em relação à ideia.
Isso porque, apesar de se somar aos apelos pelo fim das sanções, o presidente da Fedecamaras deixou claro que o setor segue pedindo ao governo "mudanças necessárias no contexto jurídico e econômico" que, na verdade, significam concessões do governo ao empresariado.
Nos últimos anos, o presidente Maduro, principalmente em seu segundo mandato (2019-2024), adotou algumas medidas de flexibilização que favoreceram o setor privado, como o fim do controle cambial, relaxamento no controle de preços e uma dolarização informal que conseguiu reativar relativamente o comércio e viabilizar o consumo diante da alta desvalorização da moeda nacional.
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Para Puente, no entanto, nem os recentes giros econômicos liberais adotados pelo governo permitiriam uma vinculação política entre chavismo e Fedecamaras. "Essa flexibilização tem limites, que são os limites ideológicos impostos por setores dentro do chavismo que se opõem a essas medidas", diz.
Além de aproximações econômicas, alguns sinais políticos também ocorreram nos últimos anos. Em 2021, a vice-presidente, Delcy Rodríguez, participou da Assembleia Geral da Fedecamaras e, no início de julho, ela esteve presente no Congresso Anual da Conindustria (Confederação Nacional da Indústria), ocasião na qual pediu que os empresários não misturem a "economia com a política".
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Vielma também diz que um apoio explícito do setor privado ao projeto chavista "definitivamente não acontecerá", pois os pontos de congruência entre ambos são "essencialmente conjunturais".
"Diante de uma paralisação parcial do Estado, o governo precisa que atividade privada flua para dinamizar a atividade econômica dentro dos limites que o bloqueio impõe, e o setor privado precisa de alguns incentivos que possam colaborar em sua atividade", afirma.
Edição: Rodrigo Durão Coelho