Eu penso que a sociedade do céu, Ègbé Orun, ficou talvez esquecida ou se perdeu no tempo
A colonialidade no Brasil sugere a importância de religações após a diáspora de povos do continente africano. Entre memórias recortadas em encruzilhadas do oceano Atlântico e novos saberes e fazeres trançados no continente americano, muitas histórias podem ser vistas e revistas.
Com essa ideia, o sacerdote, professor e escritor Oluwo Adèlóná Isólá pesquisa um dos conhecimentos ancestrais intercalados em terras brasileiras desde o período colonial, o Ègbé Orun, ou a "sociedade do céu". Na crença, a configuração humana no plano terrestre - o Ègbe Aiyé - esta diretamente relacionada a uma sociedade de amigos e familiares espirituais em um plano celestial.
Dentro da diversidade de culturas do continente africano, o Ègbé Orun faz parte do Ifá, no sistema de crenças do povo Iorubá. Apesar da presença em terras brasileiras desde do período colonial, Oluwo Adèlóná Isólá aponta apagamentos conceituais sobre o tema.
"Eu penso que a sociedade do céu, Ègbé Orun, ficou talvez esquecida ou se perdeu no tempo. Ou as pessoas que sabiam dessa tecnologia ancestral morreram e não transmitiram nenhum conhecimento", defende.
A partir de pactos, o Ègbé Orun liga as pessoas na terra e sua respectiva sociedade de amigos e familiares no plano espiritual, sendo importante seu conhecimento para a busca de uma perspectiva de Bem Viver.
Apesar dos impactos nas memórias coletivas, Oluwo Adèlóná Isólá afirma que o culto a Ègbé Orun está presente no Brasil há mais 200 anos, com os cultos aos orixás. Porém, de acordo com ele, foi apenas na segunda metade do século passado que a conceituação sobre o tema ganhou força novamente em terras brasileiras.
"Desde os anos 1960, quando os africanos passaram a se relacionar com o Brasil através do comércio de obi e outras especiarias, temos uma retomada e a entrada de novos cultos de origem africana, Iorubá, especificamente no Brasil, e um desses cultos é Ègbé Orun", afirma.
Confira também: Priscila Novaes: "Cozinhando no candomblé recuperei minha ancestralidade"
Ègbé nas redes
Entre séculos de novas relações e décadas de conceituações, a procura sobre o tema Ègbé Orun cresceu nos últimos anos nas redes sociais. De acordo com Oluwo Adèlóná Isólá, há informações que nem sempre são precisas ou confiáveis sobre o assunto na internet.
Cultuando Égbé Orun, Iyanifa Ifakemi vive em Salvador (BA) e defende o cuidado na busca por referências confiáveis sobre o assunto. Ela lembra que o Ifá está presente em diferentes lugares, mas em cenário difuso pelo planeta, o que exige atenção na busca por conhecimento e prática.
"Você tem que buscar alguém que tem um embasamento, um conhecimento teórico e prático de Ifá. Porque todo mundo estuda e conhece Ifá. Ifá está em Cuba, no Brasil, na Nigéria, está em todo lugar. Mas você precisa encontrar o Ifá que vai dar conhecimento", pontua.
:: Brasil retoma diplomacia com a África, exalta contribuições e estuda novos intercâmbios ::
Pesquisa entre linguagens
Da periferia de Senador Canedo (GO), em Goiás, Oluwo Adèlóná Isólá conheceu o culto a Ègbé Orun na Nigéria, em 2014. Religando ancestralidades, ele assumiu a tarefa de pesquisar sobre o tema e construir referências diante das muitas informações presentes tanto nas redes, quanto nos terreiros.
Do trabalho do sacerdote, surgiu a publicação do livro Ègbé Orun: nossos amigos e familiares espirituais. Mas o processo não foi simples. As palavras que foram escritas atravessaram uma complexidade de saberes e fazeres guardados pela tradição oral. De acordo com o autor, a publicação é útil para os debates atuais, atendendo uma perspectiva didática sobre o assunto. Porém, de acordo com ele, o livro é incapaz de absorver toda a riqueza de conhecimentos guardados através das palavras faladas sobre Ègbé Orun.
"A tradição de Ifá, orixá, Ègbé Orun é oral. Todo o seu conhecimento foi passado e tem sido passado de forma oral. O livro não chega nem ser nem um resumo da grandeza que é Ègbé Orun. O livro é só um introito, uma forma de possibilitar às pessoas a se encontrar com esse culto no nosso país", define.
Conceito e encruzilhadas
No culto a Ègbé Orun, cada pessoa no plano terrestre possui um duplo celestial, como uma espécie de avatar no plano espiritual. Desta forma, os pactos entre as duas dimensões são determinantes para a busca um equilíbrio, que pode ser visto de forma transcultural.
"No céu ficou um duplo muito parecido conosco e a gente conecta com esse duplo como uma forma de ter equilíbrio na vida, de ter paz, saúde, de ser próspero. Sobretudo quando as coisas estão dando errado, a pessoa percebe que ela está desintegrada, que ela está desconectada. O que é o caminho espiritual senão você se conectar com essa força maior que se entende que está em outro lugar, em outro plano, que a gente chama de céu?", questiona.
Consciente ou não do conceito, para Oluwo Adèlóná Isólá, o Brasil manteve relações que alimentaram o culto de Ègbé Orun em um trânsito permanente entre outras crenças.
"O Brasil está impregnado de reminiscências, de possibilidades que demonstram que esse culto já esteve por aqui, e já foi praticado na nossa terra. E que esse culto de alguma forma foi sendo recriado através da tradição dos erês da umbanda, erês do candomblé, tambor de mina ou do culto de São Cosme e Damião", defende.
Um exemplo dessas encruzilhadas de cultos está na organização do Quilombo Casa, localizado na comunidade de Amaro Branco, em Olinda, Pernambuco. Elaine Una, co-fundadora do grupo, destaca a importância do trabalho de Oluwo Adèlóná Isólá.
Ela afirma que o Quilombo Casa foi fundado por jovens que pretendem afirmar suas raízes ancestrais entre saberes e fazeres. Por isso, conectam a ciência do Ifá com a Jurema Sagrada, de origem indígena, tendo o Bem Viver como uma liga transcultural.
"Com esse desejo latente, alguns anos atrás, a gente conhece o Baba Oluwo Adèlóná Isólá, da família Awolola, e vê, percebe, sente que dentro da vida dele, da prática e da sua expansão com o culto a Ifá, ele consegue compreender a nossa Terra Pernambuco, a partir da ciência da Terra, das folhas, que é a Jurema. E aí, a gente pensa: precisamos fazer essa confluência. A gente precisa fazer essa confluência acontecer", explica.
Publicação
Dividido em 19 capítulos, a publicação vai de conceituações de raízes ancestrais, como a Criação da História na Gênese Iorubá, a questões cotidianas, como os conflitos nas relações familiares.
Com a participação do Quilombo Casa, o livro Ègbé Orun: nossos amigos e familiares espirituais foi lançado no Recife e está disponível para compras pela internet.
Edição: Rodrigo Gomes