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Desafio é 'enegrecer o audiovisual pernambucano', diz Bruna Leite

Produtora e realizadora, Bruna faz parte do Mulheres no Audiovisual PE e do Negritude no Audiovisual em Pernambuco

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Bruna Leite é produtora de elenco e realizadora audiovisual - Arquivo pessoal

Você já ouviu falar em Adélia Sampaio? Ela foi a primeira mulher negra a dirigir um filme no Brasil, em 1984, chamado "Amor Maldito". A produção contava a história de Fernanda e Sueli, duas mulheres que se apaixonam e passam a morar juntas. Adélia é um marco e uma referências para outras mulheres negras.

Mas, ainda hoje, boa parte das mulheres que estão nas as etapas do processo de montagem de uma peça audiovisual sofrem com a falta de visibilidade, sobretudo as mulheres negras. 

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Quem fala dos desafios para inserir as mulheres negras na cadeia de produção do audiovisual é Bruna Leite, realizadora, produtora de elenco, integrante do Mulheres no Audiovisual Pernambuco e Negritude no Audiovisual em Pernambuco (Mape). Para ela, o argumento do racismo estrutural para justificar a ausência das mulheres negras neste espaço "parece uma desculpa para tudo que tá acontecendo e o que é a causa termina sendo uma resposta de conforto", denuncia.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato Pernambuco: Bruna, como você iniciou a tua atuação na área do audiovisual?

Bruna Leite: Eu sempre trabalhei com cultura, me formei em comunicação social e nunca atuei no jornalismo de fato. Sempre trabalhei com assessoria de cultura, com música, mas nunca tinha entrado no mercado do audiovisual. Após viajar com o MST por todo o estado todo de Pernambuco, através da Marcha Mundial das Mulheres fazendo cobertura de foto, de vídeo, eu vi como o MST chegava nos assentamentos através dos cine clubes, trazendo o vídeo como forma de promover o debate. Percebi como aquilo era transformador na vida daqueles assentados e das assentadas. Então eu voltei para Recife, isso foi em 2016, com essa missão na minha cabeça.

Eu disse "vou mudar de área e eu vou furar essa bolha", porque é realmente furar a bolha no audiovisual. A gente sabe que o audiovisual, o cinema principalmente, é uma arte muito elitista ainda, principalmente aqui em Recife, muito provinciana, de famílias "de casta" digamos assim. Então eu voltei determinada com essa missão e cheguei em Recife pedindo trabalho a todo mundo. Eu não sabia fazer nada, eu não tinha formação em audiovisual nenhuma e entrei na área que tem menos "glamour", digamos assim, que é a assistente de produção de figuração. Aí eu comecei a olhar para essa função com muita responsabilidade, porque muitas pessoas, principalmente que trabalham com cinema, acham que o glamour se dá no cinema em outros departamentos porque demandam mais dinheiro, como é fotografia, como o próprio elenco, mas a figuração é um departamento que as pessoas não olham com tanto carinho. 

Então eu comecei a trabalhar com cinema porque eu percebi através dos movimentos sociais, principalmente o MST, como aquilo transformava a realidade e aí eu voltei com essa função e hoje eu atuo na área e assino como produtora de elenco vários longas e curtas aqui, como também faço assistência de direção. Também sou realizadora, sou roteirista, sou diretora, tenho cinco curtas e agora estou fazendo o primeiro projeto de longa. 

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Você faz parte do Mulheres no Audiovisual Pernambuco. Qual a importância de existir essa organização de mulheres aqui no estado?

O Mape surgiu dessa necessidade de propor uma nova comunicação, sobretudo pelas mulheres, para as mulheres, com olhar das mulheres e também não só para as mulheres, mas para mostrar para a sociedade como um todo que tem que se tratar com responsabilidade a comunicação.

Eu me inseri no Mape como forma de militância, mas também de me inserir no mercado. Estou no movimento atuando até hoje e a gente vem construindo ações de não só visibilidade, mas de fortalecimento dessas redes de mulheres, de afeto. E eu percebo com a minha experiência no mercado como é fundamental a gente ter um Mape porque é muito diferente. Desde que eu comecei a trabalhar eram pouquíssimas mulheres que a gente chama de "cabeças de departamento", que são as chefes de departamento. E aí quando eu começo a trabalhar que o Mape começa a surgir, porque a gente começa a pautar eu não sei se é por consciência, mas eu acho que é muito mais por medo de ser taxado de machista, que as produtoras e os produtores e os diretores começaram a inserir mais mulheres hoje em dia.

Eu tenho total consciência que eu trabalho com muito mais mulheres do que homens dentro dos sets de filmagem e isso é fruto de um trabalho de militância que vem acontecendo nas ruas, através do movimento de mulheres, do Mape, a gente estabelece diálogos com os movimentos sociais, com movimentos no campo e da cidade para também trazer essa perspectiva política para o movimento. Então a gente vem promovendo ações, formações, criamos um site onde tem lá só você clicar 'diretoras' vai aparecer um monte, o currículo das mulheres, os filmes, então é uma forma também não só de visibilidade, mas inserir essas mulheres no mercado de trabalho, porque o que a gente tá falando é das pessoas poderem sobreviver do seu trabalho. Essas mulheres trabalham e elas querem ser remuneradas para isso.

Então, o movimento para além de dar visibilidade, acolhe essas mulheres porque é muito diferente, por exemplo, quando eu estou no set de filmagem as pessoas olham assim "o sindicato está aqui" [risos], as mulheres do audiovisual estão aqui. E aí percebo esse avanço mas há uma luta ainda constante, que é sobre a questão de raça, em muitos momentos, eu sou a única mulher negra que está ocupando, principalmente, os cargos criativos e são esses departamentos de direção, que é o departamento que eu atuo, tem muitas mulheres, mas em sua maioria são mulheres brancas e aí a minha luta agora maior é pela inserção de pessoas pretas, sobretudo mulheres negras no audiovisual.

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Além do movimento de mulheres no audiovisual, você também atua no coletivo Negritude no Audiovisual em Pernambuco. Como você, enquanto produtora, percebe essa relação de raça e gênero nas peças audiovisuais?

O Negritude surge muito nesse contexto da gente se aquilombar, porque como toda a história da luta do povo negro, a gente percebe que a gente só avança quando estamos juntos. O movimento surge muito nesse contexto, mas eu percebo que ainda é uma luta muito grande, porque o racismo estrutural muitas vezes parece uma desculpa para tudo que tá acontecendo e o que é a causa termina sendo uma resposta de conforto para branquitude.

É muito difícil ainda eu estar na minha equipe, por exemplo e perceber quantas pessoas negras tem ao meu lado. Eu agora estou trabalhando em uma produção em que a única pessoa negra além de mim é assistente que eu fiz questão de escolher e eu escolhi uma mulher negra ,obviamente. Tem pessoas negras, mas são homens em cargos de força, de carregar coisa, de organizar espaço de limpeza. Cargos criativos, de técnica, de criação, do tipo de linguagem, de discutir criativamente as situações, ainda há uma luta extensa muito grande para a gente enfrentar, principalmente aqui em Recife a equipe é majoritariamente branca ainda e ainda com mulheres brancas.

E aí entra aquele velho debate, né? As mulheres estão ocupando? Qual tipo de mulheres? São todas? Eu acho que o feminismo vem avançando e é muito necessário, mas ele também precisa emagrecer e isso também é uma luta que eu travo dentro do Mape. A gente sempre vem tentando pautar como a gente pode trazer uma representatividade maior, mas ainda falta muita articulação ainda para a gente de fato enegrecer o audiovisual pernambucano.

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Bruna, você acredita que leis como a Paulo Gustavo e Aldir Blanc podem contribuir para que mais mulheres, sobretudo negras, consigam bancar seus projetos e alcançar mais visibilidade?

Com certeza. Isso é fundamental, principalmente porque a branquitude não quer perder o privilégio dela, então se isso não vier através de lei, de política pública, a inserção dessas pessoas não acontecerá. Pra mim isso é uma realidade bem posta. E aí isso se reflete nos números. Quando a gente vê, por exemplo, o Funcultura antes de ter as cotas, que foram muito questionadas, e após ter as cotas a gente já vê uma diversidade, vê mulheres ocupando, eu sou um exemplo porque só consegui realizar as minhas coisas por conta das cotas.

Eu acho que é o momento das pessoas poderem conseguir fazer é através dessas políticas, então é fundamental que existam cotas, mas que exista também dentro desses editais e dessas estruturas uma comunicação que seja acessível, porque não adianta só colocar a cota, é um debate que a gente precisa aprofundar dentro da lei e do dos editais. É preciso ter uma reestruturação de como se dá essa comunicação textual dos editais, das exigências, do uso criativo, da quantidade de caracteres, do que se pede de material, porque muitas vezes é mais fácil mandar um vídeo para uma pessoa que não tem um costume de escrever, porque só tem um celular ali na mão para poder fazer, do que escrever um texto.

Então acho que existem coisas aí que precisam ser ajustadas, mas eu acho sim que é o caminho para poder se inserir no mercado, para a gente existir no mercado e receber, porque a minha maior preocupação nisso é para onde o dinheiro vai. Quem é que tá pegando no montante de dinheiro? São as mesmas pessoas de sempre, então a gente precisa pegar no dinheiro e isso é sobrevivência para as pessoas.

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Quais desafios para as mulheres negras que trabalham no audiovisual?

São muitos... eu me sinto bem solitária dentro do meu trabalho e às vezes eu me sinto muito num não-lugar porque eu ocupo um lugar onde a maioria das minhas não ocupa. E do mesmo modo quando eu volto para as minhas é como se eu não fosse daquele lugar. Então eu vivo nesse nesse meio do caminho, sempre aquele velho ditado "botar a mão para puxar uma, uma leva a outra", então eu acho que o desafio é a gente conseguir entrar, furar a bolha sim, ainda não é uma questão dada para nós mulheres negras. 

Para as mulheres existe esse lugar, elas estão conquistando, mas para nós mulheres negras, mulheres indígenas é uma luta ainda existir, permanecer, sobreviver, sobretudo do audiovisual. Ter como profissão o audiovisual, se sustentar, para as mulheres negras ainda é uma situação muito distante. E faço um apelo para as mulheres negras que estão no audiovisual: sempre puxe a outra, sempre puxe uma outra mana negra, tenha um olhar generoso sobre elas e chame elas para trabalhar com vocês.

Tenham coragem de estar nesses lugares, eu falo para todas as minhas amigas e sempre pensar em projetos que a gente possa escolher mais mulheres negras. Eu, por exemplo, aprovei um projeto de longa-metragem, onde eu pego a minha história de vida e transforma em uma ficção, que se chama "Mamãe Coragem". Eu não tenho experiência com escrever roteiro, por exemplo, e dentro do projeto eu coloquei uma oficina de roteiro com Cintia Lima, daqui de Recife, dando oficina.

O nosso projeto ele propõe trazer mais dez mulheres negras que vão escrever, tem uma aula de roteiro ano que vem no Funcultura; em outro edital, elas vão ter autonomia e vão ter pelo menos uma base para escrever a sua história. Eu acho que a gente sempre tem que pensar que a gente nunca está só e a gente tem uma responsabilidade sim de trazer mais outra até que isso mude de fato, enquanto isso não mudar, é nossa tarefa sempre trazer mais uma.

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Fonte: BdF Pernambuco

Edição: Vanessa Gonzaga