Começou, na cidade suíça de Locarno, no cantão do Ticino de língua italiana, o 76º Festival Internacional de Cinema, considerado como o quarto mais importante dos festivais, logo depois de Cannes, Veneza e Berlim. A prova: o ex-diretor artístico de Locarno, Carlo Chatrian, foi convidado pela direção da Berlinale e, há cinco anos, deixou Locarno para trabalhar como diretor artístico do Festival de Berlim.
Desde sua criação, para se desmarcar dos seus grandes concorrentes, o Festival de Locarno fez a opção de prestigiar o cinema dos países emergentes, e isso se tornou a sua força, pois foi assim que revelou novos realizadores; diante da concorrência do cinema comercial, vem sempre dando destaque ao cinema independente, tanto nos países desenvolvidos como em desenvolvimento.
Locarno, nestes tempos de crise existencial do cinema envolvido também em lutas de direitos trabalhistas de realizadores e roteiristas com as grandes empresas produtoras e distribuidoras de filmes, tem um avanço. Foi o primeiro festival a aceitar filmes não destinados à exibição em salas de cinema, distribuídos pela Netflix e Amazon, adaptando-se rapidamente aos novos meios de comunicação e de exibição de filmes.
A possibilidade de ver filmes nos celulares e computadores criou um outro tipo de público: as salas de cinema exibem os filmes ditos comerciais lançados com apoio publicitário, confinando os cinéfilos às salas menores dedicadas ao cinema de autor.
Já existem projetos para se tornarem as grandes salas de cinema em espaços dedicados também a outras atividades. Entretanto, a fábrica de sonhos (como também se chamava o cinema) não vai deixar de existir: irá assumir formas diferentes e mais ousadas. Paralelamente aos estúdios e distribuições comerciais, haverá sempre o cinema independente com sucesso junto aos jovens ou censurado nos países com regimes de intolerância política ou religiosa.
Conheci o Festival de Locarno, nos anos 1980, quando fazia parte da Rádio Suíça Internacional, uma época em que as projeções na enorme Piazza Grande tinham ares de festas populares e o espaço com milhares de cadeiras (hoje são 8 mil lugares) era precariamente cercado com cordões de isolamento. A praça é aberta, nem se imagina ter uma cobertura, e tem havido sempre uma espécie de acordo entre a direção do Festival e as condições meteorológicas. É muito raro chover na Piazza Grande. Esperamos que as mudanças climáticas não mudem essa tradição.
O telão do Festival de Locarno tem 400 metros quadrados e se transformou na grande força e na grande atração do Festival. Antes, os filmes do Festival eram projetados no jardim do Grande Hotel diante de algumas dezenas de cadeiras. Foi o antigo diretor do Festival, Raimondo Rezzonico, quem pediu a um arquiteto local, Livio Vacchini, uma ideia para atrair mais público para o Festival. E a ideia foi a de transformar a Piazza Grande num grande cinema ao ar livre. Isso em 1971. Com uma enorme tela improvisada, bem menor que a atual, e 2000 cadeiras.
O primeiro filme nesse enorme cinema ao ar livre foi “Take the money and run”, de Woody Allen -e muita gente ficou em pé. Para o segundo filme foi preciso buscar cadeiras nas escolas. E nessa primeira vez era também preciso apagar as luzes da praça. Mas não havia outro jeito: ao se desligar as luzes da Piazza Grande também foram desligadas as luzes das casas adjacentes. Ninguém protestou e logo se procurou solucionar esse problema. É dessa época uma frase do arquiteto Mario Botta – “o maior cinema do mundo para fumantes”. Mas hoje já não se pode fumar nesse cinema ao ar livre.
Ficou faltando uma importante informação adicional – O Festival de Locarno não é só a Piazza Grande. Locarno tem muitas salas de cinema. A Piazza Grande é destinada aos filmes de grande público. Os filmes em competição, os curtas, e outros tantos, são exibidos dentro de cinemas normais, não ao ar livre; no total, são mais de duzentos filmes.
O Festival Internacional de Cinema de Locarno começou quarta-feira, e já estamos em Locarno para falar dos bons filmes que estamos vendo.
* Rui Martins: jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça. Colabora com o Observatório da Imprensa e edita o Direto da Redação do jornal Correio do Brasil.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Daniel Lamir