“Seu fim será como o de Marielle Franco”, dizia uma mensagem anônima enviada para a deputada estadual Andréia de Jesus (PT), de Minas Gerais, em dezembro de 2021. Era uma referência à vereadora do Rio de Janeiro assassinada em 2018, junto com o motorista Anderson Gomes.
Mulher negra, ex-empregada doméstica e fruto da Lei de Cotas para ingresso na universidade, Andréia é formada em Direito, está no segundo mandato, reeleita em 2022 com 51 mil votos, e tem forte atuação em pautas de direitos humanos, cultura e saúde. A parlamentar mineira conta que recebe ameaças como aquela frequentemente e precisa andar escoltada, mas a maior parte de seus algozes nunca foi identificada pela polícia, muito menos responsabilizada.
“Durante o período da minha primeira mandata [2017-2022, pelo PSOL-MG], fiz provocações quanto à atuação de policiais em casos de massacres e questionei excessos praticados em operações dentro das comunidades, que ocasionaram mortes de muitas pessoas inocentes”, relembra. Foi quando os ataques começaram a chegar via redes sociais e WhatsApp. “Alguns deles me chamavam de ‘macaca’, diziam que iriam me matar e que eu era defensora de bandidos.”
Apesar da maior incidência na internet, a violência política praticada contra Andréia extrapola os meios digitais. “Sofro também dentro da própria Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), tendo apresentado várias representações contra outros parlamentares que questionam o meu local de fala e meu protagonismo”, ela afirma.
Não à toa, Andréia é autora de um dos projetos de lei que buscam instituir o Dia Marielle Franco de Enfrentamento à Violência Política de Gênero em diversas regiões do Brasil. Ao menos cinco textos como esse estão em discussão nos estados, outros nove já foram aprovados. Na ALMG, um dos lugares onde a matéria segue em tramitação, há indicativos de que a disputa não será fácil.
Em setembro de 2021, por exemplo, a Câmara de Uberlândia, no interior mineiro, derrubou um projeto de lei similar, de Dandara Tonantzin (PT), por 15 votos a 8. Na primeira discussão, o então vereador Cristiano Caporezzo (Patriota), agora deputado estadual, chegou a dizer que “Marielle Franco é a defunta mais chata do Brasil”, “só ganhou notoriedade porque morreu” e “passava a mão na cabeça de traficante”.
Na capital, Belo Horizonte, o projeto proposto por Iza Lourença e Bella Gonçalves (PSOL) foi votado em junho de 2022, recebendo 14 votos favoráveis e 26 contrários — a maioria de parlamentares da Frente Cristã. A sessão ficou marcada na memória de Iza pela violência política. Ela resgata que Wesley (PP) fez questão de frisar que “Marielle não vive”.
“Foi muito difícil. A Câmara é tomada pelo bolsonarismo — os mesmos que, depois da morte de Marielle, foram os primeiros a organizar uma rede de mentiras e difamação sobre sua vida e trajetória política. A violência não foi ‘apenas’ a execução brutal, mas segue até hoje com o combate desse setor à memória de Marielle e a falta de justiça”, lamenta a deputada do PSOL. “Na sessão, o vereador cassado, hoje deputado federal Nikolas Ferreira, comparou Marielle com o torturador Brilhante Ustra”, cita.
O cenário preocupa, mas encoraja Andréia, que se diz “uma semente de Marielle”. “Tem sido uma experiência muito negativa [ser deputada], mas não algo que não esteja enraizado na sociedade. O Brasil é um país misógino e racista, um país que não se libertou da escravidão e não consegue ver meu povo preto se sobressaindo e construindo suas vidas. Como parlamentar negra, só lamento ser obrigada a ter uma escolta para poder conseguir cumprir minha mandata. Não tem sido fácil estar nessa posição e continuar sofrendo ameaças, porque tentam me silenciar”, desabafa.
Marielle Franco, presente
Os embates em torno da memória de Marielle Franco em Minas Gerais escancaram a violência política que mulheres negras, pessoas periféricas e LGBTQIA+ sofrem no Brasil. Tendo esse cenário em vista, o IMF (Instituto Marielle Franco) começou a articular, nas eleições municipais de 2020, uma aliança entre o campo progressista.
Na época, 81 vereadoras eleitas se comprometeram com a Agenda Marielle Franco, um manifesto que sistematiza pautas de políticas públicas que a ex-vereadora carioca defendeu em vida. “Já passou da hora de as esquerdas brasileiras se articularem para responder de maneira coordenada a esses projetos antidireitos que se alastram no país”, diz Lígia Batista, diretora-executiva do IMF, referindo-se aos projetos antigênero que parlamentares de extrema direita tentam aprovar em larga escala no país.
Na contramão da agenda conservadora, o Instituto tem atuado com propostas focadas nos direitos humanos e, em 2020, 70 parlamentares, de 45 cidades, aceitaram multiplicar um pacote legislativo organizado pelo IMF. Entre as propostas estão 12 projetos protocolados por Marielle no Rio de Janeiro, e que poderiam ser adaptadas para outras regiões do país, além de uma lei que cria o Dia Marielle Franco de Enfrentamento à Violência Política contra mulheres negras, LGBTQIA+ e periféricas.
Esta ação já levou municípios de todas as regiões do Brasil a adicionarem o Dia Marielle Franco a seus calendários oficiais. É o caso de Goiânia, Olinda, Araraquara, Natal, Sumaré, Santos, Florianópolis, Recife, São Luís e Vitória.
:: Delator cita envolvimento de bicheiro no assassinato de Marielle, diz jornal ::
Aos poucos, os projetos também estão chegando às casas legislativas estaduais. O primeiro deles foi em julho de 2018, na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro): a Lei 8054/2018, que consolidou 14 de março ao Calendário Oficial do Estado do Rio de Janeiro como o “Dia Marielle Franco – Dia de Luta contra o genocídio da Mulher Negra”.
Em 2020, o projeto de lei de Marinor Brito (PSOL) foi aprovado no Pará. Em 2021, Estela Bezerra (PSB), Renato Roseno (PSOL), Iriny Lopes (PT), Dulci Amorim (PT) e Osni Cardoso (PT) alcançaram a aprovação de textos similares na Paraíba, no Ceará, no Espírito Santo, em Pernambuco e na Bahia, respectivamente. Em 2022, o texto de Tadeu Veneri (PT) foi aprovado no Paraná.
Em 2023, o projeto de lei de Franzé Silva (PT) foi aprovado no Piauí. Já em Minas Gerais, São Paulo, Amapá, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte há PLs tramitando.
Também em 2023, o governo federal sancionou a lei que faz do 14 de março Dia Nacional Marielle Franco de Enfrentamento à Violência Política de Gênero e Raça. A proposta foi das ministras das Mulheres, Cida Gonçalves, e da Igualdade Racial, Anielle Franco, irmã de Marielle.
“Hoje, ser uma mulher negra na política é perigoso no Brasil”, diz Lígia Batista. Sua observação está respaldada por dados de um estudo produzido pelo próprio IMF em 2022, que aponta que 98,5% das 142 candidatas negras entrevistadas pela organização relataram ter sofrido violência política.
É por isso que o Dia Marielle Franco é tão importante, na opinião de Batista. Trata-se de um marco simbólico do legado da vereadora carioca para a democracia e colabora para combater a violência política perpetrada contra as maiorias minorizadas que ela representa — pessoas que estão sub-representadas na política brasileira.
:: Em delação, Élcio diz não acreditar na versão de Lessa, de que não recebeu para matar Marielle ::
Violência política
De acordo com o TSE Mulheres, embora 52% do eleitorado brasileiro seja composto por mulheres, elas representam apenas 33% das candidaturas e lideram 15% dos mandatos eleitos nas eleições ordinárias realizadas entre 2016 e 2022 no país.
Para que esse cenário mude, a diretora-executiva do IMF acredita que o Estado brasileiro precisa reconhecer a violência política de gênero como um problema em todas as suas esferas — no executivo, no legislativo e no judiciário —, para então combatê-la. Também os partidos políticos devem encarar o problema de frente, diz a ativista.
“A violência política não vai se expressar só no ápice do que ela significa, que é o assassinato do corpo, como aconteceu com Marielle Franco. A violência política vai atravessar várias camadas, são várias violências simbólicas que envolvem ameaças colocadas no dia a dia de atuação dessas parlamentares eleitas, que inclusive têm como perpetradores os seus pares dentro das casas legislativas. Os próprios partidos políticos muitas vezes praticam violência política contra as parlamentares”, afirma.
Após quase três anos de luta, a diretora do IMF comemora os PLs semeados, e cobra políticas públicas. “É essencial que essas ações não se restrinjam ao campo simbólico, mas sejam seguidas de ações concretas, como canais de denúncia efetivos e outras estratégias de proteção. Precisamos desafiar a cultura política tradicional do Brasil, essa cultura política da violência, da eliminação do outro, e que afeta particularmente pessoas como Marielle Franco”, finaliza.
:: Caso Marielle e Anderson: leia o depoimento de Élcio Queiroz com o relato do dia do assassinato ::
No Paraná, por exemplo, o deputado estadual Tadeu Veneri (PT) relata que foram meses discutindo com cada um dos deputados que compõem a Comissão de Constituição e Justiça para alcançar a aprovação, que veio com uma condição.
“Quando o relator apresentou seu parecer, ele fez um acordo comigo de que nós retiraríamos aquilo que talvez fosse um empecilho para que nós pudéssemos aprovar o projeto, que é justamente estender o dia, que é de combate à violência política contra a mulher, à mulher periférica, negra, uma quantidade enorme de adjetivos que não ajudavam”, conta Veneri.
Assim, em dezembro de 2022, a data foi aprovada como Dia de Enfrentamento à Violência Política Contra a Mulher. A lei sancionada pelo Governador Ratinho Jr. sequer menciona Marielle Franco ou quaisquer outros marcadores identitários.
“O impacto é simbólico, né?”, comenta o deputado. “Estamos colocando um tema para provocar debate e reflexão sobre o que esse dia significa, e aos poucos, como aconteceu com outras datas referenciais, vamos construindo esse processo de compreensão sobre por que essa lei foi pedida e aprovada.”