No dia 11 de agosto de 2023, reportagem do jornal O Globo noticiava operação de busca e apreensão da Polícia Federal tendo como alvo o general Mauro Cesar Lorenna Cid. Pai do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, o general Lorenna Cid foi nomeado em 2019 para a chefia da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) nos Estados Unidos, além de ter dirigido o Departamento de Educação do Exército. Segundo investigações da Polícia Federal (PF), o general agiu como atravessador na venda ilegal e reaquisição de um relógio da marca Rolex recebido por Bolsonaro após ordem do Tribunal de Contas da União (TCU) para que as joias em posse do então presidente fossem devolvidas à administração pública.
Ao longo do dia, com o desenrolar da história, novos fatos e objetos de valor foram agregados à dinâmica de receptação e atravessamento implementada na Presidência da República – que contou, inclusive, com a participação de Federick Wassef. A investigação da PF chegou a encontrar um kit de joias recebidos por Bolsonaro num site de leilões online, esculturas que teriam sido extraviadas para os Estados Unidos no avião que Bolsonaro usou para deixar o país em dezembro de 2022, além de áudios do tenente-coronel Cid nos quais ele aparece citando 25 mil dólares em espécie a serem entregues a Jair Bolsonaro e mostra receio no uso do sistema bancário – supostamente pelo risco de deixar rastros da operação.
As investigações seguirão e, por certo, ainda há muito a se descobrir sobre o aparato que se instaurou no governo federal a partir da eleição do ex-capitão e da militarização da administração pública em seu governo. Os fatos até aqui expostos, todavia, derrubam o mito de que os militares são essencialmente idôneos, e necessariamente remetem às relações espúrias mantidas por militares, individualmente, e as forças armadas, enquanto instituição, no âmbito do capitalismo.
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A questão vai além dos "crimes comuns" envolvendo militares que eclodiram nos últimos anos, num processo em que se evidenciou que, para muitos deles, a ocupação do Estado durante o governo Bolsonaro deu-se sob a perspectiva de ganhos pessoais – a "mamata", para os fardados, nunca acabou.
A relação das forças armadas com a indústria de defesa, por exemplo, gerou uma rica produção acadêmica, no Brasil e no mundo, em torno das portas giratórias que ali se criaram. Os riscos de tal relação foram denunciados até mesmo pelo ex-presidente dos Estados Unidos, o militar Dwight Eisenhower, que cunhou a expressão “Complexo Industrial Militar”. Fato é que se trata aqui da relação íntima entre militares e empresariado na configuração mesma da política industrial de defesa – política esta que deveria estar sob responsabilidade da autoridade política, democraticamente eleita, e envolvida numa dinâmica de amplo debate com a sociedade.
A existência de comitês e departamentos de defesa em entidades de classe, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI), indica a dimensão desse fenômeno, evidenciando a proximidade entre militares e empresariado. Entretanto, a questão vai além. Casos de egressos e membros das forças armadas que ocupam postos nessas empresas e até mesmo em entidades de representação empresarial são gritantes. Um breve olhar sobre os quadros de diretoria e conselho do Sindicato Nacional das Indústrias de Materiais de Defesa (SIMDE) e da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE) permite identificar egressos das forças armadas com ligações íntimas com a indústria de material bélico – a exemplo do brigadeiro Wilson Romão e do general Aderico Visconte Pardi Mattioli.
No mesmo sentido, é conhecida a atuação do general Sérgio Etchegoyen no âmbito do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE), no qual é responsável pelo setor de Defesa e Segurança, pautando uma série de debates e encontros entre militares e setores do empresariado brasileiro.
Por fim, há ainda um outro elemento a ser considerado no marco destas relações espúrias. Levantamento do Poder360 de junho de 2023 apontava que, em 2022, as forças armadas eram responsáveis por 67% dos contratos da União firmados com empresas pertencentes a militares. Por si só, os dados chamam atenção. A mera possibilidade de quebra do princípio da impessoalidade da administração pública, objetivamente configurada neste caso, deveria ensejar um escrutínio detido nesses contratos por parte das autoridades competentes. Em 2021, o próprio TCU alertou para o risco de tais contratos em documento sigiloso obtido pela Folha. O Tribunal apontava então para o "alto risco de irregularidade" nas contratações firmadas com empresas de militares. No mesmo ano, a Marinha do Brasil concluía licitação no valor de R$ 778.026,92 com empresa pertencendo a dois oficiais da reserva do Exército, que respondiam então a processos na Justiça Militar por, dentre outros, corrupção e fraude em licitações.
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Em que pese a construção imagética, de todo artificial, de que seriam os militares os esteios da moral e guardiões dos bons costumes, os fatos mostram uma realidade completamente distinta. Ao fim, em seu falso-moralismo, as forças armadas mantêm exatamente o tipo de relação espúria que acusam a classe política de ter com o Capital.
O caso envolvendo o tenente-coronel Mauro Cid e o general Lorenna Cid simbolizam a ponta deste iceberg. O que observamos a princípio como incompetência de criminosos em encobrir seus rastros deve ser considerado no marco de uma organização que se habituou aos desmandos e ingerência no país, acostumada com o patrimonialismo típico de quem se entende dono do Estado.
O futuro deste caso – e, por certo, do intervencionismo militar – resta agora na disposição do sistema político em dar uma resposta contundente aos acontecimentos recentes: seguiremos lenientes e amedrontados face aos desmandos dos militares ou daremos início a uma nova fase na ainda em construção democracia brasileira, responsabilizando os sujeitos armados que interferem em nossa democracia? Ao fim, o famigerado tuíte do general Villas Bôas, nos idos de 2018, mais valeria se fosse uma comunicação interna, lembrando a si e aos seus que a superioridade moral das forças armadas não passa de um sonho em verde oliva.
*Jorge Oliveira Rodrigues é analista político e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP)
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato
Edição: Thalita Pires