O Brasil é uma nação fascinante, encantadora, bonita e inspiradora, em muitos aspectos. Mas é, também, uma "anomalia" histórica: entre as nações dependentes que fizeram a transição do mundo agrário, se destaca, em primeiro lugar, pela maior desigualdade social do mundo.
O mundo olhou para o Brasil com máxima atenção nos últimos quatro anos porque fomos um laboratório da história: pela primeira vez, uma coalizão de extrema-direita liderada por uma corrente neofascista chegou ao poder através de eleições. Bolsonaro estaria sinalizando um perigo real e imediato de que, em outros países-chave, poderia acontecer o mesmo? Ou o bolsonarismo foi uma excepcionalidade brasileira?
Ao mesmo tempo, sete anos depois do golpe institucional dissimulado de impeachment que derrubou o governo Dilma Rousseff com apoio unânime da classe dominante, Lula venceu e formou um governo de Frente Ampla, incorporando lideranças burguesas. O capitalismo periférico brasileiro, que apoiou a derrubada de um governo do PT de reformismo "fraco", depois de quatro mandatos, aplaudiu a Lava Jato e a prisão de Lula, estaria disposto a tolerar um quinto governo do PT, e aceitar reformas sociais, mesmo que limitadas?
Será que a fração liberal que se dissociou do bolsonarismo conquistou hegemonia "duradoura" sobre a classe dominante? Ou o peso político-social da extrema-direita sobre o agronegócio e outros setores permanece uma ameaça? Um crescimento econômico será possível, mesmo no contexto de uma desaceleração mundial, sem reformas estruturais que despertarão, inexoravelmente, enormes resistências burguesas? Os investimentos externos poderão compensar a contenção do investimento público condicionado pela aprovação do arcabouço fiscal? Qual será o destino do governo Lula? Ninguém sabe.
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Mas se não temos esta resposta, podemos nos fazer as boas perguntas. E isso passa por uma compreensão da realidade que nos cerca. O país superou os 200 milhões de habitantes, somou 85% de sua população urbanizada, vinte regiões metropolitanas com mais de um milhão de pessoas, duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, entre as quinze maiores do mundo, com uma média de 10 anos de escolaridade para a população de 15 anos ou mais. É a quinta maior nação em território do mundo, oito milhões e meio de km², e ocupa sozinho quase a metade do território da América do Sul.
A Amazônia, por sua vez, corresponde a quase metade do Brasil, e tem a maior reserva de biodiversidade do mundo, um patrimônio de importância estratégica para a indústria biogenética e acesso á água potável. Nas águas profundas do pré-sal tem uma reserva de óleo leve de excelente qualidade, estimada em 2010 em 16,6 bilhões. Mas a metade de sua população economicamente, ativa tem uma renda de até dois salários mínimos. O moderno e o arcaico se misturam em combinações bizarras.
O Brasil tem sido o maior produtor mundial de café dos últimos 150 anos e, ao mesmo tempo, tornou-se o quarto maior mercado de automóveis, ocupa a quarta posição no ranking de maiores exportadores de armas leves.. É o primeiro produtor mundial de suco de laranja, soja, carne bovina e de aves. O país é um dos cinco maiores produtores de alimentos, o maior de proteína animal, mas trinta milhões de pessoas passam fome.
Em perspectiva histórica, o capitalismo brasileiro perdeu o dinamismo que revelou entre os anos cinquenta e oitenta do século XX. Nesse intervalo histórico, o investimento estrangeiro, no contexto da guerra fria, a urbanização acelerada, e a formação de um mercado interno que, durante os anos dos governos do PT, alcançou quarenta milhões de consumidores de bens duráveis e semiduráveis, entre outros fatores, foram capazes de garantir a duplicação do PIB a cada década.
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Desde a crise da dívida externa dos anos oitenta, o Brasil continuou a ser uma economia dependente, mas de crescimento lento. Demoramos trinta anos, entre 1980 e 2010, para duplicar o PIB. O PIB de US$ 2 trilhões pode impressionar, mas deve ser lembrado que a população duplicou, também, nesse intervalo, portanto, a renda per capita permaneceu estagnada durante o intervalo de uma geração, algo em torno de US$ 10.000,00, ou pela metodologia de PPC, paridade de poder de compra: US$ 15.000,00.
Estagnação de longo prazo significa decadência. O Mercosul foi uma iniciativa, nos anos oitenta, liderada pelo Brasil e Argentina, associados ao Uruguai e Paraguai, de maior integração econômica regional. Trinta e cinco anos depois, o balanço é desencorajador: o Brasil foi, unilateralmente, o maior beneficiário, obtendo grandes superávits comerciais, e reforçando o seu lugar de submetrópole. Não surpreende que as burguesias vizinhas tenham se deslocado, em diferentes momentos, para a busca de acordos comerciais bilaterais, com os EUA, Europa e até com a Rússia.
Foi impossível para o capitalismo brasileiro manter um ritmo sustentado de crescimento mais intenso. As razões históricas desta desaceleração são muitas. Os liberais valorizam o que denominam de "baixa taxa de poupança interna", pequena, comparativamente, com outros países. Apresentam fantasias para justificá-la: argumentam que os benefícios da previdência social são grandes demais e, portanto, incentivam o consumo. Não se poupa, porque "não há razões para temer a miséria na velhice", ou "não se poupa porque se consome". Os keynesianos atribuem o baixo crescimento à fragilidade da demanda privada e pública.
Uma interpretação marxista tem ambições maiores e remete, necessariamente, à centralidade da queda na taxa de investimentos que, por sua vez, resulta de uma taxa de exploração do trabalho, ou de apropriação de mais valia insuficiente. A taxa média de lucros cai pela tendência do capital, nas condições do subdesenvolvimento, de se reproduzir de uma forma quantitativa, com baixo crescimento da produtividade. Como o capital foi incapaz de desenvolver as forças produtivas da sociedade (porque se movimenta em busca de se apropriar de um sobrelucro na forma de renda de tipo "monopolista" de setores onde possui vantagens naturais, no contexto do mercado mundial) precisou impor um aumento da taxa de mais-valia por uma via "extra-econômica", ou seja, pela via política da destruição de direitos com sucessivas contrarreformas: trabalhista e previdenciárias, por exemplo. Formas que facilitem uma queda do salário real médio, seja direto ou pela via do fundo estatal.
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Há muitos anos é notório um movimento de reprimarização da economia. Aumentou o peso das atividades relacionadas à agricultura, pecuária, extrativismo (mineração e extração de hidrocarbonetos) e, mesmo dentro da indústria, daqueles setores de bens intermediários (siderurgia, refino básico, papel e celulose) e seus serviços, que se aproveitam de alguma forma de condições naturais excepcionais. Ocorre que estes setores têm uma característica peculiar: em geral (salvo a raríssima exceção eventual de alguns ramos da indústria do petróleo) são setores onde a composição do capital é mais baixa do que a média da indústria de transformação, de bens de consumo e de "bens de capital" (e seus serviços). Isto significa que são setores onde a produtividade do trabalho é mais baixa. O crescimento foi "horizontal", ou predominante quantitativo. A produtividade do trabalho se manteve estável, ou cresce pouco ou menos do que a média internacional. De qualquer forma, significa que não houve um crescimento da produtividade suficiente para compensar o movimento do salário real.
A maior lentidão do movimento de rotação do capital ou a diminuição da velocidade da acumulação se manifestou, simultaneamente, à tendência de elevação da taxa média de remuneração do trabalho manual. Esta tendência se inicia nos anos noventa, e é acelerada na primeira década dos anos 2000 pela pressão exercida pela política de valorização do salário mínimo que subiu até 2015. Já a carga tributária estabilizou-se em torno de 25% do PIB no final dos anos 60 e ao longo de toda a década de setenta e oitenta. Subiu nos anos noventa, atingindo 32,66% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2015.
Impostos sobre heranças, patrimônio e renda, ou uma estratégia de valorização do salário mínimo, assim como as políticas públicas de distribuição de renda como a vinculação do piso dos benefícios da Previdência Social, ao salário mínimo, são alvos da ofensiva do capital. Eles querem menos carga fiscal e menos despesas.
A chantagem sobre o governo Lula é implacável. Para impulsionar o crescimento da economia a taxas mais elevadas que a média medíocre de 2% ao ano dos últimos trinta anos e sob a pressão do imperialismo norte-americano, o bloco político-social burguês que esteve por trás do impeachment e apoiou Bolsonaro até o impacto da pandemia, insiste em mais ajuste fiscal, de forma a conseguir atrair investimentos estrangeiros, que se deslocaram nos últimos trinta anos para a Ásia.
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O choque é necessário, em primeiro lugar pelo reposicionamento da China no mercado mundial. A redução da participação dos salários na renda nacional, a chamada distribuição funcional da renda, que se recuperou e voltou, em 2010, aos patamares de 1990, se impõe em função dos ganhos de produtividade da economia chinesa.
A ofensiva de choque se impõe para recuperar capacidade de atração do capital internacional para voltar a crescer. A ironia da história é que a dependência econômica se acentua.
A dependência econômica do imperialismo
O gigantismo do PIB brasileiro não pode nos ofuscar. Devemos compreender que o Brasil é ainda um país atrasado e periférico em toda a linha. Mas, como expressão do desenvolvimento desigual e combinado, a economia brasileira tem o maior parque industrial do mundo ao sul da linha do Equador. Suas multinacionais são as mais poderosas do continente.
O capitalismo brasileiro sempre foi e permanece sendo um grande importador de capitais. Seu lugar no mercado mundial foi sempre, também, o de um país exportador de produtos primários, e importador de manufaturados, que incorporam mais tecnologia. Sofreu transferência de riqueza, pelas desvantagens dos termos de troca, durante quase toda a sua história. Este contexto se alterou na primeira década do século XXI em função das guerras no Iraque e Afeganistão e, sobretudo, por causa do vigor do crescimento chinês. Desde o ano passado, mas em escala menor, como consequência da guerra na Ucrânia. A balança comercial brasileira só tem um perfil inverso nas relações com os vizinhos no Mercosul.
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Encontramos um claro padrão histórico de dependência da economia periférica brasileira que se expressa na necessidade insubstituível de acesso a investimentos estrangeiros para não cair em estagnação. O perigo da estagnação e, portanto, da decadência econômica, se traduziu historicamente em crise social que foi sempre uma antessala da crise política. Essa associação com capitais de países imperialistas se manifestou na tendência crônica de déficit das transações correntes, sempre que se acelera o crescimento econômico, aumentam as importações e se eleva o consumo interno. Essa é a forma como se manifesta no terreno econômico, de forma crônica, a vulnerabilidade externa.
O déficit externo crescente, que depois precipita a necessidade de um ajuste, foi sempre um dos efeitos colaterais das fases de crescimento. Os ajustes foram mais brandos ou mais abruptos. Podemos conferir, empiricamente, esta alternância de acelerações e desacelerações, considerando o ciclo anterior dos governos do PT: a taxa de crescimento do PIB evoluiu de 1,3% em 2001, para 6,0% em 2007, e 7,6% em 2010, ou uma média próxima a 4% nos anos do governo Lula. Mas caiu para 0,2% em 2014 e, entre 2015/16, uma contração superior a 7% do PIB. Desde então a economia brasileira sofre a maior recessão prolongada de sua história, acentuada pela pandemia, e uma recuperação modesta em 2022. Desde 2014, uma década perdida.
Esta vulnerabilidade externa impôs, necessariamente, uma e outra vez, um pé no freio: um ajuste diante de pressões inflacionárias provocado pela fragilidade das transações correntes, e uma forte desvalorização da moeda nacional. O que explica, parcialmente, os ciclos de pressão inflacionária, também, crônicos, como o penúltimo, que culminou em 2015 com a taxa acima de 10%, e o mais recente, em 2021/22, também, acima de 10% ao ano. O déficit nominal do orçamento, portanto o déficit primário somado à rolagem dos juros da dívida interna, em proporção do PIB, evoluiu de 4,8% em 2001 para 2,7% em 2004, 2,4% em 2007, 6,1% em 2014 e 10,3% em 2015. Entre 2016 e 2019 caiu, mas voltou a crescer em função da pandemia e os gastos sociais de emergência. O objetivo central do arcabouço fiscal é tentar zerar o déficit primário, antes da rolagem dos juros, até o fim de 2024.
O câmbio sofreu forte desvalorização, passando de R$2,20 por US$1,00, em meados de 2014, para níveis próximos de R$3,50/US$1,00 em meados de 2016, e superando os R$5,00 em 2022; e a inflação medida pelo IPCA alcançou 10,67% em dezembro de 2015, a mais elevada desde 2002, e disparando acima de 12% em 2022. Inflação e desvalorização inferiores às da situação dramática da Argentina, mas muito altas.
Nossa dependência econômica tem três dimensões: financeira, comercial, e produtiva-tecnológica. A trajetória histórica das oscilações da tendência de déficits nas transações correntes, e a tendência de aumento do passivo externo líquido são dois indicadores da inserção dependente do Brasil como semicolônia. O gráfico abaixo ilustra, em séries históricas decenais, de forma contundente.
O capitalismo brasileiro é uma economia dependente porque, repetimos, somos importadores de capital. Os saldos na balança comercial, resultado positivo das exportações sobre as importações, foram quase sempre insuficientes para cobrir o déficit no balanço de pagamentos, e nas contas correntes, dependendo do investimento estrangeiro para evitar a desvalorização da moeda, com as consequentes pressões inflacionárias.
Mudar o Brasil não é possível sem desafiar esta dependência. Isso exige disposição de luta e a formação de um bloco político-social popular que ofereça sustentação para iniciativas de ruptura que devem ser na escala latino-americana.
* Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e autor de O Martelo da história, entre outros livros.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires