Por trás da expressiva votação do candidato presidencial Javier Milei nas eleições primárias da Argentina, existe uma comunicação eficaz com a população, particularmente com sua parcela mais jovem. Essa é a opinião de especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato para analisar o resultado das urnas no último domingo (13) e o que está por vir até as eleições de outubro.
Com 97% das urnas apuradas, o ultradireitista Javier Milei (A Liberdade Avança) tinha 30,04%, ante 28,27% da coalizão oposicionista de direita Juntos pela Mudança (encabeçada por Patricia Bullrich) e 27,27% da chapa governista União pela Pátria, cujo candidato será Sergio Massa, atual ministro da Economia. Ou seja, três candidaturas com cerca de um terço da preferência do eleitorado cada uma, mas com ampla maioria para o campo direitista.
Milei, um economista que faz uma campanha ultraliberal e de viés antissistema, numa Argentina em crise, chama a justiça social de "aberração" e apresenta propostas como dolarizar formalmente a economia, algo que já ocorre no cotidiano da população argentina, habituada a usar a moeda estadunidense, e extinguir o Banco Central, que de fato não teria utilidade se o peso fosse extinto, pois a política monetária do país ficaria submetida ao Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos.
::Milei comemora triunfo na Argentina com discurso contra a ‘justiça social, essa aberração’::
“Essa extrema direita radicaliza: ‘vou acabar com o BC, vou dolarizar a economia’. É um discurso compreensível para qualquer um. As pessoas começam a repetir essas coisas, é muito claro”, analisa Gilberto Maringoni, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e coordenador do Observatório de Política Externa da instituição (OPEB).
Maringoni enxerga em Milei um político que pratica uma retórica à la Jair Bolsonaro, na base do “vamos acabar com isso tudo que está aí”. Um exemplo disso é que o candidato vitorioso resgatou em sua campanha o bordão Que se vayan todos (Que todos sumam daqui), um emblema da rejeição à classe política durante a grave crise econômica de 2001, quando argentinos tiveram dinheiro confiscado.
São ideias “atreladas ao que a massa quer ouvir, que é esse voto de bronca, que critica o sistema tradicional”, completa Carlos Vidigal, professor de História da UnB, doutor em Relações Internacionais e autor de Relações Brasil-Argentina: a construção do entendimento, livro publicado em 2009. Segundo ele, a retórica de Milei tem especial impacto sobre uma juventude seduzida pelo capitalismo contemporâneo, aquele baseado numa relação umbilical do cidadão com a internet e a tela do smartphone, “que tem na lacração um estilo cotidiano”.
Ou seja, o candidato não precisa ter conhecimento nem proposta de governo. Mais importante é saber lacrar.
Do lado oposto do espectro ideológico, está a centro-esquerda, que mesmo tentando se modernizar para não perder o bonde da comunicação política, continua atada a velhos hábitos, nem sempre eficazes.
“Na geleia progressista dos governos de esquerda, o discurso é muito abstrato. Não tem propostas concretas. Aí a direita chega com discurso afiado”, analisa Maringoni, citando como exemplo a primeira-ministra da Itália, Georgia Meloni, em sua retórica contra os imigrantes, que encontra forte acolhida em parte considerável da sociedade italiana. “A falta de nitidez coloca em xeque a prática dos governos progressistas”.
Em artigo publicado no jornal Página 12, Eduardo Aliverti especula na mesma direção. Para ele, o núcleo duro de Milei deve ser composto pelo voto jovem, majoritariamente masculino, de setores menos favorecidos da população, sem expectativas de progresso, afetados pela ausência de trabalho, uma fatia da população com a qual a União pela Pátria “jamais soube falar, seja em questões econômicas, seja no que se refere à insegurança”.
Vidigal avalia que Milei foi subestimado por algumas razões, entre elas a grande mídia preferir outros candidatos, notadamente os oposicionistas. “A imprensa acha que se der grande cobertura a um candidato como Milei, acaba fortalecendo a candidatura dele”. Vale para os institutos de pesquisa o mesmo raciocínio, segundo o professor. Afinal, são empresas privadas e têm preferências por candidatos da política tradicional, menos imprevisíveis. As pesquisas de opinião não haviam detectado um apoio tão forte a Milei no eleitorado argentino.
Pastel de vento
Maringoni diz que os governistas se prepararam para combater a oposição (Bullrich) avaliando que o “pastel de vento (Milei) iria desinflar como as pesquisas indicavam”. Mas o pastel está ocupando mais espaço do que nunca.
Questionado sobre a origem de tantos votos obtidos pelo ultradireitista, ele responde: “Parece que o voto do macrismo (oposição) migrou para o Milei”. A candidata Bullrich, ao adotar um discurso mais à direita que lhe viabilizou ser a candidata do Juntos pela Mudança, pode ter perdido votos para o Milei. “Assim como no Brasil, em 2018, quando o PSDB e o PMDB perderam votos para o Bolsonaro. O macrismo pode estar comprometido.”
Embora faça a ressalva de que ainda é cedo para qualquer conclusão, Maringoni cogita a hipótese de que muitos eleitores da atual vice-presidenta Cristina Kirchner terem migrado para o Milei quando ela desistiu de se candidatar. Mesmo parecendo um contrassenso do ponto de vista ideológico, por ela ser um ícone do peronismo (esquerda), “a composição do voto é complexa” e pode ser afetada pelo “desvio de uma personalidade para outra, pois as pessoas movem seus votos por símbolos”.
Aqui, ele traça um paralelo com Lula e Bolsonaro, que embora pertençam a espectros ideológicos opostos, podem angariar votos dos mesmos eleitores por terem como característica o perfil do candidato salvador da pátria, que vai pegar na mão do cidadão e resolver seus problemas.
É natural que se trace um paralelo com a eleição brasileira de 2018, vencida pelo até então subestimado Bolsonaro. Vidigal, no entanto, aponta uma diferença: Milei não tem penetração em dois segmentos importantes para o ex-presidente do Brasil: Forças Armadas e evangélicos. Sobre a falta de apoio entre os militares, Maringoni complementa que na Argentina, “ninguém recupera a ditadura”. Quer dizer, candidato algum vai fazer apologia de governos militares, como Bolsonaro costuma fazer, porque é algo que a sociedade não aceita. “A memória histórica do Milei é o Que se vayan todos”.
Pelos discursos proferidos após as primárias, parece ter ficado aberta a porta para uma possível aliança entre a direita e a ultradireita, o que poderia colocar os governistas em maus lençóis. “Eu não descartaria uma aproximação entre Bullrich e Milei”, prevê Vidigal.
Mas Maringoni mantém-se otimista em relação às possibilidades do campo progressista e de uma eventual continuidade do atual governo de Alberto Fernández. “Tem muita gente falando que a eleição está perdida, mas eu não sou fatalista. O Boric virou a eleição”, compara Maringoni, referindo-se ao atual presidente chileno, Gabriel Boric, que perdeu o primeiro turno para José Antonio Kast, em 2021, mas se recuperou e venceu a eleição no segundo turno.
Consequências imediatas na economia
Depois das primárias, o Banco Central argentino elevou a taxa básica de juros em 21 pontos percentuais, de 97% para 118%, e desvalorizou o peso em 22% frente ao dólar oficial. Com essa decisão, o dólar "mayorista" ou "atacado", usado por importadores, exportadores e bancos, saltou a 350 pesos, provocando valorização das demais cotações. O dólar paralelo, chamado de "blue", subiu 11% e chegou a 670 pesos.
Edição: Rodrigo Durão Coelho