Minha missão aqui, na vida, é carregar a história da minha gente
A Bahia é um dos maiores celeiros da arte brasileira, onde se sucedem gerações de artistas brilhantes, das mais diversas matizes. Mas há aqueles que conseguem recuperar as origens baianas e as carregam em sua essência. É o caso da cantora Mariene de Castro, que traz em sua voz as raízes “de uma Bahia profunda”, como ela mesma define.
Neste mês de agosto, Castro se junta a outro baiano, Roberto Mendes, no espetáculo Maria da Canção, em temporada no Teatro Sesi Rio Vermelho, em Salvador, que se estende até o dia 27. O teatro é o mesmo em que Mariene fez sua estreia nos palcos, 25 anos atrás.
“Fica passando um filme na minha cabeça o tempo todo”, conta Mariene de Castro. “É um show em que eu canto com Roberto, apenas eu e ele. São as canções dele, com os parceiros dele, e a gente foi construindo esse repertório como se fosse o repertório da minha vida, porque a vida inteira eu ouvi as canções de Roberto e muitas dessas músicas eu tinha muita vontade de cantar, de gravar”.
A turnê deve passar por outras cidades brasileiras e vai se tornar álbum “que a gente está lançando aos pouquinhos, acho que até setembro a gente lança o álbum todo”, diz a cantora. “Eu estou muito feliz, está sendo uma festa para a minha alma, celebrar os meus 25 anos de carreira assim, de mãos dadas com Roberto”.
Mariene de Castro é a convidada desta edição do BdF Entrevista. Na conversa, ela reflete sobre a reestruturação do ministério da Cultura, racismo, feminicídio e sobre as escolhas que fez na carreira. Uma delas foi a de se afastar do circuito comercial da música e mergulhar no cancioneiro baiano e nas músicas de terreiro.
“Eu acho que essa é a minha missão aqui, na vida, de carregar a história da minha gente, através dessas pessoas que escreveram e construíram essas músicas, construíram o meu repertório, que me foi contando a história do meu povo, a minha história e uma coisa entrelaçada com a outra, com muita ancestralidade”, explica.
No começo do ano, uma postagem da cantora viralizou nas redes sociais, quando ela comentou sobre sua ausência no Carnaval da Bahia. No post, ela lembrou que nunca foi convidada para se apresentar na principal festa brasileira – com exceção de participações pontuais em trios elétricos de outros artistas.
“Cantar no Cortejo Afro foi a forma que eu encontrei de fazer parte do Carnaval de Salvador, num bloco afro, de muita luta, que sai de madrugada, que o carro de som era pequenininho, precário, e quando as televisões já estavam desligadas”, afirma Mariene de Castro.
“O samba da minha terra deixa a gente mole, o samba nasceu lá na Bahia; e por que que o samba não faz parte do Carnaval de Salvador?”, questiona a cantora.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Você faz, agora em agosto, uma série de espetáculos ao lado de Roberto Mendes. Os shows começam na tua cidade, Salvador. Como está a expectativa?
Mariene de Castro: Fica passando um filme na minha cabeça o tempo todo, porque eu volto ao teatro Sesi, 25 anos depois, no teatro onde eu estreei, onde eu fiz o meu primeiro show, e Roberto participava desse show. Então, a nossa história aconteceu, a gente nunca fez um show juntos, essa é a primeira vez. Estamos comemorando 25 anos de amizade, de parceria, de muito respeito e cumplicidade.
E daí vai nascer Maria da Canção, que é um show em que eu canto com Roberto, apenas eu e ele, ele canta e toca violão. As canções são dele com os parceiros dele, e a gente foi construindo esse repertório como se fosse o repertório da minha vida, porque a vida inteira eu ouvi as canções de Roberto e muitas dessas músicas eu tinha muita vontade de cantar, de gravar.
Por isso, a gente decidiu fazer um álbum que a gente está lançando aos pouquinhos, acho que até setembro a gente lança o álbum todo. Eu estou muito feliz, está sendo uma festa para a minha alma, celebrar os meus 25 anos de carreira assim, de mãos dadas com Roberto, está sendo muito especial.
E que bacana. Ele participou desse teu primeiro show no mesmo teatro?
Sim. Quando a gente estava escolhendo o lugar para estrear o show, a gente pensou em várias possibilidades: de estrear em São Paulo, de estrear em Salvador, mas no teatro Castro Alves. Aí eu falei: “Roberto, lembra que foi no Sesi que eu fiz o meu primeiro show e você participou?”.
E o Sesi é uma casa linda, num casarão antigo no bairro do Rio Vermelho, e aquela lembrança daquela fila cumprida antes do show. É um teatro pequenininho, de 100 lugares, então, além de ser muito simbólico, importante, eu acho que vai ser um presente para a gente estar nesse lugar, na minha terra, do lado desse santamarense que eu admiro, que eu amo, que eu respeito. Já está sendo muito especial a caminhada.
Ele falou para mim assim: “Ai, mas é tão bom, porque as coisas vão acontecendo assim, naturalmente, tá tudo fluindo”. Porque ele gostou da arte, do cenário. Essa é a primeira vez em que eu faço um show com voz e violão. E fazer um show com voz e violão com Roberto Mendes é tipo: “Vamos deitar na rede, olhar para o céu e agradecer”. Porque é um prazer, uma coisa que não dá nem para explicar.
Você falou que está comemorando 25 anos de carreira e, como você disse, tem muita coisa também em comum com o Roberto Mendes e com outras pessoas que te acompanharam nessa trajetória. Uma outra coisa interessante que você falou é que todos esses personagens são da Bahia. Como foi crescer nesse caldeirão cultural que é a Bahia?
Especialmente ao lado desses baianos, eu acho que é um presente, porque foi uma geração que… Os Doces Bárbaros já tinham passado, o Tropicalismo já tinha acontecido, [Dorival] Caymmi já tinha partido, enfim, era uma Bahia com uma efervescência completamente diferente.
Eu sou a Bahia profunda, Roberto também, nós mergulhamos nas nossas raízes, estamos nos comunicando com esse universo de pessoas que também buscam esses caminhos. E a gente quer contar a história com essa verdade, com essa força, com essas nossas raízes.
E, entre tantos assuntos que entrelaçam vocês, um que também acho muito interessante é o do cancioneiro baiano, uma tradição também de Roque Ferreira, entre tantos outros que você tem como espelho, que é a música de terreiro. Como é carregar esse legado?
É uma missão. Eu acho que a minha missão aqui, na vida, na música, é essa: carregar a história da minha gente, através dessas pessoas que escreveram e construíram essas músicas, construíram o meu repertório, que me foi contando a história do meu povo, a minha história e uma coisa entrelaçada com a outra, com muita ancestralidade.
Porque a gente fala também dos nossos antepassados, a gente fala de quem gerou tudo isso. Então eu acho que é uma missão desafiadora, porque chegar aos 25 anos de carreira cantando tudo isso que eu escolhi cantar é para quem tem coragem. Nós somos artistas 100% independentes, livres, libertos.
Eu escrevi um dia sobre isso, e essa imagem fica muito voltando pra mim, porque eu vejo que, ainda hoje, existe camufladamente uma limitação, uma falta de liberdade, e eu e a minha alma somos muito livres, ninguém pode me segurar mesmo, isso é fato. Eu tenho essa imagem da escrava Anastácia com aquela mordaça, e eu digo que a gente arrancou a mordaça com os dentes, mastigou e engoliu.
Isso traz muito também a imagem de Oxum, porque essa mordaça a gente arrancou com os dentes. Os meus antepassados estavam acorrentados, e a gente veio para quebrar tudo isso, a gente vem para que nada possa nos limitar, ninguém vai dizer o que eu vou cantar, o dia em que eu vou lançar, que roupa eu vou vestir, como é que vai ser. Meu guia é o meu coração, é o meu farol. Foi isso que me fez ser quem eu sou hoje e não dá para fazer diferente.
Você falou sobre liberdade, mas também sobre coragem. Foi preciso passar por muita coisa para manter a tua essência? Você acha que, de alguma maneira, isso fechou portas em algum momento para você?
Olha, eu acho que, a depender do ponto de vista que a gente enxerga as coisas, sim. De outro ponto de vista, essa foi a minha grande liberdade. Mas, com certeza, os caminhos que eu escolhi foram muito mais difíceis e desafiadores. Em muitos lugares eu nunca toquei, eu nunca cantei e acho que nunca vou cantar. Mas é porque não é para ser.
Quando eu olho assim, de longe [esses lugares], eu penso: “Que bom que eu não estou ali”. Não é uma coisa de “poxa, que frustração não ter chegado ali”. É porque eu também tenho uma relação de gratidão com tudo na minha vida. E eu acho que tudo é do jeito que é, porque tem que ser assim, porque eu escolhi, porque meu coração escolheu assim.
E sempre tem alguém que fala: “Mas por que você não canta aquilo, por que você não canta pop?”. Eu respondo que é porque eu não quero cantar pop, porque eu quero cantar o que faz sentido pra mim. Essas outras coisas podem fazer sentido para outras pessoas e eu respeito, lindo, mas aí eu parto do princípio daquilo que faz sentido para a minha vida. É isso que me importa. Daqui a 100 anos, alguém vai escutar a gente conversando aqui e vai dizer: “Olha, o que essa moça disse faz sentido para mim”.
A tua ausência no Carnaval deste ano gerou muitas questões. Você se colocou nas redes também, depois vieram réplicas, tréplicas. Passado algum tempo, você já entendeu o motivo dessa tua ausência?
Nunca houve presença do meu trabalho no Carnaval da Bahia, por isso que eu falei aquilo e muita gente não entendeu. “Mas por que ela está se queixando disso agora?”. É a primeira vez que eu falei sobre isso. Eu tenho 25 anos de carreira e o meu trabalho nunca foi presente no Carnaval de Salvador. Eu ficava nos camarotes dando tchau, assistindo a um, assistindo a outro, ou de casa, assistindo.
Ou então cantando no Cortejo Afro, que foi a forma que eu encontrei de fazer parte do Carnaval de Salvador, num bloco afro, de muita luta, que sai de madrugada, que o carro de som era pequenininho, precário, e que as televisões já estavam desligadas. E eu só falei porque as pessoas estavam me perguntando muito. Eu não sei porque resolveram me perguntar, dizendo para eu aceitar participar do Carnaval.
Mas aceitar o que, se eu não fui convidada? Como é que vou à casa de alguém sem ser convidada? Apesar de que eu estou dentro da minha casa e muita gente vem de fora para cantar na minha casa, mas tudo bem, isso aí a gente faz de conta...
Eu tinha cantado no Cortejo Afro na véspera, e via Alberto Pitta naquela luta, tentando patrocínio e me pediu: “Mari, queria que você cantasse com a gente”. Nesse dia chegou o convite da Mangueira, no dia em que eu escrevi o texto, o carnavalesco da Mangueira, cinco minutos depois me escreveu e falou: “Olha, Mariane, a Mangueira vem homenageando a Bahia e tal. Tem um carro da cultura popular, a gente queria que você estivesse nele, fizesse parte desse desfile”.
Enfim, o Santo de Casa nasce disso, de eu estar na Bahia e só existir axé music e pagode. E eu, e muitos outros artistas, Roberto entre eles, Nelson Rufino, Aloísio Menezes, artistas que muitas vezes estão sempre ali, mas estão à margem ou então completamente fora. O samba não faz parte do Carnaval de Salvador.
Uma vez ou outra alguém me convidava para fazer uma participação num trio, mas sempre naquela nomenclatura de participação, ou seja, não remunerada. Enquanto as pessoas fazem a sua vida do ano inteiro num carnaval, ganham dinheiro para o ano todo num carro de som - pelo menos do que eu entendo de montante. Mas é um dinheiro muito grande que gira no carnaval e muitos artistas tem esse momento como importante financeiramente.
Tem uma coisa que é muito recorrente, estamos falando de Moraes Moreira, Batatinha, Riachão, que ficaram de fora do carnaval e viraram nome de circuito. Eu espero que não façam homenagem póstuma para mim, por favor, eu quero viver muito. Esses artistas não receberam em vida as suas homenagens. Então, realmente não dá para entender. O samba da minha terra deixa a gente mole, o samba nasceu lá na Bahia, e por que que o samba não faz parte do carnaval de Salvador?
A gente viveu, nos últimos quatro anos, sem um Ministério da Cultura que atendesse às necessidades de quem faz arte no Brasil e, obviamente, sem um órgão que pudesse fomentar a arte no país. Agora a gente tem Margareth Menezes, uma ministra mulher, baiana, que conhece de perto as raízes da cultura nacional. O que é possível fazer e qual a expectativa para se movimentar a cultura novamente do Brasil?
Olha, eu já sabia que seria um grande desafio, até porque foi uma devastação, em todos os aspectos, não foi só a Amazônia que sofreu essa violência. É muito trabalho mudar tudo isso e reconstruir. Sinto que é o trabalho da reconstrução e trabalho arretado que deve estar sendo para todos eles.
Mas eu torço e vibro para que eles consigam e que esse país se erga novamente, que a nossa cultura possa respirar de novo. Eu me lembro quando eu era adolescente, o quanto Salvador respirava cultura, teatro, dança. Eu sou fruto disso, porque eu fazia balé clássico em uma escola pública, no teatro Castro Alves, fiz o preparatório para o balé jovem lá.
Então, dar possibilidades para os jovens, para quem está chegando, eu acho que é um trabalho muito grande, até por conta do buraco, do estrago que foi essa gestão horrorosa e que sofremos todos com isso. Eu vejo um trabalho muito grande sendo feito, mas adubar a terra pra plantar de novo leva tempo. Não será num passe de mágica, não é um milagre.
No último mês de julho, celebramos o Dia da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha. Você que vem da Bahia, de Salvador, está totalmente conectada com as raízes negras dessa cidade. Como tem percebido essa enxurrada de casos de racismo pelo Brasil? E isso atinge a mulher negra de uma maneira ainda mais pesada. Há também, por outro lado, uma movimentação muito grande de movimentos, articulações, inclusive do governo federal, de mostrar representatividade, a partir dos ministérios, entre outros pontos. Como você tem percebido esse momento?
Eu acho que está no mesmo lugar dessa reconstrução, de algo que a gente já tinha avançado. Sabe aquele jogo, que nós voltamos algumas casinha? Nós já tínhamos avançado, e agora é esse processo de refazer, de reconstruir, de se reposicionar e lutar. Porque abriu um canal violento, em muitos setores, e as pessoas se sentiram autorizadas a fazer tudo isso que estão fazendo com a mulher, em termos não só do racismo, do feminicídio, que é algo que também devasta todos os dias, nós mulheres.
Então, eu acho que para a gente refazer, retomar essa força, leva tempo, muito trabalho e muita dedicação. Eu acho que a gente precisa todos os dias lutar, todos os dias fazer a diferença, se posicionar em cada palavra, em cada aparição, falando na primeira pessoa. Nós, como formadores de opinião, nós como comunicadores, temos um papel importante nessa reconstrução, nesse lugar que tentaram nos matar, mas a gente escolheu não morrer.
A gente não vai deixar essa história ficar do jeito que está. Sempre vem aquele texto da Maya Angelou, “ainda assim, eu me levanto”. E tudo isso que fizeram com a gente, eu falo em nome também de toda a minha linhagem, de todas as mulheres, das minhas antepassadas e, ainda assim, a gente vai se levantar. Eu estou aqui, estou de pé, estou aqui falando com você, eu estou viva, eu estou ensinando a minha filha a ser uma mulher forte, se respeitar e colocar a autoestima dela no lugar devido de uma mulher afro indígena.
Edição: Rodrigo Chagas