Iniciemos este texto urgente com um paradoxo fascinante: as PASOs ["Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias”, como são chamadas as eleições prévias na Argentina] são o instrumento que o sistema político inventou para evitar a fragmentação e gerar maior estabilidade no sistema por meio da consolidação da "oferta", ou seja, de sua concentração em poucas opções.
Uma espécie de blindagem que vem de cima para prender o gado em certos currais predefinidos. No entanto, mais uma vez o tiro saiu pela culatra e as Primárias acabaram se tornando a oportunidade para que o profundo mal-estar que se acumulava por baixo se expressasse com toda a sua força corrosiva e de forma surpreendente. Uma espécie de grito desesperado por mudança. Um basta.
Frente a essa manifestação, que aconteceu em 2019, repetiu-se em 2021 e se expressou ainda mais claramente ontem (domingo, 13) à noite, há duas atitudes possíveis e bem diferentes: fazer o impossível para introduzir essa vontade popular em um cone de silêncio visando à redução de danos, procurar evitar que o eco se espalhe e encontrar uma artimanha para fazê-lo se repensar; ou ser fiéis ao profundo significado da palavra democracia: o povo nunca erra, e se dedicar a decifrar a mensagem das urnas com muita atenção, sem medo, sem colocar os próprios interesses em primeiro lugar, e com a maior sinceridade intelectual possível. Vamos tomar este segundo caminho.
O povo nunca erra. é preciso se dedicar a decifrar a mensagem das urnas com muita atenção, sem medo, sem colocar os próprios interesses em primeiro lugar, e com a maior sinceridade intelectual possível.
Fora todos
O primeiro dado relevante desta eleição é o aumento recorde de votos brancos, nulos e abstenções desde que as PASOs foram instaladas em 2009. Se compararmos as quatro eleições presidenciais ocorridas desde então, a queda no total de votos válidos é impressionante: de 24,3% de votos brancos, nulos e abstenções em 2011, passamos para 36,5% nas prévias do domingo, um percentual que fica acima dos 33,3% verificados em 2015 e dos 30,3% de 2019. Se em 2011 o volume de eleitores que não escolheram um candidato foi de 7.434.542, só a metade do total alcançado por Cristina Fernández de Kirchner para conseguir sua reeleição, em 2023 esse número chegou a 11.952.064, ocupando o primeiro lugar, bem acima do libertário vencedor.
Estamos diante da proliferação do que aqui propomos chamar de cidadão indiferente, que não coincide linearmente com quem não exerce o direito de voto, mas explica ao menos parte dessa tendência crescente. A indiferença é o estágio máximo do descontentamento, pois vai além do voto de punição (diretamente voltado a questionar o governante da vez) e até mesmo do voto de protesto (que expressa seu desacordo com toda a oferta), para expressar algo mais parecido a um desligamento em relação à própria lógica da representação política.
Escolhem não acreditar. Não esperam mais nada. Talvez muitos desses votos sejam definidos na última hora, mas são regidos por parâmetros que nada têm a ver com a deliberação ideológica ou programática. Para reconstruir o vínculo entre essas pessoas e a decisão coletiva dos assuntos comuns, é necessária uma profunda reestruturação do sistema político.
Rock and roll
O segundo aspecto fundamental é a emergência, no duplo sentido da palavra "emergência", de uma nova força política que, em apenas dois anos, tornou-se a mais votada nacionalmente, contra todas as expectativas e à revelia da vontade do establishment local. A vitória fenomenal de Javier Milei e Victoria Villaruel desmente aqueles que ironizavam o mau desempenho do partido nas províncias, sem atentar para algo óbvio: o libertário está em sintonia com o descontentamento popular generalizado.
E vence todas as discussões políticas que enfrenta, colocando seus rivais na defensiva e propondo o que a maioria da população parece desejar: uma mudança decisiva de rumo, um futuro diferente capaz de alimentar a esperança.
Esse gigantesco impulso de legitimidade eleitoral dá agora ao líder ultraliberal poder imediato para influenciar o curso dos acontecimentos, o que se constatou instantaneamente com a desvalorização do dólar oficial adotado pelo Banco Central. Toda a iniciativa está ao lado dele. Se ele não cometer erros, seu percurso até a presidência pode ser imparável. A grande dúvida é se, para concretizar esse caminho rumo à Casa Rosada, ele precisará desestabilizar o governo atual. E, caso precise, se ele será capaz de colocar esse desejo em prática. A principal batalha política, portanto, pode ser travada antes de outubro.
O que quer que o povo queira
A derrota do partido governista é inevitável, apesar dos sinais de astúcia que seus principais líderes estão emitindo ao insinuar que o cenário de três terços poderia favorecê-los, por uma rara peripécia eleitoral. A verdade é que o peronismo passou de 12 milhões e 200 mil votos em 2019 (47,79%) a 7.058.830 (32,43%) em 2021, e chegou ao fundo do poço ontem [domingo] à noite com menos de 6 milhões e meio de adesões (27,27%), o que significa uma queda de quase metade do eleitorado em apenas quatro anos, e isso estando no poder.
Mas se focarmos agora no chamado "candidato da unidade" a sangria é ainda mais eloquente: 7 milhões de votos jogados fora, e uma queda das alturas, escorregando da metade do eleitorado para um piso de apenas 20%, um quinto dos votos em jogo. Um dado menos numérico mostra o grau do dilema de longo alcance que o peronismo enfrenta: pela primeira vez desde 1945, ou seja, desde o seu nascimento, o peronismo ficou em terceiro lugar em uma eleição presidencial.
Três imagens ilustram a crise das três correntes que conformaram a coalizão em 2019. Imagem 1, o presidente Alberto Fernández votando sozinho e enfraquecido na sede da Universidade Católica de Puerto Madero, bairro da oligarquia pós-moderna portenha. Imagem 2, a esposa do candidato a presidente [Sergio Massa], Malena Galmarini, perdeu a interna do peronismo em seu próprio território, revelando o grau de hidroponia do massismo.
Imagem 3, o kirchnerismo foi derrotado pela primeira vez na disputa pelo governo de Santa Cruz e perdeu a eleição presidencial na província para Milei, uma afronta muito difícil para o legado dos pinguins [mascote kirchnerista] digerir.
Vida curta ao macrismo sem Macri
A irrupção da [coalizão] La Libertad Avanza também deixou a tradicional coalizão de oposição em terapia intensiva. Juntos por el Cambio é outro dos perdedores da jornada de ontem [domingo]. Apesar de ter conquistado o segundo lugar, sua vaga no eventual segundo turno em novembro está seriamente ameaçada.
No entanto, dentro dessa força há nítidos vencedores e fracassos retumbantes. Entre os primeiros, destaca-se o ex-presidente Macri, não só porque ele conseguiu manter o distrito-mãe [a cidade de Buenos Aires] por meio de seu primo, ou porque comemorou a vitória da sua candidata mais afim nas eleições presidenciais internas, mas também porque a votação parece ter confirmado sua hipótese de que o consenso social já está maduro o suficiente para que seja imposta uma séria transformação liberal.
Já para Patricia Bullrich, a vitória contra o maquinário eleitoral de seu adversário acaba fazendo dela uma das figuras com maior projeção no cenário político que se aproxima, mas ela pode ter saído da eleição com menos chances de chegar à presidência do que antes. Talvez por não contar com um cálculo razoável para reunir os votos que ela precisaria para chegar ao segundo turno, acaba se tornando aliada de Milei na tarefa de demolir o que resta do governo todista [da Frente de Todos].
O maior perdedor das prévias de 2023 foi Horacio Rodríguez Larreta. Aquele que tinha o melhor instrumento eleitoral e recursos econômicos inesgotáveis, e que a maioria dos analistas consideravam quase certo o próximo presidente, conseguiu apenas 11% dos votos.
Não seria tão arriscado prever, mesmo em um país onde tudo volta e se recicla, que estamos diante do fim da carreira política da fria máquina de gestão, do herói dos moderados. Com certeza ele continuará na gestão pública e participará das próximas eleições, mas perdeu a possibilidade de ser o condutor de seu próprio projeto. A seus pés, rendido, um ratinho [paródia de trecho do hino argentino].
Quebrar a parede
A soma dos votos conquistados por Massa e Larreta, dois políticos profissionais por excelência, gênios da politicagem, favoritos do círculo vermelho, rivais que correm para o centro para finalmente se beijar, mal ultrapassa a cifra alcançada pelo palhaço louco. Se esta eleição nos mostra alguma coisa, é que não se escapa da polarização por cima, construindo pontes nas alturas; a saída é pela lateral, numa espécie de êxodo do politicamente correto. O problema não seria a falta de acordos, mas a natureza dos consensos existentes que impossibilitam qualquer desenlace, seja qual for o tipo.
Para as forças populares e progressistas, esta eleição representou um golpe duríssimo. Os piores temores se confirmaram: a extrema direita extrai seu potencial do eleitorado jovem, também dos setores empobrecidos, inclusive em territórios periféricos, porque consegue representar a rebeldia contra a ordem existente, injusta sob todos os ângulos. A função que não quisemos ou não soubemos assumir está sendo usufruída por uma narrativa da pior espécie. Cristina Fernández disse uma vez, no melhor momento do ciclo kirchnerista, que à sua esquerda só restava a parede.
Essa fórmula impediu o surgimento de uma vontade política capaz de enfrentar com coerência e lucidez o mau governo peronista. A campanha e o resultado obtido por Juan Grabois e Paula Abal Medina evidenciaram a necessidade de quebrar esse muro de contenção. Impedir que a extrema direita tome posse este ano é a tarefa imediata. Relançar um projeto de resistência e criação, cuja fidelidade esteja atrelada à felicidade efetiva do povo, para além de qualquer cálculo de governabilidade ou benefício político setorial, é o mais urgente e ao mesmo tempo o mais importante.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.