Opinião

A cultura woke: a esquerda entre duas extremas direitas

Uma reação contra-hegemônico pela esquerda é urgente, utilizando todas as ferramentas possíveis

São Paulo (SP) | |
A nova versão feminista da boneca foi criada após uma crise nas suas vendas - Reprodução

A guerra cultural contemporânea, com a adoção pelas empresas das redes sociais, tornou a disputa dicotômica tradicional entre esquerda e direita mais complexa, desafiando a atuação político-cultural progressista. Pois, embora a engenharia de narrativas da direita liberal ainda seja predominante, as redes sociais contribuíram para multiplicar a visibilidade dos atores políticos da direita “tradicional” no mundo.

Essa maior complexidade contribui para interpretações equivocadas, acostumadas com a dualidade histórica advinda da revolução francesa. O fato é que hoje a esquerda se situa culturalmente entre duas forças de extrema direita, que duelam por hegemonia. Os Estados Unidos são paradigma para essa nova ordem.

As ações culturais da extrema direita tradicional sempre se basearam na emissão recorrente de supostos valores virtuosos da “família, da pátria e de Deus”, em meio a discursos de ordem, disciplina e tradição, entre outros. Já a outra extrema direita exerce uma hegemonia de modo mais sofisticado. O liberalismo estadunidense (e sim, consideramos essa força extremista conservadora e não progressista), nos últimos dez anos, mergulhou de cabeça na tarefa de absorver e pautar as perigosas reivindicações (do ponto de vista do capital): negra, feminista, lgbtqiap+ e ambiental. E difundiu essa atuação (e modus operandi) para as elites liberais do mundo.

Tratou de perceber essa pulsante nova camada cultural, esvaziar seu sentido revolucionário, de classe, e convertê-la em reivindicações “culturais” dentro do próprio capitalismo. Rapidamente, os mais variados produtos adequaram suas marcas a essas novas pautas. Bandeiras arco-íris pintaram logotipos. Mulheres negras viraram garotas-propaganda, a indústria cultural multiplicou heroínas e toda sorte de luta ambiental foi encampada. 

Para essa extrema direita liberal, a acumulação de valor está acima de tudo, trata-se de conservar radicalmente a condição exploratória. Embora tenha esvaziado o potencial revolucionário desses coletivos, essa atuação, não sem contradições, auxiliou a luta cotidiana desses grupos, que, em última instância eram e são assassinados diuturnamente. 

Mas a outra extrema direita se levantou contra essa ação histórica. Para os supremacistas e fascistas tradicionais, a acumulação de valor não estaria acima de tudo, mas sim a supremacia de seus “valores”: branca, masculinista, misógina, heteronormativa, etc. Conservá-los é o que importa. “Valores”, e não “acumulação de valor”, seria a prioridade. E, embora tenham feito ressurgir a sombra do nazismo, ela efetivamente contribuiu para o desvelamento do poder imperial capitalista mundial, do que apelidaram de “globalismo”. Poder esse que tornou o mundo mais desigual em toda a sua história.

Ambas as forças direitistas denominam esse movimento liberal (capitaneado pelo Partido Democrata dos EUA) de “cultura woke”. Woke de “acordei”. Em artigo da BBC de novembro de 2022, podemos entender que “algumas pessoas se autodefinem como alguém woke, ou atento contra a discriminação e a injustiça, outros utilizam o termo como insulto. (...) Para algumas pessoas, ser woke é ter consciência social e racial, questionando paradigmas e normas opressoras historicamente impostas pela sociedade. Já para outros, o termo descreve hipócritas que acreditam que são moralmente superiores e querem impor suas ideias progressistas sobre os demais.”

Antes de classificar essa nova cultura como algo positivo ou negativo, é preciso entender primeiro o fato de que em pouquíssimo tempo toda a maquinaria liberal mundial começou a absorver essas lutas. Músicas, livros, novelas, agências de notícias, celebridades, propagandas, influenciadores e filmes infantis passaram a criar narrativas inclusivas tomando completamente as rédeas das lutas históricas dos movimentos “identitários” e excluindo delas, a luta de classes.

No Brasil, a TV Globo é sua principal representante, e no mundo, Hollywood. O filme sobre a boneca Barbie é paradigmático – em 2018, a empresa Mattel atingiu seu menor lucro da história, e sua boneca, considerada um ícone do controle dos corpos femininos, teve suas menores vendas. A partir disso é criado um plano de reposicionamento de marca, contratada a diretora mais “cult” e feminista do momento para absorver as críticas, e relançá-la como uma nova boneca “feminista”, se tornando um fenômeno mundial.

Assim, em segundos, a extrema direita liberal absorve a pauta e obriga as forças de esquerda a defenderem uma mercadoria ideológica ou então uma TV capitalista, frente aos ataques da outra extrema direita tradicional.

As duas extremas direitas possuem, portanto, expressões culturais (e estruturas de difusão) muito bem definidas, mas que na barafunda das disputas ideológicas fazem com que as forças anticapitalistas se percam entre se aliar taticamente com uma ou outra ao invés de tentar construir suas próprias narrativas. Assim, ora se unem na defesa da ampliação dos direitos sociais, e da vida das minorias, ora se aliam às críticas ao imperialismo liberal. 

Essa situação é propiciada pela condição desfavorável das forças de esquerda, no que se refere à construção de uma contra-hegemonia político-cultural. Embora a esquerda moderada no Brasil tenha conquistado politicamente posições de poder, sua influência direta em construção simbólica é muito precária. Se pensarmos em instituições produtoras de conteúdo ideológico, praticamente inexistem dispositivos culturais operados diretamente pela própria esquerda.

São escassos os canais de notícias, centros culturais, produtoras de cinema e tv, grandes editoras, redes sociais, gravadoras, templos, entre outros, que atuam no campo cultural construindo discursos contra o capital e afirmando seus valores. Assim, quando atuam nessa disputa, atuam sempre como passageiros, e nunca como motores desse processo histórico. 

Na era onde a dominação cultural capitalista é cada vez mais ampla, mais sofisticada, difusa, individualizada e mundial, a construção de um aparato contra-hegemônico pela esquerda é urgente. Aparato que deve levar em conta múltiplos níveis de recepção. Atuando junto às elites culturais e econômicas, mas também às camadas populares. Valendo-se de inteligência artificial, big data, filmes, músicas, exposições, mas também de templos evangélicos e até programas policialescos, por exemplo. Modulando discursos, criando empatia, afetos, cultura e arte, trabalhando os níveis de comunicação, até conquistar musculatura para disputar culturalmente a sociedade e parar de cair na armadilha das duas extremas direita.

 

*Guilherme Leite Cunha é produtor e crítico cultural. Criador da revista de crítica de arte DAZIBAO, é mestre em Estética e história da arte pela Universidade de São Paulo, e pesquisa as relações entre cultura e política.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho