A capoeira é uma forma de buscar equilíbrio para sobreviver nessa sociedade que é opressora
A capoeira, um símbolo de resistência e identidade cultural afro-brasileira, representa um legado histórico vivo e pulsante, que atravessa gerações e transcende fronteiras. Com raízes firmadas nas culturas dos povos africanos, que foram escravizados e trazidos à força nos tempos do Brasil Colônia, a Capoeira de Angola se mantém viva através da prática e da manutenção da memória ancestral nas rodas, gingas e nos cantos que ecoam pelo país.
No extremo sul da cidade de São Paulo, no bairro do Grajaú, que registra a segunda maior população negra da metrópole, o grupo Semente do Jogo de Angola desenvolve há 33 anos a Capoeira de Angola, na linhagem do baiano Mestre Pastinha, sob a coordenação do também baiano Mestre Jogo de Dentro.
Alan Amaro dos Santos, contramestre do grupo na cidade de São Paulo, conta que o Semente do Jogo de Angola nasceu em 1990 realizando atividades nas periferias e na região central de Salvador (BA). Atualmente o grupo está presente nos estados da Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e também em outros países como Costa Rica, Colômbia, Canadá, Nova Zelândia, Itália, Japão, França e Israel.
O contramestre compartilhou conosco um pouco dos conhecimentos ancestrais da capoeira vindos das diversas culturas do território africano e como ela foi se desenvolvendo no Brasil.
"A capoeira é afro-brasileira, enquanto essa manifestação que a gente conhece hoje. Mas ela se dá muito em função de outras manifestações africanas, de outros movimentos, de danças, de luta, de danças guerreiras que haviam na África e que se encontraram no Brasil, na condição das pessoas escravizadas. A capoeira aqui no Brasil se organiza enquanto forma de resistência física contra a escravidão. Era o recurso que o escravizado tinha pra lutar, pra se libertar, pra fugir, pra enfrentar o feitor ou quem fosse, mas também como forma de zelar uma memória daquilo que ele trazia consigo da África".
Confira a reportagem em vídeo:
Para Alan, que dá aulas de capoeira no Grajaú há 15 anos e que há cinco é o contramestre do grupo Semente na cidade de São Paulo, a capoeira é, para além de tudo, uma filosofia de vida e não deve ser limitada a rótulos.
"Querer definir a capoeira como luta, como dança ou como arte é um pensamento muito europeu, é muito limitante. Eu entendo a capoeira como filosofia de vida. E assim ela é luta, tem um elemento que é a dança e também tem o elemento da arte, da cultura. Mas a capoeira é muito mais profunda do que isso. A partir do pensamento do Mestre Pastinha, a capoeira é uma forma de você buscar equilíbrio para sobreviver nessa sociedade que é opressora, que é machista, que é racista, que é fascista. E a capoeira surge como resistência a essa opressão. O Mestre Pastinha dizia que a capoeira é mandinga de escravo e ânsia por liberdade".
Simone Gomes da Silva, que conheceu a capoeira enquanto procurava um grupo para que seu filho pudesse participar das aulas, compõe o Semente do Jogo de Angola há 20 anos. Para ela a capoeira significa um encontro ancestral e um equilíbrio na vida.
"Quando a gente descobre a capoeira, a gente descobre também que ela é muita coisa. Ela traz um encontro pra mim mesma com meus antepassados, com a minha ancestralidade e hoje é a busca de quem eu sou, de onde eu venho, pra onde eu vou, do meu equilíbrio, do meu emocional, da minha mente, do meu corpo, da minha alma. Ela é um conjunto de tudo. Para mim, a capoeira é um complemento da minha vida. Eu não vivo sem ela".
Simone relatou que o grupo realiza semanalmente diversas atividades na sede situada no Grajaú, chamada Casa Cazuá.
Dentre as atividades estão os treinos de capoeira, as aulas de musicalidade e também os seminários formativos. Para ela, é muito importante que os capoeiristas aprendam a complexidade de todas as atividades, pois elas se complementam.
Durante a entrevista a capoeirista também fez questão de frisar a importância das mulheres serem praticantes da capoeira como uma forma de resistência e expressão.
"Foi difícil chegar até aqui. A capoeira vem de um movimento machista, e de um tempo pra cá ela foi se abrindo para as mulheres estarem se movimentando dentro dela. É uma forma de resistência, uma forma da gente se expressar, é uma forma da gente mostrar que a gente tá aqui também, que a gente pode, a gente consegue".
Desafios na valorização
Tanto para Alan quanto para Simone, um dos principais desafios atuais da capoeira no Brasil é o reconhecimento dos mestres e a valorização da prática.
O contramestre conta que são muitos os casos em que os mestres mais idosos chegam ao fim da vida sem nenhum reconhecimento, ao mesmo tempo em que são eles os principais responsáveis por manter viva e passar adiante a ancestralidade da capoeira.
"A gente tem grandes mestres da capoeira com um conhecimento gigantesco, que nesse mundo cada vez mais midiático e imediatista, são colocados de lado ou são usados por personalidades só pra tirar uma foto. Nem sempre eles tem espaço de fala, espaço pra poder passar o conteúdo que eles tem pra passar".
Mesmo reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco e como Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), durante a entrevista com o grupo Semente do Jogo de Angola, os desafios quanto a um real reconhecimento da capoeira ficaram muito nítidos.
Realizamos a gravação deste Mosaico Cultural no dia 3 de agosto, dia em que o estado de São Paulo reconhece como Dia do Capoeirista. Entretanto, nenhum dos capoeiristas do grupo sabia da existência da data comemorativa e muito menos o motivo pela escolha do dia 3 de agosto.
Ao ser perguntado sobre a importância desse reconhecimento, Alan critica e aponta algumas das contradições do sistema.
"Pra que serve o Dia do Capoeirista se os mestres estão aí, jogados à míngua? Que interesse o Estado tem em ter o Dia Nacional da Capoeira? Em ter o Dia Estadual da Capoeira? Que interesse o Estado teve, lá na década de 1930, de tirar a capoeira do Código Penal? Assim como que interesses ele tinha em colocar no Código Penal? O que eu vejo é que essas datas não nos representam na prática, não são reonhecimentos realmente positivos pra capoeira e pra nós enquanto capoeiristas".
Na visão de Alan, "o sistema se organiza para cooptar as manifestações culturais quando vê que não consegue vencer uma resistência cultural. Isso aconteceu com a música sertaneja, isso aconteceu com as manifestações populares como um todo e acontece também com a capoeira.
Ancestralidade viva
Mais do que um jogo, mais do que uma luta, mais do que uma dança, a Capoeira de Angola é olhar de mundo, é ancestralidade viva vinda da África e resistência que fortaleceu as lutas por liberdade no Brasil. A Capoeira de Angola é memória que resiste e que é passada de geração em geração em cada ação prática e tradição contada.
Nas palavras de Alan, a capoeira está vivendo um momento delicado hoje porque tem muita gente se apropriando dela neste lugar de querer aproveitar somente o seu lado estético, físico ou musical. Entretanto, ele reafirma a importância da essência que move os capoeiristas e que os diferencia e fortalece para resistir aos problemas sociais.
Para o contramestre, a capoeira precisa ser menos violenta e mais perigosa.
"A capoeira precisa ser menos violenta e mais perigosa. E quando eu digo isso é porque o perigo existe, a sociedade é perigosa e a gente precisa se preparar para o perigo. Os mestres mais velhos sempre falam que a capoeira é um mundo pequeno que prepara a gente para o grande mundo que é a vida. A gente, aqui, tem que se preparar pra lidar com o enfrentamento com a gente mesmo, com o enfrentamento com o outro, pra que quando a gente estiver no mundo maior, que é esse mundão louco que a gente vive, a gente tá mais plantado, a gente tá mais seguro, a gente tá preparado pra lidar com a violência policial, com a violência da própria comunidade, que já é oprimida e acaba respondendo com violência. A gente tem que tá preparado pra lidar com a vida e a capoeira ajuda a gente nisso".
Edição: Thalita Pires