Nos últimos dias, uma série de artigos na grande mídia ocidental demonstrou claramente a preocupação das potências ocidentais com o possível crescimento do Brics, ao qual mais de 20 países querem se juntar.
A agência de notícias Reuters, citando fontes anônimas do Itamaraty, disse que Brasília se oporia à expansão. Em outro artigo, afirmou que Modi não participaria da cúpula. Alguns dias após o artigo da Reuters, o presidente brasileiro Lula convocou uma coletiva de imprensa internacional e foi enfático ao reafirmar sua posição a favor da expansão. O chanceler da Índia, S. Jaishankar, também veio a público para negar a especulação sobre a não participação de Modi e confirmar a posição da Índia, favorável à expansão do grupo.
Outro artigo da Reuters vai ainda mais longe, propondo de forma arrogante que o Brasil, a Índia e a África do Sul abandonem o BRICS e formem outro bloco, alegando que a associação com um "país quase pária" como a Rússia e uma China agressiva seria prejudicial aos seus interesses. Por mais que os líderes do Brics tenham insistido que o grupo não é "anti-G7", parece que a mídia do G7 é anti-Brics. Artigos na revista britânica The Economist e na Foreign Policy tentam desqualificar o grupo e apostam em seu fracasso.
A preocupação das potências ocidentais, entretanto, é compreensível. Afinal, elas sabem que o peso econômico do Brics não para de crescer e pode começar a ameaçar sua hegemonia global, que parecia indestrutível após o fim da Guerra Fria. Hoje, o PIB em poder de paridade de compra do BRICS já ultrapassa o do G7.
De acordo com o FMI, até 2028 essa diferença deve aumentar para 33,7% contra 27,8%. Com a expansão esperada do grupo, sua vantagem será ainda maior. De forma mais significativa, desde o início do conflito na Ucrânia, o Sul Global vive uma nova onda de questionamentos sobre a posição privilegiada do "Ocidente coletivo" e a hipocrisia de sua "ordem internacional baseada em regras", em uma espécie de renascimento do "espírito de Bandung".
O presidente da Indonésia, Joko Widodo, convocou seus cidadãos a pararem de usar os cartões de crédito Visa e Mastercard ("vejam o que eles fizeram com a Rússia!"), enquanto implementa uma estratégia de desenvolvimento nacional baseada na modernização de suas empresas estatais, parcialmente inspirada na experiência chinesa. A Indonésia é candidata a membro do Brics.
Enquanto isso, a Arábia Saudita, íntima aliada de Washington durante décadas, está sinalizando a possibilidade de vender petróleo em na moeda chinesa, o yuan, para seu maior comprador, a China, ameaçando um dos pilares da dominação financeira dos EUA (o petrodólar), ao mesmo tempo em que busca diversificar sua economia para além do "ouro negro", contando com a parceria estratégica de Pequim para garantir a importação de tecnologia e infraestrutura com base em sua "Visão 2030". A Arábia Saudita também é candidata a membro do Brics.
O presidente Lula tem questionado a hegemonia do dólar no comércio internacional e propõe a criação de uma nova moeda de reserva do Brics, enquanto o jovem presidente de Burkina Faso, Ibrahim Traoré, enfatiza a urgência de um plano para industrializar o ouro e o tomate em seu país, que não quer mais apenas exportar matérias-primas para os países ricos. Nitidamente inspirado em seu conterrâneo marxista Thomas Sankara, Traoré é um jovem líder popular na região do Sahel, na África, onde os golpes militares dos últimos anos contaram com o apoio da população - que queima bandeiras francesas e tremula as russas -, insatisfeita com a cumplicidade da elite local ao esquema neocolonial de Paris.
Em todo o Sul Global, de leste a oeste, estão crescendo as demandas por industrialização, desdolarização, acesso a tecnologias, transição energética, preservação ambiental, soberania nacional e fortalecimento de plataformas regionais multilaterais. Se os Brics forem capazes de oferecer soluções concretas para algumas dessas demandas, eles poderão liderar essa onda geopolítica e se consolidar como uma alternativa para o novo ciclo de desenvolvimento desejado pela "maioria global". No entanto, há alguns desafios que eles devem enfrentar.
Como garantir que a expansão necessária do grupo mantenha sua unidade e sua capacidade de elaborar estratégias consensuais e, igualmente importante, não deixe a porta aberta para a infiltração de interesses externos?
Como fortalecer o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), que ainda está aquém de seu enorme potencial? Além de aumentar sua capacidade de captação de recursos (apenas US$ 32,8 bilhões em 8 anos), o NBD poderia se tornar um instrumento de elaboração de políticas de desenvolvimento para o Sul - como, por exemplo, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) nos anos 50 e 60?
Como usar seu fundo monetário de US$ 100 bilhões (o Acordo de Reserva Contingente, ARC, ainda intocado) para socorrer países em crise de reservas internacionais (por exemplo, Argentina, Gana, Paquistão, Sri Lanka, Bangladesh), servindo de alternativa às "armadilhas da dívida" do FMI, que impõem medidas de austeridade como condição para conceder empréstimos, devastando economias nacionais há décadas.
Como construir uma estratégia para criar alternativas ao uso do dólar, associando o incentivo ao uso de moedas locais no comércio global - que tem seus limites - à criação de uma moeda de reserva, que tampouco é fácil de implementar?
Como a cooperação e a transferência de tecnologia poderiam apoiar a reindustrialização de países como o Brasil e a África do Sul, especialmente em setores estratégicos como biotecnologia, TI, IA, energias renováveis, veículos elétricos, refino local de matérias-primas (como lítio, cobalto etc.), entre outras iniciativas? Ao mesmo tempo, como combater a pobreza e a desigualdade e alcançar outras demandas básicas dos povos do Sul?
Como o Brics poderia se tornar uma ferramenta para fortalecer as plataformas regionais (UNASUL, CELAC, União Africana, ASEAN e União Econômica Euroasiática), por meio das quais teriam escala suficiente para um projeto sólido de desenvolvimento e para mudar sua relação de forças com o Norte Global?
Há exatos 10 anos, os Brics se reuniram em Durban, também na África do Sul, em uma cúpula histórica onde foi decidida a criação do Novo Banco de Desenvolvimento e do Acordo de Reserva Contingente, as instituições mais importantes já criadas pelo grupo. Por coincidência do destino, a África do Sul é mais uma vez o local daquela que é a cúpula mais aguardada da história do Brics e que pode aumentar a influência econômica e política do grupo. Será que Xi, Putin, Modi, Lula, Ramaphosa e Dilma serão capazes de responder aos desafios impostos pelas "mudanças inéditas em um século"? Os povos do Sul aguardam ansiosamente as resposta a essas perguntas.
* Marco Fernandes é pesquisador do InstitutoTricontinental de Pesquisa Social, Co-fundador do Dongsheng. Bacharel e Mestre em História, Doutor em Psicologia Social, pela Universidade de São Paulo
** As opiniões contidas nesse artigo não representam necessariamente as posições do Brasil de Fato
Edição: Rodrigo Durão Coelho