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O que a Teoria Marxista da Dependência tem a nos ensinar?

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No Brasil, 83% das exportações do agronegócio giram em torno de apenas cinco complexos agroindustriais: soja, carnes, celulose e produtos florestais, sucroalcooleiro e café - Ministério da Agricultura
Ao mostrar a dialética entre dependência e superexploração encontramos as sementes da transformação

O enfrentamento das desigualdades sociais nos países da periferia do capitalismo globalizado ainda é tema atual, apesar de todo o desenvolvimento das forças produtivas atingido. O capitalismo, ao contrário de suas promessas, não resolveu as condições de pobreza e fome de um enorme contingente da população. O que observamos de fato é um aumento acelerado da concentração de riquezas no mundo. Dados da Oxfam indicam que 1% dos mais ricos no mundo se apropriaram de mais de dois terços de toda riqueza produzida desde 2020. Isso leva a questionar a relação entre o capitalismo e a questão social. 

Várias análises latino-americanas buscaram entender essa questão sobre a dinâmica do capitalismo após a 2ª Guerra Mundial e as tendências de ampliar as desigualdades, juntamente com o estabelecimento de regimes ditatoriais, antidemocráticos e fascistas na América Latina. Destacamos os estudos de Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra na elaboração da Teoria Marxista da Dependência (TMD). A crise capitalista global teve efeitos específicos nos países da periferia do sistema, com expressões reforçadas pelo estabelecimento de regimes de extrema direita e antidemocráticos. Estes atuaram para o aprofundamento da superexploração da força de trabalho, da expropriação das terras camponesas e da depredação dos recursos naturais. Apesar das primeiras análises da TMD se inserirem no contexto dos anos 1960 e 1970, ela ainda tem muito a contribuir para compreender governos de extrema direita do século 21, como o de Jair Bolsonaro no Brasil. A notícia recente da vitória do candidato de extrema direita, Javier Milei, nas prévias das eleições na Argentina reforça estas ideias. 

Compreendemos a TMD como um método genuíno de compreensão da dinâmica capitalista na América Latina a partir da teoria do valor de Marx. Assim, continua atual desde que as leis essenciais que regem este modo de produção permanecem vigentes enquanto vivermos na sociedade capitalista. Seus desdobramentos na atual forma de globalização comercial, produtiva e financeira constituem focos dos estudos recentes da TMD, como buscamos expor no Dossiê nº 67 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (2023), Dependência e superexploração: a relação entre o capital estrangeiro e as lutas sociais na América Latina, lançado no começo do mês de agosto. 

Com o aumento da participação das empresas transnacionais e dos capitais internacionais após a abertura econômica e desregulamentação dos mercados no contexto neoliberal, a TMD possibilita compreender como o capital financeiro passa ao centro do novo padrão de acumulação de riquezas na transição ao século 21. Após o consenso de Washington em 1999 e o estabelecimento do ideário neoliberal no plano internacional, vivenciamos a concepção de Estado Mínimo, que de mínimo se expressa acima de tudo em cortes profundos nos gastos sociais nos países da periferia, em detrimento das necessidades da maioria da população. Na prática, o desmonte do Estado de Bem Estar Social na Europa se expressou como desmonte do Estado Democrático de Direitos no continente latino-americano.

Ao expor as contradições do capitalismo dependente, a TMD também apresenta possibilidades de processos de emancipação social. Ao mostrar a essência da relação dialética entre a dependência e a superexploração na América Latina, e no Sul Global em geral, encontramos as sementes da transformação. É no desenvolvimento combinado e desigual do capitalismo global que o crescimento econômico é sustentado em baixos salários, condições precárias de trabalho e ausência de direitos trabalhistas. Este é o mecanismo essencial para garantir a maximização dos lucros das classes dominantes dos países dependentes e, ao mesmo tempo, a drenagem de riquezas aos países centrais do capitalismo como um todo. 
  
Por meio das empresas transnacionais e grandes corporações, a superexploração da força de trabalho no Sul Global alimenta a acumulação de riquezas nos países do Norte Global, sobretudo os Estados Unidos e Europa. A crítica da TMD é, portanto, estrutural e radicalmente anti-imperialista. O conceito de superexploração de Marini (2005) nos dá uma chave de compreensão da expressão do processo de produção, acumulação e apropriação da riqueza capitalista historicamente determinada no continente. A mudança qualitativa na relação social de produção na América Latina explica como o rompimento do ciclo de realização do capital nestas economias, com sua especialização primário-exportadora, abre espaço para a composição de um mecanismo próprio de extração de mais-valia. Este, com o aumento e a intensificação da jornada de trabalho, estabelece como padrão o pagamento da força de trabalho aquém do seu valor.

Ao tornar mais complexas as cadeias globais de valor, este mecanismo de extração de mais-valia também se complexifica com a ampliação global do exército industrial de reserva. A continuidade da expropriação de terras camponesas, êxodo rural, terceirizações e precarização do trabalho nas economias dependentes aprofundam a superexploração, a questão agrária e a luta de classes nestes países. Com a crise financeira global de 2008, na busca por lucros e rendas especulativas, as transnacionais dos setores agrícolas e minerais passam a adquirir e se fundir com empresas dos complexos agro-alimentares e grandes fundos de investimentos, avançando na compra de ativos físicos e terras nos países dependentes. A política agrícola nestes países reforça a prioridade de recursos aos setores primário exportadores, aprofundando o ciclo de dependência e superexploração. 

No Brasil, 83% das exportações do agronegócio giram em torno de apenas cinco complexos agroindustriais: soja, carnes, celulose e produtos florestais, sucroalcooleiro e café. Após 2012, foi registrado o aumento de 2,9 milhões de hectares de terras adquiridas por empresas estrangeiras no Brasil. Destas, 65,4% foram do agronegócio, 30,9% do setor financeiro, sendo 35,4% de origem nos EUA. A análise a partir da TMD apresentada por Moreira e Mendonça (2022)** evidencia o desdobramento das relações de dependência sobre as terras e recursos naturais na América Latina sob a hegemonia do sistema financeiro. Destacam o setor de celulose e produtos florestais como o que mais adquiriu propriedades no Brasil entre 2013 e 2018, ampliando a drenagem de riqueza aos países sede por meio de remessas diretas de lucros e dividendos. Neste sentido, a luta pela reforma agrária ganha um caráter de luta contra as relações de dependência e superexploração. Assim como a TMD ganha relevância como instrumento de reflexão da ação contra os avanços do capital financeiro em crise sobre nossos territórios.

*Por Renata Couto Moreira, professora do Departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

**MOREIRA, R. C.; MENDONÇA, L. J. (org.) Dependência, questão agrária e mudanças sociais na América Latina. SP: Expressão Popular, 2022. 

Edição: Thalita Pires