Ameaçada desde 2018 por causa de sua luta em defesa dos direitos dos povos indígenas e proteção da floresta amazônica, Auricélia dos Anjos Fonseca, mais conhecida como Auricélia Arapiuns, 36 anos, recebeu “recados” para cuidar da segurança após declarar em um vídeo que o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), “está com as mãos sujas de sangue”, durante discurso no dia 7 de agosto, na Assembleia dos Povos da Terra pela Amazônia, realizada na Aldeia Cabana David Miguel, em Belém. O evento antecedeu a Cúpula da Amazônia, realizada na capital paraense, reunindo líderes de países amazônicos, e serviu como preparação para a COP-30, em 2025. Logo no início de seu mandato, Lula anunciou a candidatura do Brasil para a conferência do clima e indicou Belém como cidade-sede.
“Recebi um recado para redobrar os cuidados com a segurança”, diz Auricélia em entrevista exclusiva à agência Amazônia Real. Sua fala questionando a política ambiental e de direitos humanos do governador viralizou nas redes sociais.
“A gente se expõe para poder dar voz ao povo e isso tem consequências. Recebi mensagens de gente dizendo que eu tinha coragem, mas que eu precisava tomar muito cuidado”, afirma a líder, sem revelar os nomes de quem enviou as mensagens. Ela disse que está sendo atacada nas redes sociais por correligionários de Barbalho e de bolsonaristas que se aproveitam de sua fala para desqualificar o governo.
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Auricélia Arapiuns foi uma das mais de 800 pessoas indígenas que participaram dos eventos em Belém representando mais de 200 povos do Brasil e de outros países. Entre os dias 8 e 9, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que teve apoio do governador Helder Barbalho nas eleições de 2002, esteve na capital paraense durante a Cúpula da Amazônia.
Nascida na aldeia São Pedro do Muruci, que fica na Terra Indígena Preta, na Resex Tapajós Arapiuns, município de Santarém, na região oeste do Pará, Auricélia Arapiuns é mãe de três meninos e de uma menina. Concilia a maternidade, a graduação em Direito, na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), e a liderança que exerce.
É presidenta do Conselho Deliberativo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), representante do Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNEGATI) e coordenadora do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA).
Começou a atuar no movimento indígena na adolescência e já enfrentou questões como criminalização dentro da universidade. “Estou terminando neste semestre o curso de Direito, com muita expectativa de que consigo estudar para além da graduação e, também, na perspectiva do fortalecimento da advocacia indígena na região. O próximo passo agora é passar na OAB”, diz.
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Integrante do CITA desde 2018, que representa sociopoliticamente 14 povos da região Baixo Rio Tapajós, no Pará, ela já fez várias intervenções coletivas, acompanhada de outros integrantes do movimento indígena, da juventude fortalecida e do movimento das mulheres indígenas. “A gente faz essa luta por política pública por ser um direito de fato, então, avançamos muito enquanto organização de 14 povos indígenas em políticas públicas, pela defesa do território, com a perspectiva de conseguirmos homologação de outras terras indígenas, como Taquara, que já está em andamento no Ministério da Justiça”.
Auricélia afirma que a “Carta de Belém” dos oito presidentes da Pan-Amazônia, apresentada durante a Cúpula da Amazônia, foi frustrante. “Eles não estão se entendendo. Há muitos pontos fracos e divergentes. Inclusive, no dia 9, que foi o Dia Internacional dos Povos Indígenas, a nossa expectativa era que saíssem mais homologações e portarias, mas mais uma vez o governo não fez. E hoje a gente continua, mais uma vez, olhando para eles e vendo que não é possível discutir sobre nós sem nós”.
A líder defende o fortalecimento de políticas públicas para os povos da floresta, que os indígenas sejam ouvidos, inclusive sobre o crédito de carbono e lembra que são esses povos os protetores da Amazônia. “Isso é um desafio muito grande, mas a gente está com esperanças de que vamos conseguir avançar no diálogo sobre as políticas públicas, para que elas saiam do papel, para que possamos estar inclusos em tudo. Nada mais sobre nós, sem nós”.
Leia a entrevista de Auricélia Arapiuns:
Amazônia Real – Qual motivação você teve para fazer a denúncia, durante o discurso na Assembleia da Terra dos Povos Indígenas? A região na qual está o seu povo sofre com impactos sociais e ambientais de grandes projetos?
Auricélia Arapiuns – Bom, primeiro que eu sou do oeste do Pará, de Santarém, uma região muito esquecida, que parece que não está incluída no Estado do Pará. Ela têm muitos problemas, principalmente os ambientais, que se concentram nessa área por ser do Baixo Tapajós, onde tem os portos do agronegócio, como o Porto da Cargill, em Santarém, que estava funcionando irregularmente, com autorização da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS), que autoriza a saída de madeiras da região, onde todos os dias saem balsas e mais balsas, transportando madeira pelo Rio Arapiuns. É a região onde, além do agronegócio, há a ameaça do hidronegócio, da mineração e do garimpo. Onde o rio Tapajós está contaminado por mercúrio e as pessoas também. E é uma região que não tem apoio. Não tem uma política pública de saúde para lidar com essas questões complexas que a gente vive hoje. Então, a motivação é toda essa nossa indignação.
O que exatamente você quer dizer quando afirma que o governador do Pará “está com as mãos sujas de sangue”?
A família Barbalho é uma das famílias políticas mais tradicionais do Pará. Pai senador, mãe deputada… então, só vão trocando de cargos. O irmão (Jader Barbalho Filho) é ministro (das Cidades). É como se essa família fosse a dona do Pará. Eles fizeram muita destruição, durante muito tempo! Inclusive, com o latifúndio. Quem não conhece Jader Barbalho? E agora o governador Helder me soa muito estranho vir com essa política de desenvolvimento sustentável, mas que, na verdade, é por conta de tudo que o que a gente vem discutindo, ao longo do tempo, sobre a crise climática que a gente vive. Então, quando eu falei que ele estava com as mãos sujas de sangue, é por conta de todo esse histórico de violência que as populações tradicionais, o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), o MAB (Movimentos dos Atingidos por Barragens), etc, vem passando. Quantos defensores e defensoras de direitos humanos já foram assassinados? Quanto sangue já não foi derramado dos povos indígenas? E não é apenas pela forma que matam as lideranças, mas o nosso povo está morrendo contaminado pelo mercúrio, pelos agrotóxicos, com um índice muito alto de câncer. Então, quando o governo do Pará se esquiva do atendimento à saúde de forma efetiva, quando nós não temos vagas no hospital regional do Baixo Amazonas para fazer cirurgias em diversos tipos de câncer,; quando a gente passa um ano pra ter uma consulta médica e, quando vem o diagnóstico, já estamos morrendo, quando não tivemos nem a oportunidade de ter um tratamento digno, como se não fizéssemos parte deste estado, ele está nos matando. Eu não sei se para Belém, se para as outras regiões do Pará, tem um atendimento adequado, mas eu estou falando daqui por conta de todos os impactos que a gente vem sofrendo. Além das mortes de defensores de direitos humanos, das ameaças, das criminalizações, das intimidações, tem as mãos sujas de sangue sim, porque se esquiva de fazer uma política pública de qualidade para resolver a questão do garimpo ilegal, do desmatamento, para resolver a questão do agrotóxico, para solucionar a saúde pública. Nós estamos sendo mortos quando os governos não fazem o seu papel!
Você recebeu alguma ameaça após essas declarações?
Já vendo sendo ameaçada desde 2018 por defender o direito a consulta pública aos povos indígenas e após a CITA entrar com uma ação pública, que suspendeu o plano de manejo madeireiro na Resex [Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns]. [Após a fala nos eventos em Belém] Recebi mensagens para eu redobrar os cuidados com a segurança. A gente se expõe para poder dar voz ao povo e isso tem consequências. Recebi mensagens de gente dizendo que eu tinha coragem, mas que eu precisava tomar muito cuidado. Minha fala foi divulgada em vários site, blogs de bolsonaristas, inclusive de políticos, que usam a minha fala a favor deles. Estou bem preocupada com isso, mas não registrei ainda o Boletim de Ocorrência.
Você acredita que as pautas dos povos indígenas são respeitadas pelo governo Lula? Quais desafios ainda precisam ser enfrentados para que isso aconteça?
Nós resistimos bravamente a um governo genocida, que tentou nos dizimar, nos desestabilizar, que tentou nos dividir e nós saímos desse governo e chegamos ao governo Lula. Não que o Lula seja bonzinho. Isso é reivindicação do movimento indígena. É uma reivindicação das nossas lideranças, das nossas organizações, com muita discussão, buscaram o retorno da política indigenista. E a gente já sente que melhorou, mas estamos aguardando ainda mais demarcações que foram prometidas. Estamos aguardando mais portarias declaratórias das nossas terras indígenas, já que se passaram mais de cem primeiros dias do governo. Então, a gente já está no oitavo mês de governo e apenas seis terras indígenas foram homologadas. Isso é muito? É para quem não tinha nenhuma terra homologada, durante os últimos quatro anos. Aí a gente consegue isso no governo Lula, mas é direito nosso. O governo não está fazendo um favor para nós. E a gente vai continuar cobrando para que se efetive o discurso, para que, o que está nas teorias, aconteça na prática.
E qual a sua opinião sobre a atuação do Ministério dos Povos Originários? E quanto a atual gestão da Funai?
Eu acredito que estamos em construção, retomando a discussão da política indigenista no Brasil, com o retorno da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNEGATI). É a primeira vez que a gente tem, depois de 523 anos, um Ministério dos Povos Indígenas, uma Funai ocupada por uma indígena, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) ocupada por indígena e as secretarias estaduais, que estão sendo criadas, também ocupadas por indígenas. Isso mostra a força do movimento indígena. Isso mostra que nós, enquanto indígenas, fomos nos preparar para ocupar esses lugares. E hoje nós estamos preparados. Hoje sabemos fazer administração, fazer gestão, estamos preparados para ocupar esses cargos e ajudar o governo, porque nós sabemos fazer gestão, soubemos governar. Estamos prontos para, de fato, ajudar o Brasil a se envolver nas nossas pautas.
Qual a sua opinião sobre a Secretaria dos Povos Indígenas do Estado do Pará?
O governo do Pará criou essa secretaria, ainda sem estrutura. Os parentes estão lá, ainda com muita garra, mas tem que ter diálogo. Precisam conversar com a gente. Temos que conhecer qual é essa estrutura dessa secretaria, que precisa abranger todas as regiões do estado. Somos mais de 40 povos indígenas no Pará e todos necessitam de assistência, demandam que as políticas públicas cheguem nestas regiões.
Quais desafios você enfrenta como coordenadora do CITA, representante do PNEGATI e da Coiab?
São muitos os desafios. A pauta ambiental é muito complexa, assim como as mudanças climáticas. Precisamos conversar, precisamos ser escutados. O nosso direito à consulta livre, prévia e informada, precisa ser respeitado. Vamos continuar na luta, com diversas estratégias do movimento indígena. Hoje, no movimento indígena, e eu falo enquanto Amazônia, enquanto Coiab, estamos vendo que as nossas estratégias têm dado certo. Quando ocupamos as universidades, quando a gente começou a se formar como advogados, comunicadores, professores, ocupando as diversas áreas de atuação, conseguimos criar várias estratégias de enfrentamento. Por que nós saímos de uma pandemia? Por que nós chegamos onde estamos hoje? O movimento indígena foi o primeiro a se organizar e o que mais enfrentou o governo Bolsonaro, que achava que iria acabar com o nosso movimento. E ele fez várias tentativas disso. Inclusive causando divisões, tentando cooptar lideranças, mas nós chegamos organizados, fortalecidos. Sabe por quê? Porque fomos nós os primeiros a fazer um enfrentamento quando o branco chegou aqui. Quando o branco invadiu, já estávamos, há muito tempo, acostumados a fazer resistência. Não que a gente precise se acostumar com isso, mas fazer enfrentamento, fazer mobilização, ir para luta, é com os povos indígenas.