POVOS ORIGINÁRIOS

'Assédio do agronegócio é o maior desafio para as comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul', diz liderança da CPT

Ataques e assassinatos, fome e doenças são algumas das violências sofridas pelos Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Espremidos pelo agro: área da retomada Laranjeira Nhanderú ao lado de fazenda com plantio de milho - Foto: Alexandre Garcia

Confinados em pequenas reservas criadas no tempo da ditadura militar, circundados por uma imensidão de fazendas onde se perde de vista o fim dos monocultivos de milho ou soja, o povo indígena Guarani Kaiowá sobrevive sob os mais diferentes tipos de violência. Segundo maior povo indígena do país, com cerca de 50 mil habitantes no Mato Grosso do Sul (MS), os Guarani Kaiowá aguardam há décadas pela demarcação de terras, enfrentando fome, doenças, intoxicações por agrotóxico, destruição de plantações, ameaças e ataques violentos que muitas vezes acabam em assassinatos. Situações já denunciadas à ONU.

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Impedidos de manter seu modo de vida tradicional, com acesso à natureza e espaço para desenvolver sua soberania alimentar e espiritualidade, os Guarani Kaiowá partiram para a estratégia de retomada de seus territórios subtraídos. Em 2005, conquistaram a terra indígena Nhanderu Marangatu, de 9.300 hectares. Não demorou muito e a demarcação feita pelo governo Lula foi anulada pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim. Os mais de mil indígenas que vivam no local foram expulsos e passaram a viver em beiras de estrada.

O conflito foi parar na Justiça e, em 2007, o Ministério Público Federal (MPF) firmou um termo de ajustamento de conduta (TAC) com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Entre as obrigações estava a entrega de relatórios de identificação e delimitação de 25 terras indígenas no estado, ocupando uma área de 224 mil hectares, o que não chega a 3% do território do MS. Os estudos deveriam ter sido entregues em 2009, mas até agora não saíram do papel.

Em 2011, a Aty Guasu, a Grande Assembleia de reuniões das lideranças indígenas, decidiu reocupar territórios previstos para demarcação no TAC. Desde então, a violência segue uma escalada, tendo seu ápice durante o governo Bolsonaro. Da parte do estado, foram efetuados diversas expulsões sem mandados de reintegração de posse, inclusive com morte, como no caso do episódio conhecido como Massacre de Guapoy.

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Houve também o recrudescimento do ataque às retomadas por pistoleiros, a mando de fazendeiros. O Relatório de Violência contra os Povos Indígenas do Brasil de 2022 aponta 146 assassinatos no MS de indígenas entre os anos de 2019 e 2022.

Recentemente, no dia 14 de agosto, ocorreu mais um ataque ao povo Guarani Kaiowá. Por dias, os indígenas da retomada Avae’te, na cidade de Dourados (MS), denunciaram estarem sob ataque de pistoleiros, que incendiaram suas casas e destruíram suas roças. O caso não é isolado: também neste ano, sob escolta policial com direito a helicópteros, a comunidade da retomada Kurupi, que vive às margens de BR-163, no município de Naviraí, foi vítima de ataques, que resultaram em destruição de barracos e casa de reza.

Já no dia 18 de agosto, a Polícia Civil prendeu o cacique Valdir Martins, da retomada Kurupi. Ele foi preso acusado de assassinar um homem em 2009. Segundo os indígenas, trata-se de mais uma prisão de lideranças da região sob falsa acusação, outra situação corriqueira na região.

Em meio a isso tudo, os territórios indígenas resistem com risco de vida, na busca por soberania alimentar - um espaço para plantar suas sementes e alimentar seu povo. Desassistidos, sem apoio do poder público por sua “situação ilegal”, enfrentando ainda o assédio do agronegócio.

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Conforme afirma o Cimi, são diversas as pressões de fazendeiros para que os indígenas arrendem suas terras para o plantio de monocultivos. A prática, destaca a entidade, é ilegal e inconstitucional, “vulnerabiliza as fronteiras das reservas e terras indígenas e acaba absorvendo outras ilegalidades como o tráfico de drogas, de armas e até exploração sexual de crianças e adolescentes”.

A reportagem do Brasil de Fato RS esteve em algumas retomadas do MS, em julho, acompanhando a entrega de sementes crioulas e mudas aos Guarani Kaiowá, parte do projeto Sementes de Solidariedade. Na ocasião, durante visita à retomada Laranjeira Nhenderú, conversou com o dirigente da Comissão Pastoral da Terra no MS, Valdevino Santiago. Nesta entrevista, ele comenta alguns dos principais desafios enfrentados pela população Guarani Kaiowá.


Valdevino Santiago: "As comunidades veem o Estado que deveria protegê-las violentando-as também, agredindo junto com o latifúndio" / Foto: Alexandre Garcia

Brasil de Fato RS - A CPT realiza um trabalho de monitoramento da questão da violência no campo. Esta região é de extremo conflito embora até um pouco sem visibilidade no contexto nacional se comparado, por exemplo, com o que sofre o povo Yanomami. O que está ocorrendo aqui com os Kaiowá?

Valdevino Santiago - A Comissão Pastoral da Terra, todos os anos, lança o Caderno de Conflitos no Campo. Preventivamente a gente faz também uma campanha contra a violência no campo visando orientar as comunidades a se protegerem.

Primeiro tem uma violência institucionalizada, que é a forma de opressão, a forma de discriminação, que é uma coisa velada. E também tem a forma explícita, ou seja, a violência física, o assassinato, o envenenamento...

O agrotóxico é uma forma terrível de violência contra as comunidades indígenas

Temos também a Campanha Nacional contra os Agrotóxicos. O agrotóxico é uma forma terrível de violência contra as comunidades indígenas, porque envenena as águas, as nascentes, os rios, as plantações. Em várias comunidades já identificamos que as plantas, principalmente as frutíferas, deixaram de produzir por efeito do veneno, principalmente por causa da pulverização aérea, que tem um efeito muito devastador e abrange uma área muito grande.

Causa o aborto das frutíferas e as comunidades ficam inviabilizadas. E também tem casos de seca nas hortas e pequenas lavouras.

Então, temos aquela violência que ganha destaque na imprensa por conta dos assassinatos, mas temos uma violência de uma dimensão muito grande que não tem visibilidade.

Houve um recrudescimento da violência praticada por parte do agronegócio no governo Bolsonaro?

Nesse período, se você for ver do ponto de vista dos números frios, você não percebe esse aumento em termos de estatística. No entanto, o grau dessa violência foi muito maior devido à situação de isolamento das comunidades.

Foi uma violência muito mais cruel. De um lado, as entidades de apoios, parceiros, tiveram, por conta da pandemia, dificuldade de acesso às comunidades. E também de dificuldade dessas comunidades saírem para denunciar e buscar apoio.

A polícia, que tem a função de proteger o cidadão, muitas vezes faz parte da violência

Então, houve, sem dúvida, um grande aumento da violência. Aqui, no estado de Mato Grosso, do Sul, o governo basicamente é parte do agronegócio. A maioria dos prefeitos, o próprio governador, representam esse setor. A própria polícia, por exemplo, que tem a função constitucional de proteger o cidadão, muitas vezes é usada para reprimir, para matar, em conluio com os jagunços, com os latifundiários que organizam esses ataques. A polícia faz parte da violência.

Estivemos na retomada Kurupi, onde nos relataram que a polícia chegou e, ao invés de conter o ataque dos jagunços, somou-se a eles para derrubar os barracos dos indígenas...

Não só no Kurupi, mas em outras situações também, a polícia já foi vista junto a pistoleiros - que aqui chamam de ´segurança privada`. Muitas vezes vai junto com essa segurança privada, ou seja, aí as comunidades veem o Estado que deveria protegê-las violentando-as também, agredindo junto com o latifúndio.

Há essa questão da dificuldade de acesso à soberania alimentar dos Kaiowá. E na pandemia, sob o governo Bolsonaro, houve um corte de cestas básicas para quem vive em retomadas. Como está essa questão da fome?

É um drama entre os povos Guarani e Kaiowá. Principalmente, por conta do aldeamento, do confinamento em pequenas áreas, e toda a problemática também do entorno da pressão do agronegócio contra essas comunidades, oprimindo e dificultando cada vez mais a produção.

Na pandemia, os governos federal e estadual deixaram de atender as áreas de retomada

Durante a pandemia, principalmente nas áreas de retomada, que é onde a gente está, foi demandado um trabalho mais efetivo de produção de alimentos. Então, houve uma determinação do governo federal, do governo do estado e também das prefeituras, de não atender as áreas de retomada, por considerarem áreas de conflito. E a gente, muitas vezes questionando certas autoridades, elas argumentaram: ´Nós, enquanto autoridades, temos que cumprir a lei e, portanto, não podemos mandar nenhum benefício para uma área de retomada, porque a sociedade entende que estamos, dessa forma, apoiando uma coisa ilegal`.

As autoridades veem pelo legalismo e não pela questão humanitária e da justiça social, do direito amplo, da sobrevivência das comunidades que foram violentadas. Quando há uma retomada houve uma violência (anterior). Houve a retirada dos territórios e os povos não estão fazendo nada mais do que tentando reconquistar aquilo que lhe foi roubado antes.

Mas isso não é considerado pelo lado do Estado. Entendem que é uma ação, mas entendemos que é uma reação. Durante o período Bolsonaro, quando essas áreas de retomada ficaram muito vulneráveis, fomos provocados pelas lideranças indígenas, pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e outros parceiros que nos apoiam a dar a nossa contribuição enquanto CPT.

No mercado aqui você não encontra semente crioula, só semente transgênica

Temos um trabalho de longo prazo com as comunidades camponesas, os assentamentos da reforma agrária, e nos pediram apoio nessa parte de ajudar as comunidades a produzirem comida. Através da implantação de quintais produtivos, de agrofloresta de uma forma mais simplificada - porque a agrofloresta é um processo de médio e longo prazo e a fome tem pressa – tentamos fazer uma articulação. A primeira dificuldade que a gente encontrou foi a falta, por exemplo, de semente crioula para os primeiros plantios.

No mercado aqui você não encontra semente crioula, só semente transgênica. Nem o pequeno produtor tem acesso a não ser através do agronegócio que tenta, inclusive, enquadrar a própria agricultura familiar, a agricultura camponesa, tentando trazê-las para esse mundo que eles chamam de agronegócio.

Foi preciso todo um processo de organização como está acontecendo com o MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), o Instituto Padre Josimo e outras entidades parceiras, para criarmos uma rede de articulação, de guardiões de sementes crioulas, para que essas sementes que recebemos sejam reproduzidas e multiplicadas. Para termos soberania alimentar temos que ter sementes para todas as famílias que quiserem produzir.

Qual é a importância para uma área de retomada, no meio de tanto milho que a gente vê, tanta monocultura, dos indígenas conseguirem terem um processo de subsistência, inclusive para, talvez, iniciarem um processo de demarcação mais efetivo?

É uma condição básica porque, com fome, ninguém consegue lutar. É uma questão de sobrevivência. Por exemplo, Kurupi é uma terra arrasada. Você chega e só tem braquiária (tipo de pastagem para bovinos). Tem um solo compactado e envenenado, que precisa de uma intervenção, pelo menos inicial. Não há como fazer a roça tradicional numa condição física do solo e biológica como está.

Kurupi é uma terra arrasada. Tem um solo compactado e envenenado

Então, é preciso uma intervenção com maquinário. Aí você não consegue maquinário. Não consegue atender essa necessidade para as áreas de retomada por conta de todo esse preconceito, dessa dificuldade da política pública chegar.

Por isso é fundamental esse apoio com sementes e outros insumos para iniciar o processo de produção e ter acesso à alimentação saudável para lutar.

Aqui no Laranjeira já tem uma caminhada e, inclusive, já serve, em alguns casos, de exemplo para outras retomadas. Algumas comunidades vêm aqui para ver como foi feito e já estão reproduzindo alguma coisa nessa solidariedade com os demais junto com os parceiros.

Com o arrendamento vem toda uma cooptação política das comunidades

Há também um outro problema na região, o assédio do agronegócio para o arrendamento das terras...

Essa é uma questão muito séria e delicada. É, talvez, o maior desafio tanto do campesinato da reforma agrária como também das comunidades indígenas. Este assédio grande do agronegócio vem com o arrendamento. E junto com o arrendamento vem toda uma cooptação política e ideológica das comunidades.

Ao mesmo tempo em que o Estado fala da legalidade, de cumprir a lei, ele é conivente com uma grande ilegalidade que são os arrendamentos dos territórios, tanto da reforma agrária, como os territórios indígenas. É uma das grandes questões a serem enfrentadas paralelamente à luta pela demarcação dos territórios, até porque isso depõe contra a própria luta da conquista do território para viver de forma tradicional.

Agora, no novo governo, qual é a expectativa em relação ao avanço da pauta indígena?

É bastante positiva. No entanto, temos consciência de que se precisa organizar e mobilizar porque o governo é um governo em disputa. É um governo do qual fazem parte também setores conservadores e reacionários. E tem toda a questão da governabilidade. A perspectiva é boa, mas tem uma tarefa muito grande as políticas públicas chegarem a quem mais precisa.

As compras governamentais dependem de documentação que as comunidades mais pobres não atendem

Vai ter que ter um grande processo de mobilização, tem que superar algumas burocracias. Algumas políticas públicas, como o PAA (Plano de Aquisição de Alimentos), as compras governamentais, dependem de uma documentação que as comunidades mais pobres, mais excluídas, não atendem.

Existe a política pública, mas aquele que mais precisa não tem acesso a ela por falta de documentação. A gente vai ter que fazer um trabalho de alterar, em parte, esses critérios, essas exigências burocráticas, para que essa política pública possa chegar nas comunidades. Se não, ela vai ajudar aqueles que também precisam, mas que não são os mais necessitados. É o grande desafio que a gente tem.


Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Ayrton Centeno e Katia Marko