Coluna

Salvador em transformação: a dinâmica populacional recente da região metropolitana no Censo 2022

O Censo 2022 aponta queda na população residente em Salvador em relação a 2010
O Censo 2022 aponta queda na população residente em Salvador em relação a 2010 - ONU
Salvador continua sendo a representação da macrocefalia urbana na Bahia e na região metropolitana

Gilberto Corso Pereira*
Claudia Monteiro Fernandes**
Carlos Andres Diaz Mosquera***

 

As primeiras publicações dos resultados do Censo 2022 trouxeram dados considerados “surpreendentes” sobre a Região Metropolitana de Salvador (RMS): houve uma queda na população residente em relação a 2010. No entanto, estudos anteriores do Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles já indicavam a estagnação do crescimento populacional. Comprovou-se com os dados censitários que a transformação foi ainda mais rápida e a população residente, na verdade, caiu bem antes de 2030, como havia sido projetado nos estudos do núcleo.

É importante ressaltar que as projeções populacionais feitas pelo Núcleo Salvador levaram em conta tendências do passado. Com a pandemia de covid-19, que acelerou as tendências em curso, aumentaram a mortalidade e as migrações intrametropolitanas do município polo – Salvador – para municípios próximos mais integrados ao núcleo metropolitano. A taxa de crescimento anual do Brasil foi de 0,52%, a taxa do estado da Bahia bem mais baixa, de 0,07% e na RMS a taxa foi negativa, ou seja, um decréscimo da população de -0,4% em média. Essa perda de população foi alavancada pela capital do estado, que apresentou um decrescimento de 0,8%. Para onde foram esses moradores? Primeiro precisamos entender que ocorreram movimentos populacionais dentro da região metropolitana, partindo de Salvador, mas também para fora, num cenário inédito de esvaziamento metropolitano.

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Salvador tem sido objeto de estudos como uma capital que, historicamente, atrai imigrantes do interior e mesmo de outros estados nordestinos. O geógrafo baiano Milton Santos popularizou o conceito de “macrocefalia urbana”, ou seja, um território com grande dimensão da cidade principal, utilizando como exemplo a Bahia e sua capital. Tal conceito pode também ser utilizado em relação à RMS e seus 13 municípios (do total de 417 do estado): Salvador representa cerca de 17% da população baiana; e a região metropolitana, em torno de 24% da população estadual. No entanto, a população da capital representava 80% dos residentes na RMS em 1991 e passou a 71% em 2022.

As divisões administrativas nem sempre correspondem aos movimentos socioespaciais. Os limites municipais permitem diversas leituras. Se considerarmos o espaço urbano contíguo e as interações e movimentos da população por motivos de trabalho, estudo e consumo, podemos ter o que consideramos como núcleo metropolitano formado por Salvador e Lauro de Freitas, estes totalmente conurbados, e partes de Camaçari e Simões Filho. A Região Metropolitana institucional, por sua vez, quase corresponde ao que o IBGE denominou “Concentração Urbana”, com exceção de dois municípios – Vera Cruz e Itaparica – que fazem parte da RMS, mas não da Concentração Urbana de Salvador.

Podemos dizer que a capital continua sendo a representação da macrocefalia urbana na Bahia e na região metropolitana, apesar de ter perdido população nas últimas décadas. Mas alguns municípios da RMS atraem mais residentes, principalmente Lauro de Freitas, Camaçari e Mata de São João. Esses municípios do Litoral Norte foram os que mais atraíram moradores, mesmo que estes tenham que se locomover diariamente para trabalhar, estudar ou ter acesso a bens de consumo e serviços médicos e de lazer na capital. A vida urbana fica cada vez mais complexa no Litoral Norte.

Estudos anteriores no Núcleo Salvador, projetaram o crescimento da RMS em vetores que partem de Salvador em um processo de expansão horizontal, a partir do centro para áreas periféricas em relação ao núcleo metropolitano, um movimento de dispersão urbana (ver “Salvador no século XXI: transformações demográficas, sociais, urbanas e metropolitanas cenários e desafios”). Esta dispersão configura vetores de expansão caracterizados na Figura 1, que mostra os vetores com a sobreposição dos pontos que indicam a população projetada para o ano de 2030, e os dados preliminares do Censo parecem confirmar as projeções, com a ressalva do vetor Litoral Norte, que apresentou maior crescimento, como veremos adiante.

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Para onde foram os moradores da metrópole?

As Figuras 2, 3 e 4 mostram que, se o crescimento populacional da RMS como um todo foi negativo, por outro lado, os municípios atravessados pelo vetor Litoral Norte (Figura 1) cresceram. As taxas de crescimento populacional de Camaçari e Lauro de Freitas são positivas e as de Mata de São João mostram estabilidade. Os dados sobre variação percentual de domicílios no período censitário (Figura 4) mostram uma expansão significativa nos municípios da orla litorânea, com destaque para Mata de São João e Camaçari.

No vetor Centro Norte, Dias D’Ávila manteve uma posição de estabilidade e Simões Filho experimentou um decréscimo moderado, mas ainda distante do decrescimento de Salvador, que só foi superado por Candeias, com o maior decréscimo populacional dos municípios metropolitanos. São Francisco do Conde e Vera Cruz, na ilha de Itaparica, são outros dois municípios que apresentaram taxas com um pequeno crescimento populacional e um crescimento no número de domicílios mais expressivo.

Levando em conta a localização geográfica, podemos resumir esta dinâmica com a constatação de que as localidades na Orla Atlântica cresceram acima da média estadual, as localidades na orla da Baía de Todos os Santos cresceram moderadamente ou mantiveram a população estável. Já em Salvador e nos locais mais distantes da orla da metrópole houve decrescimento. As dinâmicas de aumento e diminuição de população, são movimentos que podem ser relacionados aos vetores de expansão urbana metropolitanos representados na Figura 1.


Figura 1 - Vetores de expansão urbana. Macrorregião Metropolitana de Salvador / Fonte: Pereira; Silva; Carvalho, 2017

A expressão do crescimento são os municípios da orla Atlântica. Seja pela guerra fiscal para atrair atividades de serviços, seja pela constituição de condomínios fechados residenciais, com a promessa de maior segurança e qualidade de vida que a capital, Lauro de Freitas teve a maior taxa média geométrica anual de crescimento nos últimos 30 anos, com uma desaceleração recente e fluxos diários intensos de mobilidade pendular, formou com Salvador uma área urbana contínua. O metrô de Salvador chegou até o aeroporto, na fronteira entre os dois municípios, e reforçou a interação.

Camaçari tem a maior área territorial entre os municípios da RMS. Empreendimentos imobiliários horizontais atraem não apenas novos moradores, mas centros comerciais, prestadores de serviços e indústrias de pequeno porte. O município sofreu com a tendência de desindustrialização recente, e principalmente com a saída do complexo automotivo da Ford e seus fornecedores em 2021, impacto que se confundiu com os da pandemia de Covid-19. A arrecadação tributária caiu, assim como diminuiu o fluxo de pessoas que trabalham e estudam no município. Apesar do forte impacto, o Polo Industrial de Camaçari tem 45 anos de operação, é um dos maiores complexos industriais integrados do Hemisfério Sul e desempenha papel importante no setor produtivo do estado. Assim, a busca por novos investimentos está na agenda política do governo estadual e a estrutura que ali existe permanece atrativa. Os dados censitários indicam que Camaçari tende a ser um vetor de crescimento populacional da região, particularmente nas localidades da orla.

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Mata de São João é o segundo maior município em extensão territorial da RMS. Localizado no Litoral Norte e com reservas ecológicas preservadas, tem recebido investimentos de grupos internacionais de empreendimentos turísticos de médio porte, sendo muitas vezes o destino único de visitantes, que buscam as praias e as lagoas da região, e nem mesmo chegam a visitar Salvador. Além de pousadas e resorts, os grupos estão adotando a prática de construção de condomínios de uso ocasional próximos a pontos turísticos como Praia do Forte e Porto de Sauípe, a cerca de duas horas de Salvador.
Municípios como Candeias e Simões Filho, mais próximos ao miolo da RMS, têm sido considerados na prática como “bairros periféricos” de Salvador e, portanto, sofrem dos mesmos problemas. São historicamente territórios de chegada de imigrantes na capital onde, até pouco tempo, ainda era possível fixar moradia popular, uma vez que o custo do metro quadrado nos bairros soteropolitanos apenas cresce. Os dados do Censo 2022 indicam que esses municípios também perderam população desde 2010.


Figura 2 - População residente na região metropolitana de Salvador por município, 1970-2022 / Fonte: elaboração própria, a partir dos Censos (IBGE)

Podemos considerar que esta proporção da variação do número de domicílios é um indicador da expansão das áreas urbanas metropolitanas na forma de um processo de dispersão urbana. Mais domicílios significam mais área construída, maior consumo de solo, maior demanda por infraestrutura em rede e ainda maior dinamismo econômico, na medida que sugere mais investimento do que em centros onde não houve esta expansão. A explicação desse processo de encolhimento do município polo e expansão do litoral ainda demanda mais informações, que os dados preliminares do Censo 2022 não fornecem, mas como hipótese podemos considerar que a pandemia acelerou uma tendência já percebida em estudos anteriores, como a migração intrametropolitana, dirigindo-se preferencialmente ao Litoral, onde, em alguns casos, como as localidades ao longo da Linha Verde (via que acompanha a orla Atlântica), já existia um estoque de segundas residências de uso ocasional e alguma infraestrutura urbana.:: A questão metropolitana na reprimarização do país a partir do Censo 2022. A quem interessa? ::


Figura 3 - Variação percentual de número de domicílios recenseados na região metropolitana de Salvador por município, 2010-2022 / Fonte: elaboração própria, a partir dos Censos (IBGE)


Figura 4 - Taxas médias anuais de crescimento populacional na região metropolitana de Salvador por município, 2010-2022 / Fonte: elaboração própria, a partir dos Censos (IBGE)

Os dados censitários preliminares nos levam a considerar que se a RMS decresceu, podemos também entender que este é um espaço em transformação e o decrescimento não é uniforme, conforme a Figura 5, que mostra o tamanho das populações municipais (expresso no diâmetro dos círculos) e a variação do número de domicílios (eixo vertical), contraposta à taxa de crescimento anual (eixo horizontal) o que isola Mata de São João, Camaçari e Lauro de Freitas no lado do crescimento e Salvador e Candeias, no lado oposto, do baixo dinamismo e diminuição populacional.

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Somente com os dados completos do Censo 2022 poderemos ter certeza sobre as causas das transformações, e caracterizar a população que provocou esses movimentos de aumento e diminuição de habitantes nos diversos espaços metropolitanos. O que será fundamental para o planejamento público da oferta de serviços, equipamentos, definição de políticas de saúde, educação, mobilidade, habitação e meio-ambiente. Algumas especulações sobre as causas das transformações podem ser levantadas.


Figura 5 - População; taxa de crescimento populacional anual; Variação percentual de número de domicílios recenseados na região metropolitana de Salvador por município, 2010-2022 / Fonte: elaboração própria, a partir dos Censos (IBGE)

Por que os moradores de Salvador estão saindo?

Podemos considerar a violência como um dos principais motivos para a saída de moradores de Salvador e da RMS. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 colocou a violência do estado da Bahia ainda mais em evidência nacional. Entre as 20 cidades com mais de 100 mil habitantes mais violentas do país, 11 são cidades baianas e três delas estão na região metropolitana: Simões Filho, Camaçari e Salvador. O município de Simões Filho conecta a região do chamado “miolo” de Salvador aos eixos metropolitanos do Centro-Norte e Intermetropolitano, sendo onde se localiza o Centro Industrial de Aratu, centro multisetorial mais antigo que o Polo de Camaçari. Essa região é conhecida como entreposto comercial e local de conexão de grandes fluxos rodoviários intrametropolitanos, mas também por ser um antigo local de chamada “desova”, onde são localizados corpos que acabam sendo computados nas estatísticas de homicídios do município. Apesar dessa situação ser conhecida há muitos anos, o município tem se mantido, pelo menos desde 2008, no topo das classificações de indicadores de violência, registrando ocorrências que podem ter origem em Salvador, Camaçari, Dias D’Ávila e Lauro de Freitas. O crescimento da presença do crime organizado na Bahia está cada vez mais perceptível, com a migração de grupos do Sudeste do Brasil, que se nacionalizaram nos últimos anos. E a disputa por território tem sido acirrada em Simões Filho, que se conecta territorialmente com o centro norte da RMS em áreas rurais ainda existentes e de difícil acesso. A reação violenta do estado alimenta o cotidiano violento na Bahia e especialmente na região metropolitana, onde se concentra a juventude negra, principais vítimas desse processo de extermínio que se agrava há tempos.

Se a violência segrega grupos sociais em territórios periféricos, a crise de mobilidade urbana acentua a negação do direito à cidade. A frota de veículos em Salvador é a segunda maior entre as capitais do Nordeste, com mais de um milhão de veículos em 2022, sendo ⅔ deles automóveis. Isso equivale a cerca de um veículo para cada dois habitantes e um dos piores trânsitos entre as capitais. O sistema de transporte coletivo foi reestruturado em 2014, mesmo ano de inauguração da tardia rede metroviária da primeira capital brasileira, após a falência do modelo de financiamento e gestão vigente por mais de 40 anos. Isso não evitou a queda drástica do número de usuários dos serviços, de péssima qualidade e preços elevados, negando o direito à mobilidade à população que mais necessita do transporte coletivo, majoritariamente mulheres negras – cerca de um terço da população, segundo a longínqua pesquisa de origem e destino de 2012. O que se consolida é um aumento da frota de veículos individuais, dos veículos por aplicativo (incluindo motos) e do transporte clandestino nas periferias.

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A única linha férrea que ligava o subúrbio ferroviário ao centro econômico mais dinâmico da capital, com extensão de 13,5 km e mais de 160 anos de operação, que atendia a estudantes e trabalhadores e trabalhadoras periféricos, foi assumida pelo governo do estado em 2013 e deixou de funcionar em fevereiro de 2021, com a promessa de implantação do sistema de Veículos Leves sobre Trilhos (VLT) em 24 meses por meio de um contrato de Parceria Público-Privada (PPP). A desativação do trem deixou mais de 6 mil passageiros impossibilitados de se locomover diariamente para a região mais dinâmica de Salvador – principalmente pescadores e marisqueiras do subúrbio, estudantes e moradores em busca de trabalho, que se viram ainda mais alijados de seu direito à mobilidade. A falta de oportunidades de trabalho na periferia soteropolitana tem levado muitos a buscar os municípios do interior como alternativa.

Não é apenas a população mais pobre e periférica que tem saído de Salvador, mas também a classe média e os profissionais liberais. Com a pandemia de Covid-19 e a popularização do trabalho remoto, muitos daqueles que tinham uma segunda residência para uso no veraneio e fins de semana, ou têm condições de adquirir imóveis nos mais novos condomínios fechados horizontais no Litoral Norte ou na Ilha de Itaparica, passaram a exercer suas atividades à distância.

Podemos responder, ainda que com algum grau de incerteza que os dados preliminares colocam, a pergunta “para onde foram os moradores de Salvador?”. Já a pergunta “por que a metrópole encolheu?” só tem hoje respostas provisórias que podem ser confirmadas com a chegada dos dados definitivos do Censo 2022, instrumento fundamental para o planejamento e a gestão pública das cidades e regiões.

 

* Professor dos Programas de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e em Geografia da UFBA, professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC. coordenador do Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles.

** Doutora em Ciências Sociais, pesquisadora e bolsista pós-doc do Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles.

*** Doutor em Ciências Sociais, pesquisador e bolsista do Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles.

**** Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Chagas