Há seis anos, na tela do Palácio dos Festivais, as cenas de “Yomared” incomodaram alguns espectadores presentes. Na tradicional e conservadora Serra gaúcha, a ousadia e a provocação eram marca daquele filme-ensaio performático, transitando entre o documental e o experimental. Mesmo assim, o cineasta porto-alegrense Lufe Bollini, egresso do Curso de Realização Audiovisual da Unisinos (São Leopoldo/RS), subiu três vezes ao palco para receber prêmios na Mostra Gaúcha de Curtas do 45º Festival de Cinema de Gramado.
O título venceu melhor montagem (para o próprio diretor), atriz (para Mariana Yomared) e música (para a protagonista e Banda da Convenção de Malabares). A produção ainda levou Menção Honrosa no 9º Festival Internacional da Fronteira (Bagé/RS).
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Interessante lembrar que, lá em 2017, ao assumir a artista também como autora daquela obra, Lufe fugiu de problemas que ainda hoje são apontados no setor audiovisual: diretores homens tentando adentrar o espaço feminino com visões equivocadas. Aquele curta era dela, com e sobre ela: Mariana.
Claro, também era sobre São Paulo, para onde o realizador porto-alegrense migrou em 2014, e desde então havia realizado curtas-metragens documentais e ensaísticos da cena artística do centro da cidade. E toda essa trajetória vem culminar na estreia do seu primeiro longa, “Anhangabaú”, que ocorreu recentemente no mesmo local, mas agora na 51ª edição do mais antigo festival de cinema ininterrupto do Brasil.
A produção paulista, mas com maioria da equipe gaúcha, saiu do Festival de Gramado com o Kikito de melhor documentário – único prêmio previsto para a categoria, decisão do evento que se mostrou claramente inapropriada, assumindo-o como um gênero menor para o mercado. Não houve votação nem do júri popular e nem apreciação por parte do júri da crítica.
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“Anhangabaú” é um daqueles filmes mais que necessários. Ele traz uma luta urgente do Brasil, ou várias lutas costuradas em uma – e ainda bem que esses grupos se unem! A obra fala da gentrificação fruto da especulação imobiliária, dos problemas de habitação de uma grande metrópole, da ameaça à cultura indígena, da preservação dos biomas brasileiros e do papel social da classe artística, entrando no campo de confronto, articulando ainda o conceito de “paisagens sonoras”.
O rico documentário versa sobre as construções simbólicas de uma cidade em disputa, com sua memória totalmente desvalorizada em prol do capital (o que aparece bem claramente do longa “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho, também exibido no festival). O filme conecta os conflitos pelo território da comunidade indígena Guarani Mbya com a resistência da Ouvidor 63, a maior ocupação artística da América Latina (que existe há nove anos), e do grupo Teatro Oficina Uzyna Uzona (filmado ainda com a presença física de Zé Celso Martinez Correa), localizado no bairro do Bixiga, em São Paulo.
Três grupos sociais que se encaminham para o confronto
Ao todo, foram sete anos de trabalho da equipe para chegar ao resultado assistido em “Anhangabaú”. As filmagens ocorreram entre 2014 e 2020, quando, em março daquele ano, os indígenas Guarani Mbya finalmente entraram em acordo com Polícia Militar para desocupar o terreno próximo à aldeia Jaraguá, na zona noroeste de São Paulo, onde seria erguido o condomínio Reserva Jaraguá-Carinás. A construtora Tenda Negócios Imobiliário havia obtido alvará para erguer cinco prédios, a oito metros da Terra Indígena (TI) Jaraguá.
Atualmente, a obra está embargada, mas o diretor Lufe Bollini comentou em Gramado, no debate sobre o filme, que, assim que ela for retomada, os guaranis voltam a ocupar a área. “A aldeia fica na Região de Jaguará, a poucos minutos da cidade, em um Cinturão Verde que é o último resquício de Mata Atlântica em São Paulo”. Conforme a equipe, Eduardo Suplicy, que aparece intercedendo para não haver embate violento, esteve junto nesta luta desde sempre.
O cineasta ainda explicou que foram dois anos de aproximação com os indígenas, para poder filmar com eles. A cena em que o líder Guarani entra na ocupação no Centro de São Paulo e disserta sobre o então novo presidente (Bolsonaro), que iria acabar com tudo, é a única conexão declarada entre os três universos do documentário, na visão do realizador, que aborda disputas de territórios, através de uma narrativa de performance.
Produtor e diretor de fotografia, o também gaúcho Rafael Avancini analisou o tempo de maturação das imagens. “Precisamos dessa trajetória longa para entender o que mostrar”, disse.
Lufe Bollini destacou a entrada no projeto do roteirista André Luís Garcia, também porto-alegrense e formado em Realização Audiovisual pela Unisinos (mas de uma turma posterior), para ligar melhor a interação entre os três movimentos retratados no longa: são três grupos que convergem para o confronto. O corte de 2019 de “Anhangabaú” ainda participou da Seleção Rough Cut Lab 2020 do DOCSP, onde pode contar com a consultoria de montagem de Jordana Berg (reconhecida montadora dos documentários de Eduardo Coutinho).
“O filme era mais performático antes. A consultoria da Jordana foi fundamental para encontrar o ponto de equilíbrio e aprofundar as questões”, avalia André Garcia, que admitiu que a montadora chamou o longa de “glauberiano” – no curta “Yomared”, premiado em 2017 em Gramado, um cartaz de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha, ganha evidência em um dos cenários.
Brasa dormindo contra o vento, semente plantada no cimento
Ponto alto de toda essa rede de laços é a forte presença de Valter Machado, o mesmo de “Cine Marrocos” (2021, de Ricardo Calil e montado por Jordana Berg), em cena. Lufe Bollini reconheceu que este filme recente e “Era o Hotel Cambridge” (2016, de Eliane Caffé) não são referências, mas foram revisitados para entender como fazer cinema com este tipo de tema.
Valter é um personagem provocador que mora na Ocupação Ouvidor 63 e é considerado pela equipe uma espécie de filósofo do Centro de São Paulo, importante para o questionamento do porquê o local se chama “Anhangabaú”. “Aqui é o Vale dos Maus Espíritos, Vale do Anhangabaú, Centro da cidade de São Paulo”, afirma a figura barbuda, cabeluda e colorida, com um chapéu de cowboy.
O diretor explicou que o artista também foi para a comunidade indígena do Jaraguá e participou do casamento cujas cenas abrem a narrativa do documentário. O videoartista Nicolas Collar, que fez câmera no longa, quis evidenciar que Valter esteve naturalmente presente nas vivências do coletivo “É um ator social que performa a própria identidade. Era uma figura importante para fazer as conexões do documentário.”
A produção deste significativo marco para o cinema brasileiro contemporâneo é da Elixir Entretenimento, Kino-Cobra Filmes e Fogo no Olho Filmes. O produtor Denis Feijão afirmou na entrevista coletiva em Gramado: “Nós, só por sermos realizadores, já somos agentes políticos. Essa é a cinematografia que gosto de trabalhar. Exibir em Gramado e pautar isso na sociedade é o mais importante. É um cinema de entrega”.
Pela sua entrega e resistência, a reportagem pede a licença de utilizar versos de José Miguel Wisnik (canção “Inverno”) para o título deste último trecho, por enxergar que – apesar de tudo e de todos – a luta por esta casa no chão do caroço bruto vislumbra um certo “Anhangabaú da felicidade”. No entanto, é válido pontuar que os realizadores escolhem para sua trilha musical o tema “Vale do Anhangabaú”, da banda de rock de Fortaleza Jonnata Doll e os Garotos Solventes.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira