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Los Van Van de Cuba: conheça a história dos 'Rolling Stones da Salsa'

Desde os anos 1960, a orquestra vem lançando clássicos que contam a história do país

Brasil de Fato | Habana (Cuba) |
Orquestra Los Van Van - Samuel Formell

Em todas as noites, as filas para entrar na discoteca eram intermináveis. Entre os músicos e o público, as conversas ocorriam em diferentes formas e sotaques de espanhol. Gírias mexicanas misturadas com expressões porto-riquenhas e cubanas com fonética colombiana. Já nessa época, em meados dos anos noventa, os palcos da mítica discoteca "Azukarr", em Cancún no México, já tinham testemunhado todos os grandes shows de salsa: era um local obrigatório para os amantes do gênero. 

Naquela época, o crescente sucesso de Isaac Delgado lhe possibilitou fazer uma temporada de três meses no clube. Apesar da sua juventude, ele já estava construindo uma carreira brilhante com uma orquestra de jovens músicos que se destacavam como promessas da nova geração. No comando da percussão, estava Samuel Formell. 

Mas aquela temporada tomaria um rumo inesperado que marcaria o cenário musical cubano. Nem mesmo um mês havia se passado desde o início de seus shows em Azukarr, quando Samuel Formell recebeu uma chamada inesperada de seu pai, Juan Formell, diretor da lendária orquestra Los Van Van.

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O pai ligava para informá-lo que José Luís Quintana, mais conhecido como Changuito, havia decidido deixar a bateria de Los Van Van para se dedicar à carreira solo. Depois de mais de 20 anos, Changuito estava deixando a orquestra para tomar um novo rumo. Tratava-se de uma das figuras mais emblemáticas e revolucionárias da música cubana, dono de um estilo que havia marcado a sonoridade singular com a qual Los Van Van criou muitas obras que se tornaram clássicas.     

Um silêncio interrompeu a conversa. Samuel não conseguia parar de pensar em todas aquelas tardes em que, quando criança, acompanhava seu pai aos ensaios do Los Van Van e ficava ao lado de Changuito para assistir, maravilhado, como ele tocava a bateria. Mas a mensagem de Juan Formell foi concisa e não deixou muito espaço para lembranças: sem muita demora, ele lhe disse que, depois de muita deliberação com a orquestra, queriam que ele se juntasse a Los Van Van como baterista. 

"Foi um verdadeiro choque, uma mistura de sensações", lembra emocionado Samuel Formell para o Brasil de Fato. "Changuito não era apenas o ídolo dos fãs de Van Van, era também o meu ídolo. Eu realmente senti uma enorme sensação de vertigem naquele momento. Estava me divertindo muito com outros grandes músicos da minha idade. Aquela proposta de ir para Los Van Van significava não apenas mudar o que eu estava fazendo, mas também assumir uma enorme responsabilidade. Apesar de todos esses sentimentos, eu queria fazer isso. Também queria fazer parte dessa história". 

Em 1995, Samuel se apresentou pela primeira vez com Los Van Van, em nada menos que o famoso Jazz Plaza Festival, em um show no tradicional Teatro Nacional de Cuba. A pressão nos dias que antecederam o show foi enorme.

Todos comentavam: como seria quando esse garoto se sentasse para substituir as baquetas de Changuito?, o que seria do estilo peculiar que Los Van Van havia cultivado? As dúvidas não tardaram em se dissipar: naquela noite, os aplausos irromperam no final do show. Os olhos úmidos de Juan Formell não conseguiam esconder sua emoção e orgulho enquanto alternava seu olhar entre o público e Samuel.

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Até o Ivan Lins

É impossível narrar a história cultural de Cuba sem levar em consideração a história de Los Van Van. Considerados como os grandes "cronistas" da história da ilha, com mais de 50 anos de atividade, sua carreira influenciou gerações inteiras de músicos e deixou inúmeros clássicos do cancioneiro popular da salsa. Além disso, Los Van Van foram os criadores de um subgênero cubano: o Songo. 

"Meu pai, Juan Formell, foi o compositor dos grandes sucessos que ainda estão presentes hoje, vivos e novos. Pela simples razão de que ele tinha a enorme virtude de estar à frente de seu tempo. É por isso que hoje, quando tocamos o repertório dos anos 70, 80 ou 90, vemos crianças de 7 ou 8 anos cantando músicas como La Candela, diz Samuel Formell com um orgulho inconfundível. 

Samuel fala sentado ao lado de sua bateria no estúdio de gravação montado na antiga casa de seu pai. A noite promete ser longa. Junto com seu sobrinho e um engenheiro de som, eles aproveitam as últimas horas, antes que o grupo saia em turnê novamente, para fazer arranjos de um novo álbum no qual estão trabalhando.
 
"Às vezes minha família reclama comigo porque faz dois anos que não tiro férias", confessa Samuel, um pouco preocupado. "O que acontece é que, com o Los Van Van, podemos fazer até 100 shows por ano no exterior. Isso toma muito tempo. E quando não estamos em turnê, estamos gravando ou compondo."

O ritmo de trabalho é frenético. As apresentações de noite são combinadas com ensaios nas primeiras horas da manhã, antes que o calor do verão em Havana torne os ensaios uma tarefa impossível. Por sua vez, as tardes livres são dedicadas ao trabalho de composição e gravação. 

Para o restante deste ano, eles programaram uma turnê com uma série de apresentações em Ásia, Europa, Estados Unidos e América Latina. 

"A primeira vez que fomos para a Ásia, tínhamos uma apresentação na Coreia do Sul. Durante a viagem, lembro-me de pensar: "O que a Coreia do Sul tem a ver com a música que fazemos?" Eu estava super nervoso", lembra Samuel. 

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"Acho que uma orquestra de baile nunca tinha estado lá antes. O teatro nos pediu que passássemos a eles as letras do repertório que iríamos tocar e eles fizeram um livreto com as letras em espanhol e coreano. Quando chegamos, não podíamos acreditar... O teatro estava lotado. Em um determinado momento do show, começamos a incentivar as pessoas a se levantarem: as pessoas não só começaram a se colocar de pé, mas também começaram a cantar as músicas. Em um espanhol bastante bem cantado. Foi realmente incrível", lembra com uma risada. 

"Essa turnê foi um sucesso. No ano seguinte, eles até nos chamaram para tocar novamente e, naquele ano, compartilhamos o palco com o músico brasileiro Ivan Lins, de quem nos tornamos grandes amigos. Essa foi a primeira vez que fomos à Ásia. Foi uma experiência linda, porque pudemos tocar em lugares incríveis onde nunca pensamos que a Los Van Van chegaria, como a Ópera de Sydney: foi realmente mais do que um sonho". 

Samuel fala com alegria genuína. Ele sorri como se estivesse surpreso toda vez que menciona um lugar onde conseguiram tocar com o Los Van Van e se refere com carinho quando menciona os músicos como se eles fossem velhos amigos. E, uma e outra vez, ele comenta que o mais importante é o trabalho e a dedicação à música.

O início

Em 4 de dezembro de 1969, Juan Formell se apresentou pela primeira vez com Los Van Van. Por essa época, ele já tinha trabalhado como contrabaixista na orquestra de Elio Revé, uma das mais importantes da época. Mas seus interesses artísticos o levaram a buscar novos horizontes musicais, incorporando elementos do jazz e, principalmente, do rock e do pop à sua formação musical tradicional cubana.       

Ao criar Los Van Van, Juan Formell modificou a formação clássica das orquestras da época. Ele trocou o contrabaixo por um baixo elétrico, acrescentou uma guitarra elétrica, um órgão, bateria, flautas e violinos. E incorporou arranjos harmônicos do rock e do pop sem nunca abandonar a clave cubana, onde permaneceu o coração do ritmo da rumba.   

"Minha mãe, Natalia "Naty" Alfonso, era uma extraordinária dançarina de tapete. Talvez a melhor que já existiu em Cuba. Ela cantava muito à capela, principalmente jazz. Tinha uma entonação extraordinária. E ela foi uma grande influência para meu pai, trazendo toda aquela música dos Estados Unidos. Na verdade, foi ela quem o convenceu a integrar um baterista na orquestra", afirma Samuel.

Desde o início, Los Van Van misturaram tradição e contemporaneidade. Dessa mistura, surgiu o "Songo", um subgênero do Son Cubano, que, por sua vez, na década de 1970, lançaria as bases do que é tradicionalmente conhecido como salsa. Juan Formell costumava dizer que o Songo era "a síntese de uma personalidade, de um modo de ser e de sentir a música, um resumo de culturas e o modo de fazer de um músico multifacetado e original".


Orquestra Los Van Van / Samuel Formell

Corrida espacial

"Quando eu era criança, havia apenas um violão em minha casa", lembra Samuel. "É incrível pensar que aquele violão foi usado para compor tantas canções que se tornaram clássicos do repertório musical cubano. Lembro-me de que meu pai ficava acordado à noite, trabalhando quando íamos dormir, escrevendo arranjos para Los Van Van". 

O sucesso de Los Van Van foi imediato. A orquestra "mais pegada", como se diz em Cuba para indicar sua popularidade. Em 1971, as estatísticas mostravam que Juan Formell era o autor nacional com mais sucessos. Músicas como Aquí se enciende la candela, Marilú, Es mi manera, Dudas e Anjá foram sucesso nas rádios. Em 1972, uma produtora peruana - país com o qual Los Van Van preserva uma estreita relação afetiva - lançou o primeiro single da orquestra em um país latino-americano. 

"Sempre achei que meu amor pela percussão nasceu da dança da minha mãe. O tap é uma dança com muita percussão e esses sons me marcaram para sempre, junto com sua enorme sensibilidade musical, os discos que ela ouvia", acrescenta Samuel.

"Quando cresci, meu pai começou a me levar para os ensaios do Los Van Van. E como eu era pequeno, eles me deixavam brincar e ficar onde eu quisesse. Eu sempre ficava atrás do Changuito. Eu era muito inquieto, mas naqueles momentos, ficava hipnotizado ao vê-lo tocar a bateria. Eu era como uma esponja que registrava tudo o que ele fazia".

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Em 1980, a gravadora cubana Egrem lançou um álbum especial intitulado Intercosmos. O disco comemorava a primeira viagem interespacial cubano-soviética da qual participou o cosmonauta cubano Arnaldo Tamayo. Para a ocasião, Los Van Van gravaram o songo Vuela la amistad, em cujo refrão cantavam: La hermandad de los pueblos / conquista el cielo / y crece, crece sin parar (A irmandade dos povos / conquista o céu / e cresce, cresce sem parar, em tradução livre). A carreira para conquistar o espaço estava começando a soar com a música cubana. 

Naquela época, Samuel Formell estava começando a estudar no instituto de arte. "Eu já sabia que queria ser músico, então sabia que a partir daquele momento teria que deixar de lado minhas tardes jogando bola na rua e me dedicar aos estudos. E tive a oportunidade de estudar com pessoas maravilhosas. A educação artística cubana sempre foi excelente, apesar do bloqueio e das dificuldades do país. Lá conheci muitos músicos com quem mais tarde iniciaria minha carreira.

Sucesso internacional x bloqueio

Em 1988, foi lançado o único álbum de Los Van Van a ser distribuído por uma empresa multinacional, o selo Mango da Island Records. Songo foi gravado na Inglaterra e distribuído entre 1988 e 1989 em vários países. Era uma pequena antologia dos sucessos que o grupo havia gravado até então. O jornal estadunidense New York Times o considerou um dos cinco álbuns mais importantes da salsa.

No entanto, apesar das inúmeras críticas positivas da imprensa especializada, Los Van Van nunca conseguiu ser distribuído pelas principais gravadoras multinacionais. 

"O bloqueio dos EUA a Cuba também afeta nossa música. De fato, desde que o bloqueio foi aplicado, não podemos estar nas grandes empresas multinacionais, o que sempre dificultou a distribuição de nossa música". 

Apesar das dificuldades, a partir de meados da década de 1990, Los Van Van alcançou enorme popularidade fora de Cuba e dos circuitos de salsa latino-americanos.  
    
"Na década de 1990, houve um boom na Europa e nos Estados Unidos para a música de dança cubana", diz Samuel. "No início, isso começou com os próprios emigrantes cubanos, que começaram a criar escolas de dança de salsa. E depois de pouco tempo isso começou a se expandir, possibilitando que nossa música chegasse a outros lugares onde o bloqueio dificultava o acesso."

Em 1996, Los Van Van fez sua primeira turnê nos Estados Unidos, apresentando-se em Chicago, Los Angeles, Nova York e lotando o icônico SOB's em Manhattan. À medida que o sucesso internacional se seguiu, nos anos seguintes, vários jovens compositores e arranjadores se juntaram à formação. Finalmente, em 1999, Los Van Van receberam um prêmio Grammy pelo álbum Llegó Van Van (Havana Caliente) na categoria de Melhor Álbum de Salsa.

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Reconhecimento

A longa carreira de Los Van Van, seu estilo inconfundível e a influência que geraram lhes renderam o apelido de "Os Rolling Stones da Salsa" internacionalmente e "O trem da música cubana" na ilha. 

Por gerações, Los Van Van se tornaram os cronistas da vida cubana. Música feita em Cuba, para Cuba e para o mundo. Com uma poética que é alimentada pela conversa das ruas de Cuba, suas histórias e seus personagens.  

"Meu pai sempre soube que, se tivesse decidido sair de Cuba, jamais teria escrito canções como La Sandunguera. Ele não poderia escrever isso em Miami, na Espanha ou no México. Então Los Van Van tem que sair de Cuba. As músicas de Van Van nascem em Cuba porque são as crônicas de Cuba", reflete Samuel.

Em 2013, Los Van Van receberam dois grandes prêmios. Quase como se fosse a última chance na vida de Juan Formell de receber o reconhecimento que a indústria internacional lhe havia negado, apesar do infinito carinho de seu povo.

Naquele ano, Los Van Van recebeu o prêmio de Artista do Ano na feira internacional de música WOMEX, na Inglaterra. A distinção se deveu ao fato de terem permanecido como a banda de salsa mais importante de Cuba durante quatro décadas. Por sua vez, naquele ano, Juan Formell recebeu o Gramofone de Ouro do Grammy por Excelência Musical. Um reconhecimento por sua carreira.


Juan Formell / Samuel Formell

O legado 

Se o primeiro grande desafio na vida de Samuel Formell foi ocupar o lugar de Changuito em Los Van Van. O segundo e mais difícil foi assumir a direção geral da orquestra após a morte de seu pai, Juan Formell, em 2014. 

"A perda de meu pai sempre será sentida.  Não ter seus conselhos e vê-lo no palco. Foi uma perda irreparável", diz Samuel, incapaz de esconder a tristeza em sua voz. "E é estranho porque, para mim, ele está sempre presente no palco. Ele deixou um legado muito grande e um ensinamento muito forte. Seu maior desejo foi que nossa música cubana chegasse a todos os lugares e continuasse sendo um ponto de referência para as novas gerações. Fazendo eco à frase que ele sempre repetia, a coisa mais difícil não é chegar lá, mas saber como permanecer lá."

O funeral de Juan Formell foi realizado no único lugar possível: o Teatro Nacional de Cuba. E Los Van Van cumpriram sua vontade: as cinzas foram jogadas no mar e continuaram com a orquestra que, nove anos depois, ainda está viva.

"Meu pai era um homem muito inteligente. Muito antes de falecer, quando a artrite de que sofria começou a deixar marcas que o impediam de tocar o baixo como antes, ele se sentou comigo e tivemos uma conversa muito difícil. Foi quando ele me disse que queria que eu começasse a assumir a orquestra de pouco em pouco, enquanto ele ainda estivesse vivo, para que ele pudesse me acompanhar no processo de aprendizado. Isso é algo pelo qual sempre serei grato". 

Após a morte de Juan Formell, Los Van Van lançaram dois álbuns inteiramente sob a direção de Samuel Formell. O primeiro foi La Fantasía (2014). O segundo foi El Legado (2018). Ambos foram indicados a vários prêmios internacionais, incluindo o Grammy. Enquanto isso, em 2018, a Universidade das Artes abriu a Cátedra Honorária de Música Popular "Juan Formell".

"Se há algo que eu desejo é que a música de Los Van Van e Cuba continue criando e incentivando outras pessoas a fazer música", reflete Samuel. "Porque, ao final, é isso que sempre fizemos: fazer com que as pessoas queiram dançar, cantar e ter um momento de felicidade. Foi isso que aprendemos junto com nosso povo, a compartilhar essa felicidade mesmo nos momentos mais difíceis".

Edição: Rodrigo Durão Coelho