Desde que Jair Bolsonaro (PL) saiu do Palácio do Planalto, a base de apoio evangélica do ex-presidente, sempre tão ruidosa, começou a adotar postura mais reservada. O comportamento ficou mais evidente depois dos atentados de 8 de janeiro, em Brasília. Agora, com as denúncias de corrupção e as investigações contra ele avançando, a discrição se potencializou.
Nas últimas semanas, Bolsonaro foi alvo de acusações que colocam sobre ele a responsabilidade de encomendar uma fraude no sistema eleitoral brasileiro ao hacker Walter Delgatti. Surgiram também evidências ainda mais consistentes sobre o envolvimento do ex-chefe da nação com um esquema criminoso de venda internacional de joias pertencentes ao Estado brasileiro.
Além disso, ele está inelegível por oito anos. Em decisão de junho, o plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) declarou a inelegibilidade por maioria de votos (5 a 2). A corte entendeu que houve abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante reunião realizada com embaixadores estrangeiros, em que o ex-presidente questionou a lisura das eleições brasileiras.
Para o sociólogo, especialista em política e religião e diretor do Observatório Evangélico, Vinicius do Valle, o avanço do cenário pode intensificar o silêncio. "Após o momento em que Bolsonaro perdeu as eleições, ele continuou podendo aglutinar forças em torno de si. Inclusive, colocando narrativas de que, eventualmente, algo poderia acontecer, insinuando o que acabou se materializando no 8 de janeiro, uma tentativa de golpe que falhou. Depois dessa data, vimos que os grupos começaram a se afastar do Bolsonaro”, pontua.
Do Valle aponta que o movimento está associado justamente à resposta judicial dada aos casos que envolvem o ex-presidente. “Perceberam que o poder mudou de mãos e que alguma coisa poderia acontecer com eles, a partir do momento em que a Justiça começasse a revisitar o que foi esse período e, principalmente, essa tentativa de golpe. Não podemos esquecer que passamos por isso, que é muito grave”, acrescenta.
Em meio a esse cenário, nenhuma manifestação coordenada e numerosa de apoio ocorreu nas ruas ou nas redes sociais. O cenário é bem diferente do observado no período em que Bolsonaro ocupou o Palácio do Planalto, quando parte da comunidade evangélica formou uma importante força de propagação de conteúdo em defesa de Bolsonaro e de ataques e fake news contra movimentos de oposição à gestão conservadora.
De acordo com a conjuntura
Segundo a cientista social Delana Coraza, coordenadora da pesquisa Evangélicos, Política e Trabalho de Base do Instituto Tricontinental, as lideranças evangélicas que hoje ocupam espaços políticos estão ligadas às igrejas pentecostais e neopentecostais. São figuras que, historicamente, adotam comportamento mais fisiologista e constroem alianças e posicionamentos, muitas vezes, de acordo com a conjuntura. Ainda assim, há limites para o diálogo com a esquerda.
"Eles já se conectaram com Lula (PT), com a Dilma Rousseff (PT), romperam, hoje se conectaram ao bolsonarismo. É difícil entender para onde vão, geralmente é para o time que está ganhando. Mas, ao mesmo tempo, as pautas da direita são mais confortáveis. Não é tudo ou nada. Eles seguem em silêncio em relação ao Bolsonaro, mas seguem se construindo a partir das pautas morais”.
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Repercussão entre evangélicos
O silêncio não foi total, no entanto. Relatório da Casa Galileia – organização cristã que reúne evangélicos e católicos pela democracia – aponta que lideranças evangélicas e católicas de extrema direita saíram em defesa do ex-presidente após ele ser declarado inelegível. Mas o apoio não se capilarizou entre os grupos mais modelados e, principalmente, nem entre fiéis.
Já o caso das joias e a acusação de tentativa de fraude nas eleições geraram manifestações isoladas, a maior parte baseada em notícias falsas. Algumas lideranças divulgaram imagens de uma matéria jornalística inexistente, que dizia que as peças preciosas que o ex-presidente recebeu valiam R$ 400. Segundo perícia inicial da Polícia Federal, o valor total dos objetos pode chegar a R$ 5 milhões.
O sociólogo Vinicius do Valle lembra que, no passado, outras acusações contra Bolsonaro foram minimizadas pela base de apoio dele, especialmente a evangélica. Agora, com o avanço de investigações e até mesmo a hipótese de prisão do ex-presidente, esse comportamento tende a mudar. “Se efetivamente ele for condenado e, na hipótese cada vez mais plausível de ele ser preso, as coisas mudam de figura, entre a base em geral, mas especialmente nos setores religiosos. São conservadores, que estão no catolicismo também, mas principalmente do grupo evangélico.”
As tentativas de defesa também não têm mais o mesmo alcance. A maior parte das publicações tem mais curtidas que compartilhamentos, mais um indicativo de que o conteúdo pró-bolsonaro circula menos. A pauta evangélica, atualmente, centra-se mais nos costumes e nos ataques ao governo Lula e ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
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Pauta antiesquerda
“A vinculação dos evangélicos não é exatamente com o Bolsonaro e talvez nem com o bolsonarismo. Ela está muito é conectada à pauta antiesquerda. Mais do que ser bolsonarista ou defender o Bolsonaro, os evangélicos, de alguma maneira, hegemonizaram na política, há muitos anos, uma pauta antiesquerda, vinculada às pautas morais. Então, [temas como] família, gênero, sexualidade e a própria questão da intolerância religiosa e do racismo religioso. Nas últimas décadas, esses evangélicos foram se vinculando a essas pautas até o ponto de se radicalizarem ou se vincularem ao fundamentalismo religioso, atrelado à figura do Bolsonaro”, pontua Delana Corazza.
O mesmo tom foi visto na Marcha para Jesus, tradicional evento evangélico, que aconteceu em junho. Bolsonaro não compareceu ao evento, ao contrário do que fez em anos anteriores, quando ainda era presidente. Ele também foi assunto ausente nos discursos das lideranças que foram ao local, que novamente preferiram os ataques ao STF e às pautas progressistas.
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Aprovação ao governo Lula
Enquanto a defesa ao ex-presidente se dissipa entre evangélicos e evangélicas, a aprovação do governo Lula cresce nesse mesmo grupo. No início do mês, ela chegou a 50% e superou a desaprovação, que ficou em 46%, pela primeira vez ao longo da gestão. Os dados são da pesquisa Quaest.
Para Delana Corazza, a trégua na polarização é pontual. “O projeto de poder existe, as forças que estão pensando nisso estão, de alguma maneira, articuladas e fazendo política”, considera. Ela alerta que é importante refletir sobre o fato de que a maior parte da comunidade evangélica é conservadora, mas não fundamentalista e que existe um grupo de resistência progressista e de esquerda.
“Nossa tarefa, enquanto campo progressista, é dialogar com os evangélicos progressistas e também trabalhar nos territórios para que os conservadores não se tornem fundamentalistas. De fato, o fundamentalismo não morre e é muito importante entender que ele não é só uma leitura da vida, ele tem como uma das suas teologias ocupar espaços de poder”, destaca.
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Busca por novas lideranças
Vinicius do Valle analisa que os grupos evangélicos podem partir para a busca de novas figuras de liderança, que ocupem o vácuo deixado por Bolsonaro, levando-se em consideração que existe um projeto de poder nesses movimentos. “Existe uma série de influências que vêm atingindo o meio pentecostal e também evangélico e cristão como um todo no Brasil que vêm de fora, com certas doutrinas teológicas que são problemáticas do ponto de vista do ambiente democrático”, reforça.
Ainda assim, o pesquisador avalia que, no momento, o campo evangélico passa por dificuldades para produzir uma nova liderança, processo que esbarra até mesmo em disputas internas. O projeto de poder do campo mais extremista também não encontra apoio em toda a comunidade.
“No Brasil, temos um universo evangélico muito heterogêneo e fragmentado. Nesse ambiente muito heterogêneo, lideranças menores estão disputando entre si. Isso dificulta que surja um nome comum. Nesse cenário de fragmentação, cada grupo vai seguindo uma estratégia que acredita que vai beneficiar. [Um nove nome] depende de articulação dentro do universo evangélico e também de quanto essas doutrinas teológicas podem se espalhar dentro desse universo”, conclui.
Edição: Rodrigo Chagas