A literatura negra na Escola Doutor Milton Santos, instituição quilombola localizada no município de Jequié, na região do médio Rio de Contas, na Bahia, tem mudado a rotina dos estudantes e tem favorecido a criação de um clube de leitura preta. A iniciativa acaba de completar um ano e nasce como uma tecnologia antirracista de formação complementar para jovens do Ensino Fundamental II.
Esse Clube da Leitura Preta foi fundado por Jessika de Oliveira, professora que também se desafia ao exercício de escrita. Além de dar aulas, Jéssika é também artista, escritora e líder de impacto social. Todas essas habilidades e frentes de atuação trouxeram para a docente a sensibilidade e também o desejo, como mulher negra, de refletir sobre o racismo, a partir das leituras de obras de autoria negra para enfrentar a evasão escolar e confrontar o racismo institucional.
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“A gente se encontra três vezes por semana após as aulas e faz leituras coletivas. A gente lê poemas. Às vezes, a gente pega artigos ou livros. Às vezes, a gente consegue fechar um livro em um mês. E sempre que a gente termina o livro, a gente faz uma pequena discussão e, a cada dois dias, a gente pratica atividade textual com as reflexões individuais sobre que foi lido”, com a professora, que foi a primeira mulher a ocupar e residir oficialmente na I Residência Universitária Masculina da UFBA (R1) em 2013, sendo uma das pioneiras na luta pela abertura de vagas femininas na república.
A educadora aponta que a transformação social que o projeto traz para o cotidiano escolar é notada não só por ela, mas também pelos pais e por outras pessoas da comunidade escolar. “Tem sido algo marcante. Desde que o projeto entrou na vida dessas pessoas, porque a gente sabe que quando entra a literatura não entra só uma questão de academia, mas também uma leitura de mundo, de vivências. Quando os meninos tiveram acesso a literatura negra, como a de Conceição Evaristo, quando tiveram acesso às questões raciais que Silvio Almeida discute, ao pensamento de Lélia Gonzalez, os estudantes começaram a entender melhor a realidade deles”, afirma a professora com otimismo pelas colheitas.
Jéssika explica que o Clube funciona de forma presencial semanalmente dentro da própria escola. “Ocupamos um lugar na escola que se chama Sala de Livros. A gente não conta com espaço físico de uma biblioteca ainda. Eu faço a curadoria e seleciono, dentro de um cronograma, as leituras que serão realizadas. A gente também ajusta de acordo com o calendário da escola. Por exemplo, nos meses de novembro, desde o ano passado, a gente realiza um concurso literário no Quilombo”, explica a idealizadora do projeto, que espera com essa atividade movimentar o interesse pelo livro, mas também incentivar que os próprios estudantes assumam a autoria das suas histórias. Mais uma opção de caminho de fortalecimento da identidade negra e quilombola.
“O clube nasceu com esse anseio de combater o racismo de forma profunda, porque a gente sabe que existem leis que obrigam o ensino da cultura afro nas escolas, mas sem o letramento racial, essas leis também não têm tanto embasamento”, afirma. Atualmente, o clube tem cerca de 30 participantes, que também se dividem nas atividades organizativas do projeto, ocupando funções como a de diretor/a, coordenador/a, informante etc.
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Em 2022, o clube realizou o seu primeiro concurso de escrita e recebeu 150 inscrições de textos de diferentes gêneros. O objetivo é justamente incentivar a escrita de narrativas entre os estudantes, proposta e a ideia nasce motivada bem recebida por estudantes de 14 a 17 anos, os mais ativos na atividade e que, em breve, farão ENEM para decidir sobre que profissão desejam seguir. Desta forma, a proposta apoia esses estudantes nas suas produções textuais e premia estudantes que se destacam nas suas narrativas.
“Nesse concurso literário, a gente não priorizou o primeiro lugar e, sim, vários lugares. A
gente selecionou os 20 melhores contos e premiamos com caixinha de música, garrafinha de água e, a cada um desses 20, nós demos um certificado de participação impresso e emoldurado. Aos demais, nós fizemos uma salva de palmas em sala para todos os estudantes das turmas que participaram do clube”, relembra com entusiasmo a professora.
“Além de fomentar a luta antirracista entre os participantes, o clube também consegue atingir a comunidade externa com a promoção da valorização do espaço e da cultura local”, declara a professora que além dessa iniciativa é também autora do projeto Negra Sou, uma organização de mulheres negras na cidade de Baixa Grande, que visa, através das discussões raciais, a valorização e ressignificação da identidade negra de mulheres.
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Ainda para este ano, a fundadora do clube e os participantes estão se articulando para a criação de uma plataforma digital com foco na reunião de escritores e leitores da cidade. O objetivo inicial é captar escritores e escritoras de Jequié, com o propósito de promover a visibilidade dessas pessoas e fortalecer a possibilidade de maior aproximação entre eles.
“Decidimos criar uma plataforma digital com foco em proporcionar mais visibilidade, inclusive para os próprios escritores da cidade de Jequié. Pessoas que escrevem, mas ainda não conseguiram publicar. A gente resolveu fazer essa plataforma como se fosse um catálogo para captar, cadastrar escritores e escritoras”, declara Jessika, uma visionária da força transformadora que a literatura tem no mundo.
Como a ideia da plataforma depende de muitas mãos para se tornar viável, a professora explica que o projeto tenta também parceria com pessoas da área de informática da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), para fazer alguns alinhamentos e tirar esse projeto do papel.
Fonte: BdF Bahia
Edição: Gabriela Amorim